A palavra ego, costuma significar muitas coisas, dependendo do contexto. No desporto, não traduz ideias positivas. Associamos ego a egocentrismo, a egoísmo, a uma necessidade ou excesso de empenho de um agente desportivo em ocupar as atenções que algo tão mediatizado como o desporto naturalmente é.

Tudo isto porque a maior parte dos desportos com mais interesse por parte dos espectadores, são colectivos e a incapacidade do um se articular com o todo costuma ser prejudicial ao sucesso.

Porém, estamos provavelmente no auge do individualismo (espero eu). O “eu” é hoje a regra base dos comportamentos e em qualquer ocasião do nosso dia a dia podemos constatar a desregulação social que esta máxima oferece. Todos os convénios comunitários que foram construídos em milhares de anos estão a ser rapidamente substituídos por uma arrogância personalizada, por um supremo isolamento, que vai ditando novas formas de nos associarmos em lógicas de interesses e valores cada vez mais circunscritos a pequenos grupos, às vezes, meros clubes de manobra pontual.

Ouço dizer que os clubes desportivos estão a passar pelos pingos da chuva desta desagregação, ao abrigo de uma base de apoio gigantesca, recebendo os caudais naturais de uma coisa gira chamada “sentimento de pertença”. Será?

Será que os atletas de hoje não estarão exponencialmente mais distantes do emblema que os seus antecessores? Os dirigentes não estarão mais motivados pela fama esmagadora que hoje um clube grande oferece, ao invés da laboriosa arte da descrição enquanto se faz tudo o que tem de ser feito? Serão os técnicos e funcionários de um clube entendedores e os primeiros defensores dos ideais do mesmo? Ou será que apenas se centram nos resultados sem conseguirem fazer a mínima distinção entre os emblemas por onde já passaram?

Sabemos as respostas. Sabemos também que os clubes passaram da missão de enraizar valores e promover práticas e comportamentos saudáveis, para serem “apenas” máquinas de conquistas. Quanto maiores, mais máquinas, mais vitórias, mais pontos, mais troféus, mais dinheiro, mais adeptos. E no entanto, eternamente mais vazios, frios, distantes e inacessíveis. Um presidente é um estadista, os jogadores são astros, os treinadores são mestres. Todos metidos em altares dourados, olhando os seus adeptos, sócios e fãs do alto dos seus high profiles, do topo dos seus ordenados absurdamente milionários.

Hoje em dia um grande emblema está completamente divorciado da rua, dos cafés, das conversas e dos convívios. São cúpulas que partilham e comunicam pouco com a plebe, gerindo a ingerência das massas em ciclos eleitorais, caminhando para a infinitamente mais desapaixonada e menos participada realidade do clube – empresa, sociedade anónima, o protótipo do emblema de baseball, basket ou futebol norte-americano. Um modelo que sempre se adaptou melhor a uma filosofia corporate e desprezante da importância dos adeptos ou da contribuição social da competição ou dos clubes. Na verdade não há “sócios”, nem se espera participação activa no rumo do clube, apenas fãs, clientes de merchandising e bilhetes de época.

A era do entretenimento puro e duro, inconsequente e adormecedor, que nos manda ficar no sofá a beber refrigerantes e comer pipocas ou em alternativa a ir aos jogos e beber refrigerantes e comer pipocas. O “nós” não existe. Só existes “tu” e é esperado que compres o que puderes comprar, deixando a gestão e governação do teu emblema “a quem sabe da coisa”. O problema é quando as “máquinas” de vitórias emperram. Aí, o modelo entra em ciclos de autodestruição, já que não serve para nada. Não havendo uma dinâmica de conquista, os adeptos não têm nada a que se agarrar, não têm qualquer tipo de cultura desportiva ou de vivência do clube que vá para lá de achar que o seu emblema é o melhor e que merecia (dê por onde der) vencer. A incapacidade de apoiar algo que não ganha (em inglês a palavra adepto é traduzida por “supporter”, não por acaso) é tremenda, porque o “eu” enquanto adepto prevalece sempre…e “eu” sendo adepto de um clube que perde, da forma mais saloia e imatura, “faz de mim um perdedor”.

Desenganem-se os que acharem que este retrato é exclusivo do Sporting. Não é. Todos os emblemas europeus estão a atravessar este paradigma e por acaso até acho que o Sporting, em Portugal é dos clubes que ainda retém uma massa critica e participativa bastante evidente. Um estudo recente revelou que os adeptos do Sporting são os que se sentem mais ligados e “autorizados” a fazer parte do rumo do clube. Esta legitimidade convicta dos adeptos não ganha títulos, não ganha jogos, mas é talvez o património mais rico do clube. Significa entre muitas outras coisas positivas, que o emblema está vivo e é dinâmico, significa que somos o que menos dependemos do “modelo de máquina” e que somos os que resistimos mais à transição de sócios para meros espectadores. Mas esta vantagem tem o seu lado menos glamoroso para quem quer governar o Sporting como se governam outros emblemas. Há mais ruído, há mais crítica, há mais ingerência, há mais ingratidão e talvez até mais impaciência. Mas esse é o verdadeiro sintoma da democracia – nas ditaduras há apenas uma ideia de rumo, uma voz e tudo o que é feito estará sempre a salvo de crítica.

Remeto-me ao slogan de campanha das primeiras eleições ganhas por BdC “O Sporting somos nós”. O que isto quer dizer é que no Sporting não há divisões, cúpulas e “nobres”, mas sim uma massa diversificada de sócios que em conjunto participam no caminho que elegerem e apoiarem. Isso faz com que quem seja mandatado para governar o clube tenha de entender que é representante dos adeptos coerentes, criticamente positivos, adultos e ao mesmo tempo dos incoerentes, dos bota-abaixo, dos eternamente aziados e dos histéricos e infantis. Obviamente que deve ser imune às vozes de uns e sensível às participações de outros, tal como cada um de nós faz na sua vida privada. Aconselhamo-nos e ouvimos quem nos parece portador de uma visão útil, desvalorizamos e contextualizamos quem nos empresta observações menos válidas.

O que não se pode exigir é um clube ativo, participado, dinâmico, ao mesmo tempo que acusamos as farpas de injustiça e ingratidão. São faces do mesmo ser. São as virtudes e os defeitos de estar ao comando de um clube enorme, muito menos adormecido do que as narrativas mediáticas nos contam. As semanas convulsas são até sinónimo de alguma vitalidade, pois preocupar-me-ei muito mais quando no Sporting a conclusão de um caminho desportivo errático gerar apenas silêncio e alheamento.

Prefiro de longe um adepto furioso (mesmo que a disparar disparates à velocidade da luz) mas que vai ao estádio, vota e debate o clube do que um ponderado simpatizante que ninguém no trabalho consegue bem definir de que clube é adepto e que apenas conhece a cadeira de um estádio nas últimas jornadas quando há uma probabilidade alta em ser campeão.

adeptos na bandeira

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca