“Só gostava é que, quando comecei, houvesse psicólogos que pudessem dar a volta à minha cabeça. Como aquela senhora fez com o Eder”

Fernando Mamede faz hoje 65 anos. Acabado de sair de uma depressão que durava há quatro anos, o ex-recordista mundial dos 10.000m recorda, em entrevista à Tribuna, os momentos de glória e de tristeza que construíram a sua história de vida

Correu todas as distâncias dos 400 aos 10.000m e tanto no corta-mato como na pista ou na estrada bateu inúmeros recordes nacionais, europeus e mundiais. Disseram dele que do ponto de vista atlético era melhor do que o rival Carlos Lopes. Mas a força que lhe sobrava das pernas, faltava-lhe a nível psicológico nas grandes competições. Tivesse ele conseguido uma medalha olímpica, um titulo mundial ou europeu e seria o rei do atletismo português.

Lembra-se como é que se tornou adepto do Sporting?
O dono da alfaiataria onde o meu pai trabalhava foi meu padrinho e era sportinguista e eu fiquei do Sporting, apesar do meu pai ser benfiquista. Mas o meu pai não ficou chateado porque de quem ele gostava mesmo era do clube da terra, o Desportivo de Beja.

Era uma criança traquina?
Era, era, levei algumas boas, mas tinha de andar direitinho como a minha mãe queria. Era muito magrinho e ela andava atrás de mim com o prato da sopa e da comida para eu comer. Não sei porquê, porque agora como extraordinariamente bem.

O que mais gostava de fazer em miúdo?
Andar na rua. Havia um local sem carros onde jogávamos futebol, no tempo do hóquei fazíamos bolas com meias e inventávamos sticks, na época do ciclismo fazíamos uns números com os nomes dos atletas, colávamos nas costas e corríamos porque não tínhamos bicicletas.

É verdade que tinha o sonho de ser jogador de futebol?
A minha primeira modalidade começa por ser o futebol porque nem sequer havia atletismo em Beja. Lá só se praticavam duas modalidades, futebol e hóquei em patins. Nunca tive apetência para calçar uns patins. Praticava de tudo um pouco na escola, mas gostava de futebol. O primeiro clube que representei tinha uns 14/15 anos, foi o Despertar. Passado um ano mudei para o Desportivo de Beja.

Como surge o atletismo?
O meu professor de educação física tinha de fazer uma seleção entre mim e um colega para o campeonato distrital de corta-mato da Mocidade Portuguesa, em Mora. A escolha calhou em mim e tive a felicidade de ganhar. Começou aí. Dos 15 aos 17 anos só pratiquei atletismo na Mocidade Portuguesa. Fazia dois corta-matos e duas provas de pista, Nacional e Distrital, durante o ano todo.

Como e quando vai para o Sporting?
Foi em 1968. Começo por fazer o corta-mato nacional de juvenis, em Viseu, onde entravam os atletas federados, contra quem era difícil correr porque treinavam mais do que nós, os atletas escolares. Cheguei lá, bati o pé e ganhei. Toda a gente ficou admirada. Depois, no nacional de pista, também nos 1000m, volto a ganhar. Estavam lá vários atletas federados, entre eles um do Sporting. Quando acabou a prova e fomos para o balneário disse-lhe que gostava de ir para o Sporting. Nessa altura eu lia os jornais e na minha cabeça já tinha a referência do professor Moniz Pereira e a de um atleta, o Manuel de Oliveira, que em 1964 fora quarto nos JO de Tóquio nos 3000m obstáculos. Esse rapaz comunicou com o seccionista e no dia seguinte aparece-me uma pessoa com a ficha do Sporting e eu assinei. Tinha 16 anos.

Mas não veio logo para Lisboa.
Não, porque a minha mãe não queria.

Como fazia para treinar em Beja?
Treinava sozinho. Tinha aula de Educação Física duas vezes por semana e enquanto os outros ficavam na escola a fazer desportos eu ia a correr até uma localidade que era a Boavista e voltava. Depois à tarde tinha o futebol. Ou seja, sem querer, já fazia dois treinos por dia. Eu só abandono o futebol quando venho definitivamente para o Sporting.

Quando é que isso acontece?
Em 1969 tinha quase 18 anos. O meu pai teve um problema grave, teve um AVC e ficou paralisado de um lado, a fala também ficou afetada. Ainda andou em Alcoitão, mas não melhorou muito. Morreu muito novo, tinha 48 anos. Eu aí tive um pretexto para a minha mãe deixar-me ir para Lisboa. Nós vivíamos do vencimento do meu pai e de um quarto que alugávamos na nossa casa. Quando ele faleceu eu tinha de arranjar dinheiro, por isso tive o pretexto para vir para Lisboa.

Qual foi o seu primeiro emprego?
Vim trabalhar para a sede do Sporting, na Rua do Passadiço, para a secção de contabilidade.

E os estudos?
Nessa altura frequentava o antigo 4º ano. Já tinha chumbado três vezes no que se chamava 1º ano Geral do Comércio. A partir de uma certa altura, a minha cabeça não acumulava. Eu estudava, estudava, estudava, mas parecia que as coisas não entravam na cabeça. Só ao fim do terceiro ano é que passei para o 2º ano Geral do Comércio. Entretanto, dá o que se dá com o meu pai e eu vim para Lisboa imediatamente.

E começa logo a treinar com o professor Moniz Pereira? Lembra-se da primeira vez que o viu?
Foi à entrada do túnel que dava acesso ao relvado e à pista, em Alvalade. Durante os anos da Mocidade Portuguesa nunca nos cruzamos.

Começa a participar em provas…
Sim, ganho algumas, perco outras. Quando cheguei a Alvalade pensava que ia fazer corridas de fundo, os 3000m, porque sentia-me com aptidão para as fazer, mas o professor mete-me a fazer 400 e 800 m.

Ele explicou-lhe porquê?
Não. Mas percebi logo porque ao fim de um ano e meio eu tinha o melhor tempo da Europa de juniores dos 800m.

E nunca mais parou de bater recordes. A grande meta eram os JO.
Sim, claro. Eu fui logo aos campeonatos da Europa em 1971, em Helsinquia. Fiz o Campeonato da Europa de juniores e logo aí tive o primeiro flash negativo, mas pouca gente se apercebeu.

O que aconteceu?
Não quis ser classificado para a meia final. Não sei porquê tinha medo de fazer outra corrida no dia seguinte.

Fez de propósito?
Sim, porque a seguir tinha a responsabilidade de vencer a corrida já que tinha o melhor tempo da europa de juniores. Eu sabia que ia ficar entre os três primeiros e nos últimos cinco metros, desliguei da corrida.

Como era esse flash de que fala?
Sei lá, a única coisa que me passava era medo. Foi sempre os medos de vencer…

Medo de vencer ou de desiludir?
No princípio era medo de vencer, depois passou a ser as duas coisas.

Porque tinha medo de vencer, qualquer pessoa gosta de vencer?
Lógico. Não sei explicar. Era o peso da responsabilidade, mais nada. Eu já ia para lá tenso, disposto a não ir para a frente, a não estar na frente.

O que disse o Professor Moniz Pereira?
Nada, porque eu não lhe contei. Queixei-me de um pé, de uma lesãozinha que tinha num pé. Nessa altura não tinha coragem de lhe contar.

Quando surge o segundo momento desses?
Só em 1978. De 1970 a 78 não houve problema, porque não tinha responsabilidade nenhuma. No Campeonato da Europa em 1974, em Roma, fui à meia final dos 800m por acaso. Bati o recorde nacional com 47s30 na eliminatoria e fui à meia final. Encarei-a bem, sem medos, sem traumas.

Entretanto casou.
Sim, casei com a Alzira, em 1971. Conhecia-a na contabilidade do Sporting. Vi uma rapariga loirinha, bonita, na altura um pouco reboliça, encantei-me por ela e fiquei por ali. É mais velha do que eu cinco anos. Em outubro de 1972 fui para a tropa e em 1973 tivemos a nossa filha Patrícia.

Fez a tropa onde?
Fui para Leiria onde fiz a recruta. Para arranjarem local para eu treinar só havia uma especialidade em Lisboa, a Polícia Militar. Fui para lá e mal entrei disseram-me logo “estás mobilizado para Moçambique”. Ou seja, a companhia estava toda mobilizada. Estive em vias de aceitar ir para Moçambique e mudar a minha vida toda.

Como assim?
Via essa ida para Moçambique como um passe para a África do Sul, que apesar de não poder ir aos JO, tinha corredores de 800m, 1500m de nivel mundial.

O que o impede?
O Sporting não quis, a minha mulher muito menos. O Sporting e a federação pagaram 15 mil contos a meias, a um colega meu de outro esquadrão para ir por mim para Moçambique e ele aceitou. Já não me lembro o nome dele.

Ficou na PM?
Não. Entretanto consegui através da secção do Sporting que me mandassem para a Defesa Nacional, na Av. Infante Santo. Quando lá cheguei fui ter com o meu general que eral da Marinha e fazia sauna no Sporting comigo. Antes de me apresentar na secretaria fui direto ao gabinete dele, nem fiz continência nem nada. Ele depois chamou o capitão que distribuía serviço e disse que tinha de arranjar um serviço para mim de forma a eu poder continuar a treinar. Mandaram-me para a Comissão de Educação Física das Forças Armadas. Entrava as 14h e saia as 17h. Fazia serviço de escritório. Já tinha tempo para treinar à vontade.

E é assim que continua a ter sucesso.
Sim, cada ano batia um recorde. Fui recordista nacional dos 500m até aos 10.000m de todas as provas. Só não fiz uma, 3000m de obstáculos, porque tinha medo dos obstáculos, tinha medo de cair.

Voltando a 1974, a Roma e à meia final dos 800m. O próximo passo eram os JO de Montreal em 1976, certo?
Antes disso há um pequeno problema entre mim e o Sporting por causa de uma deslocação. Entendi que, porque era Pascoa, devia levar a minha mulher e o Sporting não queria que ela fosse connosco a Vigo. Não apareci para essa estafeta e abriram um processo disciplinar. Decidi a partir daí que mudava a minha vida. Deixei de treinar nas instalações do Sporting, passei a treinar no Estádio Universitário e quando fui para o Algarve de férias com a minha mulher estivemos à procura de emprego. Foi em 1975.

Numa altura em que o país vivia também tempos conturbados, após o 25 de abril de 1974.
Sim, mas eu de política não percebo nada. Até apareceu um título enorme no jornal “A Bola” a dizer “Fernando Mamede não sabe quem é Catarina Eufémia”. Eu não ligava nenhuma à política, nem sei se o meu pai sabia quem era a Catarina Eufemia.

Não fica no Algarve porque?
O professor Moniz Pereira veio ter comigo, disse-me para eu estar sossegado, que ficava com ele no Sporting e que ia apresentar um plano. É na altura que ele entrega na Direção Geral dos Desportos, o tal Plano de Alta Competição. Que previa que os atletas fôssemos dispensados do trabalho da parte da manhã para treinar. Trabalhávamos depois de almoço e ao fim da tarde voltávamos a treinar. Isto durou até 1984. Só nesse ano é que fomos dispensados definitivamente de ir trabalhar. Em 1971, em Helsínquia eu já dizia ao professor que não íamos a parte nenhuma assim porque os espanhóis treinavam duas vezes por dia, e nós treinamos só uma, ao final da tarde já cansados do trabalho. Já tinha essa percepção.

E esse plano mudou alguma coisa?
Com esse plano surgiram logo resultados fabulosos. O Carlos Lopes que até aí fazia 10.000m e na primeira eliminatória desistia ou ia à vida, é logo campeão do mundo de crosse em Chepstow, em 1976

Entretanto vêm os JO de Montreal…
Onde o Carlos Lopes é segundo e eu e o Helder Jesus vamos à meia final dos 1500m, ou seja, já não ficámos na eliminatória. O José Carvalho foi 4º na final dos 400m barreiras, o Aniceto Simões foi 7º, nos 5000m. Começaram a fazer-se estágios… Em 1977 já fiz uns 5000m razoáveis. De 1977 para 1978 o Lopes lesiona-se, o Aniceto também estava lesionado e eu avanço para os 5000m, com um certo receio porque 1500m é uma coisa e 5000m outra. Apesar de eu saber que tinha o fundo cá dentro de mim. Ora, se eu fazia crosse de 10km e só perdia com o Lopes já naquela altura, tinha bagagem suficiente para dar o passo. Mas o professor é que sabia. Em 1978 o professor esteve seis meses em casa com uma pneumonia, mas não deixámos que viesse outra pessoa substituí-lo. Alguém tirava os tempos e nós cumpriamos à risca os treinos bi-diarios do professor.

Em 1978 as coisas voltam a não correr bem em Praga.
Pois, Praga, campeonato da Europa, 5000m. Faço a eliminatoria a brincar com eles. As eliminatórias para mim não eram problema. Dois dias depois, a final. Aí sim o meu sistema nervoso começa a trabalhar e foi fatal.

O que sentiu?
Aí em Praga, fiquei com uma dor de burro. Antes disso, o medo de estar na frente, o medo de competir com os da frente, de estar na frente e ter a obrigatoriedade de ganhar. Já que tinha a marca que tinha e a velocidade final que tinha, era muito difícil alguém ganhar-me. Mas não conseguia. Não conseguia estar na frente.

Dessa vez contou a alguém o que se passava?
Não, mas o professor e o presidente da federação perceberam logo.

O que fizeram?
Eles percebiam o que se estava a passar, mas não fizeram nada. Psicólogos desportivos só havia um, que era o que estava na Faculdade de Motricidade Humana. Nessa altura não trabalhei com ninguém. Não foi uma coisa que aconteceu e que o professor tivesse a percepção de que efetivamente eu precisava de ajuda psicologica para vencer os problemas que tinha. O professor, para dizer a verdade, não gostava muito que alguém se intrometesse no método dele. Nao gostava. E um psicólogo podia querer alterar alguma coisa do treino e ele não lidava bem com isso.

E o Mamede alguma vez sugeriu que precisava de ajuda?
Também não, porque eu pensei sempre que me ia passar.

Acha que se fosse hoje…
(interrompendo)…estava safo! Tinha psicólogos à minha disposição. E tinha agora uma coisa que me safou da minha última depressão, a hipnoterapia.

Desde quando faz hipnoterapia?
Desde junho. Felizmente calhei com uma pessoa que faz corridas populares, que já conhecia o meu percurso. Sinto-me muito bem. A minha mulher também faz.

Porquê?
Ela apanhou um bocadinho por tabela comigo! E a minha filha também, mas conseguiu sair da depressão porque a psicóloga onde ela vai disse-lhe: “saia de casa, não ligue aos seus pais, fuja, não esteja em casa”. E ela fez isso. Ainda foi à nossa psiquiatra, e com ajuda de medicamentos saiu da depressão mais depressa. Mas a minha mulher só saiu agora com a hipnose e depois de mim. Este verão já fui de férias extraordinariamente bem. Há quatro anos que não via praia. Tenho casa no Algarve e normalmente ia uma vez por mês ao Algarve, mas com a depressão deixei de ir.

A sua relação com o Carlos Lopes nunca foi muito boa. Porquê?
Só vou dizer uma coisa que para mim é ponto assente e não interessa falar mais. Enquanto fiz 800m e 1500m nós éramos amigos, quando passei para os 5000 e 10.000m deixamos de ser amigos. Ponto final parágrafo.

Muita gente escreveu e disse que do ponto de vista fisico e biologico o Mamede era melhor do que o Carlos Lopes. Tinha essa percepção?
Tinha. Até porque o professor Moniz Pereira meteu-me a fazer séries com menos intervalos que o Lopes. O professor viu que eu aguentava e fazia os mesmos tempos com menos intervalo entre as séries…

Continua sem falar com o Lopes?
Sim. Houve períodos em que ainda falámos uma coisa ou outra, mas…eu nunca senti ódio. Da minha parte nunca.

Em 1983 nos primeiros campeonatos do mundo de atletismo ganha a eliminatória facilmente, mas na final, vem para último.
Antes disso, não podemos passar por cima de uma coisa que para mim é das melhores marcas que fiz nos 10.000m, o recorde da Europa 27.27,07 que alcancei sozinho, em Alvalade. Aí comecei a sentir que o recorde do mundo estava ao alcance. Nessa altura eu só fazia duas corridas de 10km num ano, mas quando as fazia, fazia a alto nível. Fazia mais provas de 5000m. Repare que eu estive quatro três anos sem perder uma corrida de 5000m no mundo.

Voltando aos primeiros mundiais e à final de 1983…
Tinha medo de ir para a frente. Eu via o Lopes mais à frente, eu queria ir mas parecia que havia uma força negativa que me trazia para trás. Tive momentos em que parecia que havia uma força esquisita, fora do normal, que não me deixava ir para a frente.

Mas ganhou ao Lopes mais do que uma vez, ganhou meetings internacionais, era só mesmo nas maiores competições, campeonatos do mundo e JO que falhava. Seria por causa do público, dos media, por haver maior cobertura mediática?
Não…isso tudo talvez contasse um pouco também, mas era uma percentagem mínima.

É em 1983, depois dessa prova, que tem pela primeira vez apoio psicológico com o professor Joseph Wilson.
Sim. Ele trabalhava na federação de futebol e estava no centro de medicina no Estádio universitário. Houve contactos, mas foi muito fugaz. Depois fui ao meeting de zurique e bato os gajos todos, nos 5000m.

O que lhe disse o psicólogo na altura?
Já não me lembro.

Quando é que o Mamede decide procurar ajuda?
Depois dos JO Los Angeles procurei ajuda. Fui primeiro para o professor Paula Brito, esteve comigo uns meses, tentou o melhor possível.

Diagnosticou-lhe alguma doença?
Não. Era ansiedade. Depois do Paula Brito fui para o Sidónio Serpa. Ele pedia-me para imaginar um grande lago, etc, etc. e aquilo não me entrava na cabeça. Eu não imaginava lago nenhum. Não me entrava na cabeça, não sei. Depois em 1986, a carreira já estava a acabar e já não valia a pena.

Nos JO de Los Angeles percebeu logo que não ia correr bem?
Sim. Cheguei a dizer ao professor na câmara de chamada, depois do aquecimento, “oh professor, eu não vou. Isto vai dar bronca hoje, vai correr mal, não estou a 100% psicologicamente, estou muito mal”. Ele empurrou-me lá para dentro. Era o que Deus quisesse. No início da corrida, como aquilo ia muito devagar, houve uma altura que disse para mim: “isto é capaz de mudar, vamos lá”. Mas depois… Depois fixei a porta pela qual tinha que sair e foi por aí que saí.

O que fez a seguir?
Desapareci. Fui com a minha mulher para o hotel onde ela estava hospedada. Só voltei um dia e meio depois. Quando cheguei ao meu quarto na Aldeia Olímpica tinha um bilhete do professor, a dizer que tinha andado à minha procura e que não me preocupasse que íamos vingar-nos.

E vingaram-se logo a seguir.
Sim, 15 dias depois da figura que fiz em Los Angeles, eu e o António Leitão fomos a um meeting em Zurique com o Moniz Pereira e venci os 5000m. O Leitão foi 2º e o Markus Ryffel 3º. A 250 metros da meta, já eles estavam quase a 200m, deu-me um pico, arranquei, fui buscar o Ryffel em cima dos últimos 100m e vou buscar o Leitão nos últimos 50m. Não se consegue explicar. Ninguém percebia, nem eu.

Trabalhou sempre no Sporting?
Não. Trabalhei no banco, no Crédito Predial Português, de 1980 a 1990. Entretanto, em 1983 abro uma loja na Av. Roma de artigos desportivos, chamada Mamede Sport, pensando que desse para viver. Só que vieram as grandes superfícies e passei para boutique de senhora, com um amigo que me aldrabou. Depois acabámos por ter oportunidade de alugar a loja e foi o que fizemos. O aluguer na Av. de Roma naquela altura era muito forte. Ainda vivemos disso. Depois fui assessor do professor Moniz Pereira, mas só durante um ano ou dois. Voltei a sair, mas continuei a ir treinar de manhã com os irmãos Castro, o Domingos e o Dionísio. Sempre fui uma pessoa interessada no treino, na evolução do treino. O último grande atleta a quem dei conselhos e assisti aos seus treinos foi o Rui Silva.

Quando deixou de correr definitivamente?
Profissionalmente por volta de 90, mas continuei a treinar, só deixei de correr mesmo quando aumentei de peso. Em 1995 fui trabalhar para a Câmara Municipal da Azambuja, a desenvolver o desporto escolar, e aquilo é uma terra pequena com muitos petiscos. Passei dos 65kg para quase 80. Aí parei de correr porque a minha estrutura era de 58 kg e passei a fazer caminhadas.

Quantos anos esteve na Azambuja?
Oito. Entretanto sai o presidente João Benavente, entra outro, começaram a duvidar do meu trabalho e venho embora. Agarro-me outra vez ao professor Moniz Pereira, que na altura era vice-presidente do Sporting. A minha mulher foi falar com ele, a chorar, a pedir-lhe para eu ir para o Sporting. Acabo por entrar, agregado aos núcleos e às visitas guiadas ao antigo estádio José de Alvalade. Eu e o Hilário fazíamos uma apresentação do estádio. Ele fazia a parte do futebol, estava logo à entrada do túnel, e eu estava junto à pista Mário Moniz Pereira e contava um bocadinho da história do Sporting do atletismo.

E continuou no Sporting, até hoje.
É verdade. Sempre me apoiou.

Nunca sentiu discrepância entre o tratamento dado ao Carlos Lopes e a si?
Não, não. Os JO são o evento mais mediático do mundo. Eu sei o peso de uma medalha olímpica. Mas também sei que uma medalha olímpica se ganha com 28m e um recorde do mundo não se ganha com 28m, tem de ser o melhor tempo do mundo. Comparar o recorde do mundo à medalha olímpica é o problema do mediatismo que existe entre uma coisa e outra. Mais nada.

Qual foi o dia mais feliz da sua vida?
O nascimento da minha filha.

E o mais triste?
Los Angeles.

Qual a sua maior frustração?
Não ter ganho nenhuma medalha numa competição de grande nível na pista. No crosse ganhei uma.

O que já disseram de si que mais o magoou?
Quando tentaram distorcer a minha imagem, quase afirmando que eu não ganhava porque não queria. Alguns jornalistas deitaram-me muito abaixo, depois as pessoas liam aquilo, não conheciam as coisas e…foi duro, foi duro.

Sente que faltou-lhe sorte?
Não posso dizer isso. As minhas não conquistas não tem a ver com sorte.

Culpa apenas a si próprio?
Exato. Ao meu feitio, à minha maneira de ser, ao não ser uma pessoa fria.

Voltou a entrar em depressão em 2012.
Sim, durou até há pouco tempo. Eu próprio não sei porquê. Não houve grandes problemas familiares, não há problemas de dinheiros. Não sei. Não sei. Não sei se foi por todo o meu passado e por tudo o que passei no desporto…sempre pensei que este tipo de problemas só tinha no desporto mas que na minha vida pessoal era forte.

Como se apercebeu que estava a entrar em depressão.
Comecei a não querer sair de casa, a não fazer caminhadas. Ficava em casa o dia inteiro a ver televisão. É nessa altura que a minha mulher também entra em depressão.

O que aconteceu?
Também deixou de sair, deixou até de fazer comida de tacho, quem fazia a comida era eu e era toda grelhada. Comíamos quase sempre o mesmo. Só saiamos para ir ao supermercado. Ninguém conseguia fazer nada de mim. Foi uma depressão que entrou comigo…

Estava a ser acompanhado?
Sim, assim que comecei a ter sintomas fui imediatamente à psiquiatra. Ela deu-me medicamentos, vi que aquilo não me estava fazer nada, cada vez estava pior, tentei entrar em contacto com ela, mas ela esteve um mês incontactável e entretanto, fui para outra psiquiatra. Esta também não percebia porque é que eu estava assim. Mas alterou-me a medicação até que ultimamente comecei a sentir-me mais calmo e a melhorar. E depois vem a hipnoterapia.

Nunca procurou outro tipo de ajuda, como a psicanálise, por exemplo?
Não, esta médica sugeriu que eu fizesse no hospital Santa Maria, mas eu neguei, odeio hospitais.

E hoje, sente-se feliz?
Sim. Aliás, a minha mulher agora até diz que ando euforico demais. Eu não noto. Mas sei lá, parece que falo de mais. Mas sinto-me muito bem, não tem comparação possível.

Se pudesse voltar atrás, o que alterava no seu passado?
Não mexia nada. Estive no clube que queria, treinei com o treinador que queria, só gostava é que quando comecei houvesse psicólogos que me compreendessem e pudessem dar a volta à minha cabeça. Como aquela senhora fez com o Eder.

Não acreditaram si?
Não. O professor é que acreditava em mim, tanto que consegue fazer uma passagem de 400m para 10.000m.

Tem medo da morte?
Já tenho pensado nisso. Pergunto-me quantos mais anos vou durar. Já cheguei aos 65 e agora? Duro mais dez anos? Mais?

Gostava de viver até quando?
Sei lá, até aos 95 anos, como o professor.

Nunca foi homem de noitadas?
Não, nem de ir para cafés e tal. Antigamente é que eu fazia uma coisa. Durante 11 meses era um menino “copo de leite”. Aguinha, tudo muito certinho, sem problemas, não havia grandes diversões. Às vezes ao fim de semana quando não tinha competições ao domingo, podia sair ao sábado à noite, podia ir a uma discoteca, normalmente ia à Kapital que era do João Rocha. E durante 11 meses era isto. O 12º, que era o mês das férias, era completamente fora do normal, era de arromba.

Como assim?
Não treinava, não mexia uma perna para correr e era deitar todos os dias, ou quase todos os dias, tarde. Primeiro na Albufeira velha com duas discotecas Velha, depois inaugurou-se o Kiss, fora de Albufeira, depois passou a ser o Capítulo, primeiro o Capítulo 4º e depois o Capítulo 5º. Depois comecei a sentir-me mal porque era o cota que lá estava.

Fez isso quando?
Em meados dos anos 70. Desde que casei e quando comecei a ter carro, ia sempre para o Algarve e foi desde essa altura até aos anos 90 mais. Fiz muitos amigos na Albufeira velha, que ainda hoje são meus amigos . E a minha filha tinha um dia especial para ela, que era o domingo. Iamos jantar e depois levava- a para ver as “bolinhas”. Era a bola de espelhos a rodar e as bolinhas no chão. Iamos à discoteca ao domingo. Não estava lá ninguém, mas os donos conheciam me. Ela entrava e estavamos ali um bocadinho e depois vinhamos para a casa.

Que idade tinha a sua filha então?
Uns cinco, seis anos.

Tem arrependimentos?
Não. Não tenho assim grandes arrependimentos. Talvez de me ter zangado com uma pessoa ou outra. Neste momento só não falo com duas pessoas. Uma era um jornalísta, que era do Diário de Notícias, um benfiquista ferranho que se fartava de me “picar”. Viu que eu era um sportinguista sério, que não estava no clube para tirar benefícios e ganhar dinheiro. Normalmente quando punham a ficha para eu assinar, eu assinava em branco, nem discutia o que levava ou não levava. E a outra pessoa, toda a gente sabe, é o Carlos Lopes.

Como é que gostava de ser recordado?
Isso é dificil de dizer porque hoje em dia, os miúdos até ao 30 anos não sabem nada de nós. Não sabem e digo isto por experiência. Talvez os miúdos muito sportinguistas com pais que falam sobre o clube, sobre a história do clube, talvez estes conheçam, mas tirando isso…

Mas sente que escreveu uma página no atletismo português.
Logicamente que sim e ninguém vai apagá-la. Acho que devíamos servir como referência para as pessoas, para os miúdos. Na escola houve uma altura em que nos puseram nuns cadernos e de vez em quando, nos programas da televisão, nos concursos de perguntas também se referem a nós.

Tem medo de ser esquecido?
Não. Sabe eu paguei um bocado a factura, com aquilo que eu fazia e dizia para benefício de todos, não só meu. Por exemplo que não íamos lá a treinar duas vezes por dia, que o Estado não nos dava condições. Disse isto e sabia perfeitamente que quando as coisas me corriam mal, os jornalístas e as pessoas atacavam-me. Por vezes estava de férias, numa praia a beber uma cerveja com uns amigos e a minha mulher que está junto à água ouve umas sennhoras a comentar “olha, olha como é que ele há de ganhar, está para ali a beber cerveja”. Está tudo dito não é?

Sente-se injustiçado?
Por parte de algumas pessoas sim, de alguns jornalistas que por vezes me jogaram abaixo e hoje me fazem grandes festas. Esqueci tudo. (risos)

mamede

*«eu ouvi o teu comentário» é servido sempre que o homem do balcão consiga distinguir uma boa posta por entre o barulho dos pratos