A desorganização não é uma consequência, é uma cultura. Está na origem e não no resultado. Tantas e tantas vezes olhamos outras culturas e países e dizemos “devíamos fazer assim”. Maioritariamente porque o resultado de outros é melhor ou maior que o nosso. O que não fazemos é entender como se chegou aquele “produto” que invejamos.

Infelizmente cada vez mais se comprova, mais email menos email, que a estrutura do nosso futebol gira sobretudo à volta de disputas de poder e influência. Isso coloca em lugares chave não os mais competentes, mas os mais manipuláveis. Em vez de elegermos influencers, destacamos influenciáveis. Isto emperra o desenvolvimento da modalidade, estagna a cadeia de valor do nosso produto e promove um ruído ensurdecedor com todos players a “vender o seu peixe”, muitas vezes sem o mínimo de razão ou lógica. Não há moderação, disciplina ou meritocracia. Há apenas uma corrida incessante ao domínio das “cadeiras”.

É neste ambiente de incompetência e desordem que os mais eticamente desqualificados progridem e ascendem a estrelas maiores. Como só vencer comprova mérito e quem devia fiscalizar e ordenar se demite de o fazer, tudo é permitido, tudo. Falsificar, distorcer, manipular, mentir, insultar ou conspirar são verbos corriqueiros no burgo da bola portuguesa e só pensar que isto é verdade seria o suficiente para que todos os agentes fossem afastados dos seus poderes inconsequentes.

A pergunta é sempre a mesma: como inverter o panorama?

Primeiro ponto, há um bloqueio fundamental – muito poucos dos “mandantes” do futebol português querem, de facto, mudar positivamente este desporto. Ouvimos falar em projectos, em evolução, em reestruturações, mas a verdade é que são operações de cosmética, leves pinceladas de açúcar em cima de toneladas de lodo. Nada verdadeiramente muda, ou seja, a mentalidade vigente dos nossos dirigentes é sempre a mesma: “como perpetuo o meu poder e como posso inculpar outros pelo que não tenho capacidade para fazer”. Tenho a certeza que é este o mindset do dirigente do nosso futebol, pois todas as ações significativas, nas grandes oportunidades para fazer algo, são dominadas por este instinto primário e egocêntrico. Na melhor das teorias reptilianas, mantêm-se o habitat à custa de impulsos primordiais como devorar a prole, demarcar o território ou garantir o máximo de alimento disponível, pela maior quantidade de tempo possível.

Portanto mudar algo no nosso futebol, significa antes de mais, conseguir expurgar o status quo atual, conseguir que os “caciques” no poder dos clubes há décadas abdiquem do trono. Entendendo a liberdade democrática como fundamental, torna-se impossível realizar esta purga de forma construtiva. Se os “presidentes” vencem as eleições, como irá surgir o espaço para novas abordagens vindas de outro tipo de pessoas, com outro tipo de objectivos?

Segundo ponto, estamos portanto dependentes de uma mudança de mentalidade, não do dirigente, mas sim de quem o elege dentro do clube. Voltamos à origem, ao ponto de partida, ao adepto. Estarão os adeptos toldados por uma incapacidade para separar o bom do mau, o competente do incompetente, o honesto do desonesto? Porque damos o poder a candidatos a déspotas, a mini-ditadores em potência, a egocêntricos, a pessoas com claros défices afectivos com necessidades extremas de provar o deu domínio, a sua incontrolável sede de afirmação de super macho-alfa? Seremos, há décadas, tão carentes de um “pai-tirano”? Como se explica esta tendência avassaladora por perpetuar figuras que se promovem a si mesmas, em vez de promover os clubes ou o desporto? Penso que podemos excluir a hipótese de os adeptos tomarem sempre a opção errada e em último caso em seu próprio prejuízo. A explicação será mais complexa. Os adeptos, creio, elegem antes de tudo mais, figuras que tenham propensão para o combate, mas não para um combate educado e regulamentar. Os adeptos elegem autênticos gladiadores institucionais, guerrilheiros de palavras e “prometedores” de levantar barricadas e congregar todas “tropas” para a “luta”. Os adeptos optam, primordialmente, pelos rebeldes e pelos piratas, personificações da revolta que os mesmos sentem, manifestações de um medo ancestral – perder.

bola lama

Terceiro ponto, é a incapacidade para saber perder, para aceitar e conviver com a derrota como algo circunstancial que, na minha opinião, leva a destacar entre a massa de adeptos, os mais aptos a recorrer a todo o tipo de expedientes para vencer, os mais sérios candidatos a fazer da derrota uma impossibilidade. Esta psicose geral é uma mola permanentemente activa, que torna quem perde num demónio e quem ganha num deus. A história do futebol luso, nos últimos 30 anos não contempla figuras pacíficas, consensuais, construtores de ideias positivas, intermediadores ou senadores de evoluções serenas. Só e apenas grandes vencedores ou enormes perdedores. E isto deve-se a um profundo défice de mentalidade desportiva, a uma profunda distorção dos valores do desporto, a que podemos agradecer também aos jornais, tv’s, rádios e aos jornalistas desportivos que aí trabalham, sempre os primeiros a lamber as botas aos caciques, a louvar como mérito a sagacidade de destruir o adversário por meios “alternativos” e a promover mensagens em troca de favores deontologicamente proibidos. A crítica do 3º poder desde há muito está ausente e em vez de auxiliar discursos lógicos e racionais, apaixona-se pelas emotivas batalhas, suor e sangue que garante o apelo ao pior dos voyeurismos.

Quarto ponto, é para mim evidente e absolutamente comprovável que o maior problema do nosso futebol se chama analfabetismo desportivo. Não confundir toscamente com “ter ou não praticado desporto”. Conheço grandes ex-atletas que de cultura desportiva só assimilaram a parte de “ser competitivo” ou o “foco no objectivo”, desprezando o que é o “ouro” da prática desportiva, mental e física – a superação, a resiliência, a capacidade para ultrapassar obstáculos individualmente e em equipa. O desporto não emula a sobrevivência natural da espécie, é a evolução desse comportamento, é o elogio à força ao serviço da elegância, da ordem e da convivência e não o elogio à força bruta que esmaga jurassicamente a oposição inimiga. O futebol português está quase todo errado, precisamente porque os seus agentes têm uma ideia completamente errada do seu propósito e da sua função. Porque, por sua vez, os adeptos têm noções completamente absurdas do que é ser um adepto de um clube ou um adepto de futebol. A forma como esta problemática se envolve com largas somas de dinheiro, resulta num épico caldeirão de poções mágicas que atrai gente sem escrúpulos como abelhas ao pólen. O caminho mais rápido para um crápula ter sucesso hoje em dia, não é endividar um banco, falsificar documentos, desviar fundos do Estado ou extorquir dinheiro a inocentes. É fazer tudo isso dentro do universo desportivo, com a garantia de impunidade que todos adivinhamos.

É uma auto-estrada, sem “portagens”, que trazendo um advogado, um contabilista e dois ou três políticos e chefes de polícia no veículo, promete um percurso tranquilo rumo ao desvio de verbas e lavagens de capital, coisas que ao longo dos anos se vão acumulando nas off-shores pessoais.

Quinto ponto, quando já não conseguimos distinguir um dirigente de um bandido, chegamos ao fundo do poço e à fase de ruptura. A partir deste patamar já nada interessa verdadeiramente poupar pois tudo estará ferido de verdade e legitimidade. A mentira e a trapaça acompanham os “vencedores” de braço dado e não há nada de meritório a destacar. A glória será dada não ao melhor, mas verdadeiramente ao pior dos competidores. Invertemos a noção de certo e errado, invertemos a ordem principal de evolução – a desunião, o conflito, o egoísmo. Voltamos à caverna e à condição animalesca de temer a escuridão da nossa própria brutalidade. Nós não somos a vítima, somos o agressor e todos os dias ajudamos a que se escreva mais uma página negra no lento descender ao lodo primordial, ao caos.

Regresso à pergunta “como inverter o panorama?” e arrisco uma resposta – cada um de nós, cada adepto deve destacar e elogiar comportamentos lógicos, racionais, gestos de desportivismo, atitudes de saudável capacidade de convivência. Deveremos também condenar, protestar, acusar e recusar o contrário – convocações à irracionalidade, apelos à emoção despropositada e cega, rejeitar pactos com a ignorância ou a convivência com manobras que ferem a verdade desportiva. Está completamente nas mãos, mente e voz dos adeptos. Ou lutamos contra a merda que é o nosso futebol e a merda que são os nossos dirigentes ou seremos tão ou mais culpados do que eles.

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca