Olá, Rui.
Ao tempo que ando para escrever-te, mas o raio do tempo insiste em ser curto e aquilo que tenho para dizer-te não é coisa que se diga sem a atenção que mereces. Tu, que fazes parte da minha história de Sporting, tu que tens crescido de Rampante ao peito, tu que, neste momento, gozas umas merecidas férias rotulado de melhor guarda redes europeu.

Sabes, por mais que um gajo goste de ter a bola no pé, é impossível não se sentir fascinado com essa coisa de ser guarda-redes. Lembro-me, tinha eu os meus cinco anos, de ver a nossa baliza ser defendida por um tipo de farta bigodaça, o Meszaros. As memórias são meio perdidas, mas aquela mania que o gajo tinha de passar a bola por trás das costas ou de lançá-la para a frente a fingir que ia começar a correr e depois voltar a agarrá-la (outros tempo, outras regras) eram coisas que lhe davam um estilo extra.

Depois veio o Damas e, aí sim, as memórias ficaram gravadas. Não havia forma de falar no Sporting sem falar no Damas. Ou vice versa. Símbolo, essa coisa que poucos jogadores podem orgulhar-se de ser. Era o tempo de eu querer jogar futebol desde que acordava até que me deitava, apostado em chegar ao final do dia com as joelheiras de napa feitas num fanico e a ameaçarem a tal da bombazina com que eram feitas as calças da moda (agora imagina o que sofriam os joelhos quando vinha o calor e nós, ao ritmo da música do Verão Azul, queimávamos a brincar todos os três meses de férias). Era o tempo de eu descobrir o Maradona, era o tempo de me espantar com as defesas do Harald Schumacher e do Jean Marie Pfaff e de, numa altura em que se dizia que um tal de Rinat Dasayev era o melhor redes do mundo, eu colocar-me no meio de dois postes feitos de pedras da calçada e gritar que era o Damas!

E custou até gostar de outro guarda-redes. Teve que vir um maluco chamado Tomislav Ivkovic, gajo que é capaz de ter sofrido tantos golos por culpa própria como de safá-los. O Tomi pegou de estaca, defendeu um penalti do Maradona, na eliminatória frente ao Nápoles, e voltaria a repetir a graça em 1990, naquele Mundial onde a Jugoslávia merecia ter feito história. E já que falamos em história e em guarda-redes, o capítulo seguinte escreve-se com um nome: Peter Schmeichel. Jamais hei-de esquecer-me do dia em que chego ao quiosque e vejo uma manchete a dizer “Schmeichel voa para Alvalade”. Fiquei maluco e a loucura haveria de revelar-se incontrolável quando, nessa mesma época, o gigante dinamarquês seria peça incontornável na conquista do campeonato que nos escapava há 18 anos.

O Schmeichel saiu e foi necessário esperar meia dúzia de anos para tu apareceres. O teu nome já era falado como o futuro dono da baliza do Sporting e a teoria reforçou-se quando saltaste do banco, no Caldeirão do Funchal, para defenderes um penalti e segurares a nossa vitória. Escrevia-se o primeiro capítulo da tua história na baliza da equipa principal do Sporting Clube de Portugal. Uma história que tu fizeste por merecer e que é tua por direito. Uma história onde foste capaz de superar tudo e mais alguma coisa, principalmente a desconfiança daqueles de deviam, sempre, apoiar-te. Ao ponto de, e toma lá um segredo que fica entre nós, o único jogo em que estive perto de abandonar mais cedo o meu lugar em Alvalade ter sido por estarem a maltratar-te. Jamais me esqueço daqueles imbecis que, em coro e em cântico, entoavam o nome de um tal Stojkovic pedindo ao treinador para te tirar da baliza (uma vénia ao Paulo Bento e ao momento em que a sua teimosia fez todo o sentido).

Tal como jamais me esqueço que foste tu, durante aqueles anos negros, que tiveste que dar a cara, semana após semana, embaraçado pelo peso dos maus resultados e apenas capaz de dizer que a solução era levantar a cabeça. Foi o que fizeste. Foi o que fizemos e nunca te esqueças que és peça incontornável do regresso do Sporting. São tantas e tantas as defesas que celebrámos juntos, daquele toque epicamente milimétrico no último segundo, frente ao City, ao penálti que disseste que ias defender e defendeste no estádio do dragão, passando pelas saídas incríveis frente ao Chelsea ou frente ao Schalke, sem esquecer, obviamente, aqueles penaltis defendidos na final da Taça de Portugal (a lista é demasiado extensa e, felizmente, existem vídeos de sobra para confirmarem tudo o que de bom fazes entre os postes).

O que aconteceu, recentemente, no Euro é um prémio para um percurso nada fácil. Em França, tal como em Portugal ao longo de todos estes anos, de cada vez que voas para a bola e impedes um golo, fazes engolir em seco todos os que esperam um mínimo deslize da tua parte para te criticarem. E as tuas defesas são ainda maiores quando, no rescaldo, falas delas como algo importante para a equipa. Quando a tua postura se mantém e não puxas para ti o mérito e os louros. Quando nos mostras a todos que o Sporting formou um enormíssimo guarda-redes, mas, mais ainda, formou um homem com H tão grande quando o peso da camisola que veste. Da camisola que eu gostava que continuasses a vestir até ao final da tua carreira e que com essa camisola que é a de todos nós celebrasses todas as conquistas que mereces celebrar.

Por esta altura és capaz de estar a perguntar-me se este é um texto para agradecer-te ou se é um texto para dizer-te o quanto quero que continues de Leão ao peito. É um misto que talvez fique mais em explicado neste último pedaço de história que me apetece recuperar, na segunda metade da década de 60. Nessa altura, o Damas, o tal de quem és sucessor, ficou fascinado com uma fotografia que estava na famosa Porta 10A. Era uma foto do Carlos Gomes, o redes que era suposto o Damas vir a suceder, a fazer uma enorme defesa. E sempre que passava por essa fotografia, ainda com idade de juvenil, o Damas dizia para si mesmo, “vou ver se um dia consigo fazer uma coisa destas”.

Nós já não temos Porta 10A, mas acredito que se a justiça te for feita, algures num corredor do nosso Estádio ou da nossa Academia, a mesma que tem em ti representante da primeira fornada, existirá uma foto tua a fazer uma enorme defesa. Não terás boné, como o Carlos Gomes, mas, tal como hoje, terás milhares de crianças a perguntarem a elas mesmas se conseguirão fazer uma defesa à Patrício, aquele rapaz alto, de sorriso envergonhado, que com esforço, dedicação e devoção conseguiu colocar Alvalade a gritar, em uníssono, “Ruuuuuuuuuuuui!”, de cada vez que voa para uma bola e nos garante serem aquelas as mãos que nos seguram os sonhos.