Há 30 anos, depois de ter chorado por ouvir Damas ser criticado ao serviço da nossa selecção naquele que era o primeiro grande torneio futebolístico que acompanhava em plena consciência, gravou-se em mim a arte de um jogador. Hoje, podendo dizer que vivi uma era em que o futebol tinha Cristiano Ronaldo e tinha Messi a dividirem opiniões sobre quem é o melhor, continuo a com a certeza que existiu Maradona e, depois, existiram os outros. E é por me despertar tantas memórias que vos convido a ler este artigo publicado no Expresso.

Não é de agora que tenho esta teoria: o mundo está dividido em duas categorias de pessoas, entre as que gostam de Pelé e as que gostam de Garrincha, de Nikki Lauda ou de James Hunt, de Larry Bird ou de Magic Johnson, de Mourinho ou de Guardiola. E entre as que gostam de Maradona e as que não gostam de Maradona.

Maradona não tem alguém a quem possa ser comparado, ninguém para fazer de Prost para que ele seja o Senna ou de McEnroe para que ele faça de Börg. Para o bem e para o mal, no bem e no mal, Maradona está acima de tudo isso, pelo que a escolha se põe entre gostar e não gostar dele. Eu escolhi gostar e o Mundo aparentemente também fez a mesma opção, porque os seres que o habitam elegeram-no futebolista do século XX na votação online da FIFA.

A eleição foi polémica. Os defensores de Pelé argumentaram que os votos digitais em Maradona (53,6%) chegaram de gente que nunca vira o brasileiro a jogar e arranjou-se um segundo escrutínio, desta vez com jornalistas, treinadores e representantes FIFA – e Pelé lá venceu o prémio. Os representantes FIFA foram os que acharam boa ideia haver um Mundial no Qatar, pelo que me fico com o prémio do povo.

Porque é nele que está a raiz desta idolatria, a identificação com um herói que nasceu no nada, veio do nada, abençoado sabe-se lá bem por quem e pelo quê, que carregou às costas um país pobre e uma cidade pobre, que nunca se escondeu, que foi decisivo nas decisões – que pecou e pagou e foi absolvido para voltou a pecar. Maradona é o céu e o inferno. É Ícaro e a Fénix. E é um génio sem igual que há 30 anos, a 29 de junho de 1986, levou a Argentina ao título de campeã do Mundo no Mundial do México. Eu tinha 6 anos e uns quantos meses nessa altura e já não me lembro se vi a final contra a Alemanha Ocidental, mas ninguém me tira a recordação do golo aos ingleses – não o da mão, o outro – que depois percebi ter um significado político. Como tudo na vida de Maradona, aliás.

Diego Armando Maradona nasceu na Villa Fiorito, bairro pobre fora de Buenos Aires, filho de pais que eram filhos ilegítimos. Foi o primeiro rapaz da família, depois de Ana, Rita, Elsa e Maria Rosa; depois dele vieram Raul, Hugo e Claudia e quase todos eles tinham alcunhas ou diminutivos. Diego era o Pelusita, embora Hugo e Raul o vissem mais como um “marciano” do que como um “fofinho”, porque era, de facto, fora deste planeta. Mais tarde, em 1986, naquele golo à Inglaterra, um locutor uruguaio perguntaria ao mundo de que planeta era Maradona.

Com apenas 11 anos, Maradona já aparecia na televisão argentina a dar toques na bola, e por volta dos 15, 16 anos era a essa mesma televisão que garantia que tinha um sonho, o de jogar pela Argentina num Mundial e ganhá-lo. As câmaras de TV iriam acompanhá-lo o resto da vida, estivesse ele onde estivesse.

Mas antes da Argentina estava o Argentino Juniors, o clube em que jogava desde os oito anos, depois de ter passado por testes técnicos – e burocráticos. Ninguém no Argentino Juniors acreditou que aquele miúdo que fintava e corria e passava a bola tinha a idade que dizia ter; foi-lhe pedido que trouxesse o B.I. de casa para a prova.

Pelos Argentino Juniors chegou à seleção argentina que ganhou o Mundial de sub-20 em 1979; dois anos depois, foi para o Boca Juniors, o clube do povo e o clube do coração dele, do pai e da mãe dele, Don Diego e Doña Tota. Comprou um desportivo, deixou-se filmar dentro dele com Claudia, a vizinha com que começou a namoriscar de porta em porta, e representou enfim a Argentina num Mundial, em 1982. Foi aí que percebeu que o futebol europeu não era o futebol sul-americano, que lhe dava menos espaço e muito mais tareias, como as de Gentile, o central de marcação italiano que o perseguiu pelo campo inteiro.

Nesse campeonato do Mundo em Espanha, Maradona jogava por ele e pelo povo dele, com a pressão de Leopoldo Galtieri, o líder da Junta Militar que dominava o país, sobre os ombros. Em plena Guerra das Malvinas, era preciso um herói, um símbolo; a Argentina tinha Maradona e Galtieri fez o aproveitamento político da praxe. Não resultou e os argentinos perderam as duas guerras. E Maradona também, porque garantiu sentir-se triste pela capitulação diante dos ingleses.

Era tempo de partir.

Após o Mundial, Diego Maradona transferiu-se para o Barcelona por €7,6 milhões, um valor recorde para a época. Esteve na Catalunha durante dois anos que não lhe correram particularmente bem. Sim, marcou os seus golos, um deles incrível ao Real Madrid, depois de fintar Agustín (guarda-redes) e Juan José (o defesa), mas uma entrada violenta de Goigoetxea (Athl. Bilbao) pô-lo fora de combate. Regressou à Argentina, foi filmado a treinar-se com um especialista italiano, aos pulos perto de uma piscina, com os familiares por perto a imitarem-lhe os exercícios, e regressou, mais pesado e coxo, para que lhe retirassem dois parafusos do tornozelo. Essa cirurgia foi também gravada, ele inconsciente com a mão segura pela mão de Cláudia, como um cristo de braços abertos deitado sobre uma marquesa. A vida de Maradona tornou-se um big brother antes de um big brother. E ele permitiria que assim fosse.

Quando voltou aos relvados e reencontrou o Ath. Bilbao na final da Taça do Rei, aconteceu o que toda a gente esperava: um ajuste de contas. O campo de jogo transformou-se num campo de batalha, houve murros, pontapés, agressões, camisolas rasgadas, enfim, o caos.

Para Maradona, aquilo significava o fim da aventura catalã – num dia foi pedir desculpa à federação catalã, noutro foi filmado (claro) a apanhar um avião da Alitalia. Não tardava estava num iate no Mediterrâneo, a beber com os seus compinchas e a assinar uma catrefada de papéis para se tornar, novamente, na contratação mais cara do planeta – €10,5 milhões.

Nápoles era o lugar certo para o tipo errado – só podia dar certo e errado. Durante esse perído, ganhou dois campeonatos (1986-87; 1989-90), uma Taça de Itália (1988-89), uma Taça UEFA (1988-89) e uma Supertaça Italiana (1990); envolveu-se com a Camorra; tornou-se amigo de Carlos Meném, o presidente argentino que chegou a equipar-se com ele para uma futebolada de beneficiência e assim subir os indíces de popularidade; viu a RAI entrevistar Cristina Sinagra na maternidade, garantindo que chamaria Diego ao filho porque este era de Maradona; e ainda viu a RAI submetê-la a um teste do polígrafo, em direto, para provar que Diego era mesmo filho do argentino.

E descobriu-se que havia nele um lado obscuro com o qual até se permitiu gozar, filmando-se a correr numa passadeira num quarto sem luz. Disse ele à televisão: “Telemontecarlo, esta é para vocês – este sim é o meu lado obscuro. E querem o lado branco? É o do suor”. Algum tempo depois, acusou consumo de cocaína e foi suspenso durante 15 meses. Foi em 1991, um ano após o Mundial de Itália que perdeu contra a Alemanha por 1-0, num penálti estranho e duvidoso.

Maradona começou a entrar abruptamente em declínio, trocando o Nápoles pelo Sevilha e o Sevilha pelo Newell’s Old Boys. Jogou, deixou de jogar, engordou e perdeu peso (88 kg para 77 kg) e conseguiu um lugar no Mundial de 1994, renascido, aparentemente rejuvenescido, um pouco mais lento mas com o instinto de sempre – marcou um golo à Grécia, jogou contra a Nigéria, saíndo de campo pela mão de uma enfermeira que o levou ao controlo antidoping. O teste deu positivo e ele foi excluído da equipa – e do futebol. Mas não estava acabado.

Um ano depois, outra vez seco de carnes, foi contratado pelo Boca Juniors, que lhe deu a braçadeira de capitão de equipa e o comando moral sobre o resto dos jogadores. Toda a gente sabia que andara a treinar com Ben Johnson, o sprinter que acusara doping nas Olímpiadas de 1988, mas ninguém se importava com isso, especialmente os argentinos que tinham aprendido a perdoar-lhe tudo, tal como um pai perdoa a um filho.Obviamente, Maradona estava dopado e as imagens da amostra da sua urina passaram na televisão, filmada por um batalhão de jornalistas num laboratório.

Foi a queda do mito que nasceu há 30 anos. E continua imortal.

Eu, como muitos, sou Maradona.

texto escrito por Pedro Candeias in Expresso