Desde miúdo tenho tido cães, grandes e incondicionais amigos que um dia, quase sem aviso, nos deixam e partem para um local onde sei que um ano destes os irei encontrar a todos entre frenéticos latidos.
Tenho a certeza que sou Português mas, nas minhas veias corre sangue Alemão, Inglês, Espanhol e, claro, do melhor sangue Beirão que o País produz.

O meu Vinho de eleição é o Dão Tinto, velho e acre que me permite comer Roasted beef, Bacalhau com todos e Eisbein. O Dão rejeita veementemente o Salmão e acha que peixe grelhado com bróculos é uma paneleirice. O Dão tem outra característica, faz-me lembrar pick-nicks na cava do Viriato, em Viseu e restitui-me uma irrepetível alegria de viver que se ausentou para sempre há muitos, muitos anos.

Curiosamente o cozido à Portuguesa, a feijoada e as favas à Lisboeta, bem como as iscas com elas ou as sardinhas assadas tomam, para mim, a dianteira da culinária Portuguesa e dão, a qualquer outra manifestação alimentar 10 a zero, em qualquer campeonato, com algumas honrosas excepções porque perco a cabeça com Steak and kidney pie e quando estou em Londres ou no Norte de Inglaterra (Liverpool ou Manchester) conheço bem os meus pubs de referência, para me lamber com esse fabuloso manjar acompanhado de uma caneca de Guiness.
Poucos pratos são capazes de me alegrar como o Wiener Schnitzel mit Bratkartoffeln, ou seja um bife panado de lombo de veado acompanhado desta espécie única de batatas fritas que se não encontram em mais lado nenhum, as Bratkartoffeln”.

Por outro lado,o melhor Wiener Schnitzel , por acaso, não se come em Viena mas, nos Alpes da Baviera, perto da Áustria, num pequeno Restaurante chamado “Edelweiss Panorama” a 5 minutos do centro de Obersalzberg, de carro e sempre a subir mas, de onde se disfruta a melhor vista de todas aquelas que tive a alegria de absorver ao longo da vida. Não há, em minha opinião, maior beleza natural.

Há muitos anos atrás, em 1984, fui ao Audioshow a Munique e apaixonei-me por um pré-amplificador de phono isto é, para quem não liga a estas coisas do áudio, um aparelho que se intercala entre o Gira-discos e o pré-amplificador que, por sua vez se liga ao amplificador de potência e depois, finalmente, a um par de colunas. Tratava-se do FM Acoustics 222 que acabava de ser lançado no mercado e que me deixou de boca aberta pela qualidade musical que extraía com eloquência de um humilde disco de Vinyl. Durante dois dias vagueei avidamente or entre os stands, ouvi os sistemas e entendi o preço da qualidade. Nessa altura um FM Acoustics custava a módica quantia de 5.000 contos ou seja, em moeda viva actual, 25 mil Euros. Hoje, o modelo que o substituiu, deve andar pelos 35.000 Euros e a sua compra está sujeita a uma lista de espera de alguns cinco anos! Inacessível à minha bolsa como o Cristiano o é à do Sporting.

Mas isto tudo vem-me à mente por causa do Frango, do cão e do Lampião.

O meu cão é Irlandês e delira com frango. Eu detesto frango, fraco sucedâneo da galinha da minha infância, assada no forno com batatinhas novas e servida nos pick-nicks na Cava do Viriato pela minha Avó paterna de eterna saúdade. Ao frango cá em casa chamamos “Lampião”.

O meu cão que se chama Derry (todos os meus Setters se chamaram assim, por virem originalmente do “County Derry” na Irlanda) e que, de entre outras alcunhas, durante os jogos do Sporting, também responde a filho da puta, (sai daí filho da puta) detesta lampiões e ao som da palavra Lampião, desata a ladrar furiosamente com o pelo todo eriçado e eu chamo-lhe, nessa altura, Leão por ser exactamente o que ele parece. Dentes arreganhados, um rosnar cavo e uma voz tão profunda que nos leva a imaginar um cão dez vezes maior, perde a cabeça quando ouve a dita palavra. Não a posso dizer, agora (em voz alta) porque acabou de chegar a casa, vindo da madrugada de caça e eu tenho certamente no tapete da entrada um rato do campo ou um coelhito bravo. Espero que, desta vez seja um coelhito para eu fritar, em vez de um rato que me obrigue a pegar na pá para atirar para o campo, por sobre a vedação.

Porque vos conto, caros tasqueiros, tudo isto? Por um lado para por uns momentos falarmos de outras coisas boas, para além do Sporting mas, também para vos contar uma história que se passou comigo há um par de dias atrás.

Por volta das seis da manhã, invariavelmente, o Derry vai acordar-me, porque está doido para ir caçar. É desesperante quando o Sporting Grande Jornal tem lugar às 21.30h, dura uma hora e se lhe segue o “Especial Jornada” ou a “Curva Belíssima”. Já agora, uma sugestão à curva belíssima, levem lá a Katarina Larsen, a Sílvia Saiote, a Sara Moreira, a Ercília, a Patrícia Mamona ou a Francisca Laia. Mulheres atletas do Sporting que hão-de ter, como a Sara Moreira, histórias de campainhas falsas feitas soar, de propósito, para desestabilizar e desorientar os nossos atletas. Como se não bastassem os árbitros…

Ora bem, há duas ou três noites atrás, o cão desatou a ladrar furiosamente, deviam ser uma 4 da manhã e eu acordei. Acordei e levantei-me a praguejar porque percebi que ainda deveria dormir umas duas horas mais, pelo menos. Porém, o cão não se calava e percebi que andava “qualquer coisa lá fora”. Parti do princípio que seriam raposas pois, têm sido avistadas à noite pelos vizinhos e invariavelmente abatidas, antes de saltarem para dentro dos galinheiros. Fui Buscar a caçadeira. Meti-lhe dois cartuchos para javali, um com bala e outro com zagalote, acendi as luzes de halogéneo do exterior e comecei a abrir a porta mas, hesitei e parei. O cão tinha-se calado em antecipação da caça que iria farejar e perseguir e eu pensei alto: -E se forem Ladrões? Vivo isolado e sozinho no meio do campo e todos os cuidados são poucos.

Aí o cão passou-se pois entre Lampiões e ladrões, foneticamente, para o ouvido dele, a diferença é nenhuma e conceptualmente, para o meu, também não. Por isso insisti, LAMPIÕES, Derry, LAMPIÕES e o cão ficou louco O Pelo vermelho do pescoço e m pé, parecia uma juba as beiças recolhidas e os dentes arreganhados, o arranhar furioso da porta levou-me a trocar os cartuchos por dois carregados com chumbo 6. Se forem Lampiões, levam duas fogachadas que vão nas horas. Chumbo seis, não mata ninguém senão à queima roupa e se os vir correr, antes de chegarem à curva do caminho levam com ele e depois com o cão. Fui à Janela e dei dois tiros para o ar. Extraí os cartuchos e meti-lhe mais dois. Cartucheira à tira colo, saí de casa, fechei a porta e atirei a chave para um vaso. Uma corrida rápida de cinco ou dez metros e vi-os. O cão mais que vê-los, cheirou-os e eu gritei-lhe: “Lampiões Derry, Lampiões! Deram meia volta e desataram a correr, 10 metros, 15 mais um segundo e desaparecem na curva do caminho. Um motor diesel fazia-se ouvir na estrada, para lá da cancela de campo. Disparei uma vez e logo a seguir outra. Um gritou, deviam ser pelo menos três Lampiões-Ladrões. Extraí os cartuchos e espetei lá dentro mais dois e corri para a cancela. Um fourgon afastava-se a soluçar, quando lá cheguei. Mais duas fogachadas, som de vidro a estilhaçar. Desapareceram na noite. O Derry voltava já para casa a dar ao rabo, não sabia em que vaso tinha largado a chave. Nessa noite já não voltei à cama e fiquei de atalaia. Sabia que não voltariam mas, a adrenalina tomara conta de mim, definitivamente.

Tudo isto está a acabar. Dentro de 15 dias o Cão, eu e a minha Mulher vamos de volta à Cidade. É com nostalgia que me despeço do Ribatejo que amo, dos cafés da Aldeia, do Juíz Figueiredo, dos vinhedos Fernão Pires e Malvasia Fina, da latada de uva americana sob a qual soçobro a ler, todos os finais de manhã, logo depois do “Primeira Parte, na Sporting TV”. Lá dentro, na sala, um vinyl da Ella Fitzgerald embala-me no dormitar momentâneo. Levanto-me e chamo o Derry. Vem ao dono! Vamos fazer o almoço e bater uma sorna a seguir.

Desligo a rega automática dos limoeiros, laranjeiras, macieiras e pereiras. Passo pela pereira velha com a noção que estou prestes a deixar de lhe comer os frutos. Caçadeira aberta no braço direito, extraio os cartuxos e entro em casa. Hoje tenho de a desarmar, limpar e olear. É necessário iniciar o empacotamento. Vai estar um ano sem sair do estojo. A cartucheira deixa de estar pendurada no pé da minha cama. Os cartuchos voltam à caixa estanque desumidificada. Alvalade vai ficar a 25 minutos de metro. Sorrio, sei bem por onde passarei todas aquelas manhãs em que não for levar o cão a passear à Quinta das Conchas, no Lumiar. Nem chegarei a ter saudades do cheiro a relva recém-cortada, não senhor. Fiz uma jura para cumprir. O Pedro Guerra não chega ao Natal sem que lhe dê dois murros naquela fuça de paneleiro!

ESCRITO POR Mário Túlio
*às quartas, a cozinha da Tasca abre-se a todos os que a frequentam. Para te candidatares a servir estes Leões, basta estares preparado para as palmas ou para as cuspidelas. E enviares um e-mail com o teu texto para [email protected]