Numa belíssima entrevista conduzida por Rui Miguel Tovar, para o Observador, Augusto Inácio “deita cá pra fora”. Não tudo, porque se fica com a ideia que o homem tem tantas histórias que dão para passares uma semana a ouvi-lo, mas o suficiente para ficares a saber mais do ano em que voltámos a ser campeões, do Roquette, do Duque (e vais vomitar), do Acosta, do André Cruz, do Pedro Barbosa (e vai doer), do Jorge Jesus, do Bruno de Carvalho (que falou com o Bielsa antes de falar com o Van Basten), sem esquecer momentos como o México 86 ou como há décadas já as selecções jovens eram manipuladas para retirar protagonismo ao Sporting. «[…] havia uma mafia que vou-te dizer. Há uma altura em que estamos todos os jogadores, uns 40 ou 50, e o selecionador Peres Bandeira pergunta ‘quantos há do Porto?’. A malta levanta o braço. Depois repete a pergunta para o Sporting. Nós, que éramos uns 10 ou 11, levantamos o braço e lembro-me perfeitamente dele ter dito “’inda, tanta gente do Sporting”. Na segunda convocatória, já só foram cinco e eu fora.»

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[estacionamento pago, cancela ao alto e cá vai disto] Qual foi o teu primeiro carro?
Austin 1300 GT. Havia os Minis rápidos, todo artilhado. Tinha o tecto de vinil. Eu quero um carro mais comprido, com mais segurança.

Compraste esse carro?
O carro custava 91 contos. Já não sei se tinha 41 e o meu pai deu-me 50 ou se meti 50 e o meu pai deu-me 41. Deu-me não, emprestou-me.

Ahahahah.
Ah pois. Larguei ali todo o meu dinheiro e ainda pagava cinco contos por mês ao meu pai. E, pronto, o carro ficou pago em dez meses.

Estavas onde?
Jogava no Sporting.

Ganhavas quanto?
Sete contos e meio nas duas primeiras épocas, depois subi para 12 contos e meio. Ouve lá, desses sete contos e meio de ordenado, dava cinco contos ao meu pai e ficava com dois contos e meio. E já era casado. O que é que acontecia? Almoçava em casa dos meus pais, jantava em casa dos meus sogros. Sempre, ahahahah. Só em comida vai um quarto do salário.

[um carro à nossa frente não anda nem desanda e Inácio desabafa “’tá certo, ò pastor, eu vou adivinhar para onde vais”]

Porquê a subida de sete para 12?
Renovação do contrato.

Quem era o presidente?
Como jogador, só tive dois presidentes na minha vida: João Rocha e Pinto da Costa.

Apanhaste o João Rocha desde quando?
Desde sempre. O meu passado no Sporting inclui um ano de juvenil e outro de júnior.

Só?
Não havia iniciados.

Ai não?
Não havia nada.

E jogavas onde?
Na escola. E não era futebol de 11. Havia era as captações, claro. Um dia, pedi ajuda ao meu professor de ginástica – Tavares Júnior, nunca mais me esqueci do nome dele – e fui aos treinos de captação. Quando apareci na 10A, só putos e mais putos. Da minha idade. O treinador era o César Nascimento. Bem, fui para o treino e perguntaram-me ‘onde é que jogas, miúdo?’.

E tu?
Extremo-esquerdo. Era habilidozito mas as minhas bolas nem chegavam à área. Não tinha força, porra. Para a segunda parte, perguntaram quem queria trocar de lugar. Eu disse logo que sim e escolhi defesa-esquerdo. Já estava de gatas e queria era descansar um bocadinho, ahahah. No final do treino, o gajo disse-me ‘miúdo, aparece cá outra vez em tal dia’. Lá fui e quiseram que ficasse no Sporting. Dois treinos foi o suficiente.

E foste campeão nacional de juvenis ou juniores?
Epá, não fomos, não fomos. Ainda chegámos à final dos juniores e o treinador era o Osvaldo Silva.

E a equipa do Sporting, quem eram os artistas?
Boa equipa, digo-te: Paulo Rocha, Palhares, Amado, Zezinho, Dinis, defesa-direito, Valter guarda-redes, Jorge, Henrique.

Perderam para?
Porto, 1-0.

Quem marcou?
Gomes, que ainda tinha idade de juvenil e já jogava nos juniores, vê bem.

E a selecção jovem?
Não cheguei a ser internacional júnior. Mas aí vou dizer-te uma coisa: havia uma mafia que vou-te dizer. Há uma altura em que estamos todos os jogadores, uns 40 ou 50, e o selecionador Peres Bandeira pergunta ‘quantos há do Porto?’. A malta levanta o braço. Depois repete a pergunta para o Sporting. Nós, que éramos uns 10 ou 11, levantamos o braço e lembro-me perfeitamente dele ter dito “’inda, tanta gente do Sporting”. Na segunda convocatória, já só foram cinco e eu fora.

Pfffff.
E eu lixado. Quem é que jogou a defesa-esquerdo, sabes?

Nem ideia.
Um David, que era central do Benfica, e um Rosas, que era central do Belenenses e, às vezes, também jogava a defesa-direito. E eu fora. ‘Tás a ver, não é? Até que fui à seleção de Esperanças, com o selecionador Rodrigues Dias, e ainda à B. Depois A, tenho aí umas 25 ou 26 internacionalizações.

Estreias-te quando?
Em Limassol, Chipre.

Ganhámos?
Marcámos primeiro, eles empataram e depois fazemos o 2-1 por Manuel Fernandes, Nené ou Vítor Baptista

Xiiiiii, o Vítor Baptista.
Desculpa, esse 2-1 não é dele.

Então?
Ele vai connosco e volta mais cedo.

Como assim?
É uma história muito gira. A gente concentrou-se na Praça da Alegria e o gajo apareceu, sem passar cartão a ninguém. Nem bom dia nem boa tarde, zero, zero. O Vítor aparece-nos com barba por fazer, com um casaco de veludo verde, com a gola virada para cima e as botas cheias de lama. O nosso voo era Lisboa-Atenas, dormíamos em Atenas e voávamos para Limassol no dia seguinte. Quando chegámos a Atenas, o Juca disse-nos para ir ao hotel pousar as coisas e depois descer para treinar. Um treino da tanga, daqueles para tirar o avião das nossas pernas. Era uma expressão do nosso tempo: umas corridinhas e tal. A gente subiu aos quartos, pousámos as coisas e descemos, já equipados para a corrida. Todos, menos o Vítor: o gajo está sentado, a ler uma revista, com os pés em cima da mesa e vestido com a mesma roupa da Praça da Alegria. O Juca chega-se ao pé dele, pergunta-lhe pelo treino e ele ‘a mim, pessoalmente, ninguém me disse nada’. Ahahahahah.

E depois?
O Vítor equipou-se e lá foi para a corrida, só que vê bem isto: nós íamos, ele vinha; nós vínhamos, ele ia. Bem, o Juca passou-se. No dia seguinte, deram um bilhete ao Vítor e ele voltou para Lisboa.

Esse Portugal-Chipre é particular?
Não, não, é qualificação para o Mundial-78.

Qual é a tua primeira memória do Mundial?
Do nosso, o de 1986? É o aparato à chegada ao México, quando saímos do avião e entrámos no autocarro para Saltillo. Era só polícia, polícia, polícia e mais polícia, à frente, atrás, no lado esquerdo, no lado direito, em todo o lado. E eu a pensar ‘mas alguém vai atirar uma bomba?’

Quando chegaram a Saltillo, imagino.
Nem me fales. Foi aí que se deu um grito de revolta para acordar estes gajos, os nossos dirigentes, que queriam aquilo mais por diplomacia, por aparato, por vaidade pessoal do que para ajudar os jogadores. Digo-te sem merdas, o campo de treinos era assim [Inácio tira a mão direita do volante e inclina-a para cima] e depois assim [agora com a mão esquerda, inclina-a para o lado esquerdo]. E eles [os dirigentes] diziam ‘isto é provisório’. Provisório o caraças. Fazíamos buracos normais na relva com as chuteiras e, no dia seguinte, aquilo estava tapado com cimento. Era impressionante, pá. Isto tem muitas histórias. Uma vez, o Futre lesionou-se num treino e, quando chegou ao quarto, estavam a revistar-lhe as gavetas todas, a roubar-lhe. Outra vez, estava um particular com uma seleção qualquer.

Era o Chile, não era?
Acho que sim, já não me lembro. Pronto, era o Chile. Imagina, o Chile. No balneário, estávamos nós a equipar-nos e mais malta de fora. Aquele campo tinha piscina ali ao pé e então estávamos a dividir a porra do balneário com malta estranha. Muita gente mesmo.

Ahahahahah.
Calma, há mais. Entrámos no campo e ficámos à espera da equipa adversária. Quando eles aparecem, começámos a ver caras conhecidas. Sabes quem eram? Os gajos do hotel, tipo ‘espera lá, este gajo está todos os dias na sala do pequeno-almoço do nosso hotel’ Dasssss, íamos jogar contra os empregados do hotel. Assim não, pá.

Ainda assim, a estreia é gloriosa: 1-0 à Inglaterra.
Resultado fantástico. E boa exibição. A nossa equipa era boa. Dividida, sim, mas boa.

Dividida como em Euro-84?
Isso. E aí com selecionadores a mais.

Como se explica o sucesso de 1984 e o desnorte em 1986?
Não se explica, há coisas inexplicáveis no futebol. Em 1984, com o grupo dividido e três ou quatro selecionadores, tem tudo para dar errado e dá certo. Dois anos depois, 1-0 à Inglaterra do Bobby Robson e depois é aquilo com Polónia e Marrocos. Há uma coisa engraçada depois do 1-0 à Inglaterra: o embaixador de Portugal no México entra no nosso balneário e o Jaime Pacheco, ainda todo ensaboado, diz ‘ò taxista, agora é que vens cá dar os parabéns à gente, ò taxista’. C’um carago. Pergunta ao Pacheco, ahahahahah. Depois há mais guerras.

Quais, por exemplo?
O Álvaro tinha de jogar. Só que eu era o defesa-esquerdo e o João Pinto o defesa-direito. Dividia o quarto com o Morato e ele disse-me ‘já foste, no próximo jogo já foste’.

E tu?
Já fui, como?

E o Morato?
Já foste. Já fizeram a equipa. E com quem é o Morato se sentava à mesa? Aquilo eram mesas de quatro: Morato, Bento, Carlos Manuel e Diamantino. Os cabeças, percebes?

E agora?
No dia seguinte, ao pequeno-almoço, entro na sala e digo bom dia, alto e bom som. Depois, solto-me: ‘ai de algum filho da p*** que me tire da equipa, ai de algum filho da p***” Falei bem alto para o Torres ouvir. A malta daquela cabeça a perguntar o porquê daquilo tudo e eu continuei ‘ai de algum filho da p***, agora é que isto vai rebentar’. Foi o Álvaro para a direita, no lugar do João Pinto, e eu continuei à esquerda, ahahahah. Fiz os três jogos, sempre 90 minutos. E há coisas [Inácio estica a mão para o céu], ele não dorme.

Então?
Então não é que o Álvaro é que mete em jogo o Smolarek no 1-0? O Álvaro não fechou, golo da Polónia. No último jogo, pá, estava tudo feito. Se o Torres quisesse, era empate. Falava-se com o Faria, selecionador brasileiro de Marrocos. E o Torres era assim: Marrocos, empate, que vergonha. Era vergonha era, levámos 3-1. Bouderbala, nunca mais me esqueço desse cabrão, porra. Bou-der-ba-la. O gajo jogava para caraças. Todos eles, aliás. O que eles corriam. A gente com a língua de fora e eles pim pim pim. Fomos, 3-1.

E a viagem de regresso?
Nunca mais acabava. Não me lembro de escalas nenhumas nem da chegada em si, sabes? Já estávamos todos fartos uns dos outros. Além das más condições de trabalhos e dos resultados, depois meteu-se a política, e era o Partido Comunista, e era o Manuel Alegre, e era o Fernando Correia a fazer o comunicado, e era o Bento e o Diamantino a falarem com Lisboa, e era reuniões para ali, reuniões para aqui, uma confusão danada.


Olha, houve uma cena com o Diamantino e não nos falamos desde então. Pedi-lhe segredo numa coisa e a primeira coisa que ele fez quando chegou ao hotel foi desbroncar-se. Beeeeem, chamei-lhe tantos nomes, estivemos quase à batatada. Nunca mais nos falámos. Como jogador, era craque. Mas convencido, hã.

Nunca mais se falaram, de 1986 até hoje?
Nunca mais. Sei que as pessoas mudam com a idade e ele até pode estar outro, mas era muito mauzinho naquela altura e a sua personalidade não batia com a minha. Só para veres o estilo: uma vez, treinava eu o Vitória [de Guimarães] e ele a fazer comentários para a SportTV. Estamos a ganhar 2-0 e ele ‘se este Vitória não é campeão, então não sei quando é que é’ e mais patatis patatás patatás patatás, porque o Vitória não tem treinador. Estás a ver o espírito do gajo? Fizeram-me perguntas sobre o assunto e disse-lhes que há pessoas que vêem bem, outras que, por infelicidade, são zarolhas e, se calhar, óculos não chegam, só com lentes da grossura das garrafas de champanhe. E mais: já agora, digam-me quando é que o Vitória foi campeão? Quando? Arrasei-o, como é lógico. E não nos falamos.

Já lá vão 31 anos, é muito.
Então, estive vinte-e-tal anos sem falar ao jota jota, quase 30. Saio do Sporting por causa dele, mas fiz as pazes. Até porque eu não sou rancoroso e ele também procurou-me.

O Jesus?
Sim, fomos almoçar. Até porque só falei bem dele desde a sua chegada ao Sporting. Então se ele é o treinador do meu clube, ia dizer mal dele? Isso é chutar para a minha baliza, não o faço. Quero que o Sporting ganhe, por isso apoio-o. Talvez aí ele tenha começado a pensar que eu não seria aquele gajo que ele julgava. O Jesus percebeu e fomos almoçar. Ele, eu e o Bruno. Começámos a almoçar e entendemo-nos logo. Siga para a frente, nada de rancores nem de vinganças. Era o que faltava.

Começou quando esse folhetim com o Jesus?
Em Felgueiraaaas [com um tom de voz malandro]. Saio do Felgueiras para o Marítimo em Fevereiro de 1997, a dois pontos da subida para a 1.ª divisão. Quando cheguei a Felgueiras, só tinha cinco jogadores com contrato a 23 dias de começar o campeonato. Estás a imaginar a quantidade de jogadores que vieram às pazadas para serem observados? Bom, começa o campeonato e damo-nos bem. Em Fevereiro, a dois pontos da subida e com nove ou dez de avanço em relação à descida, aparece o Marítimo, que era da 1.ª. O primeiro convite até foi da Grécia, mas fiquei. Ao segundo convite, saí. Entra o Jesus, que perde em casa com o Beira-Mar, empata na Covilhã, perde em casa com a Académica e perde em Paços. Ou seja, perde a subida. O que ele vai dizer aos jornais? ‘Se eu tivesse vindo mais cedo, teríamos subido; quando cheguei, estava a nove pontos da subida e só com dois pontos de vantagem sobre a despromoção.’ Ou seja, inverteu tudo. Claro, os jornalistas vieram falar comigo e eu despachei-os.

Como?
Vão ver a classificação, onde é que estava o Felgueiras quando saí. Era fácil. Só que os jornalistas queriam mais e perguntaram-me o que achava de Jesus.

E tu?
É um grande filho da, não tem caracter nenhum, é uma g’anda merda. Podem escrever isso. E eles escreveram. Há mais.

Onde?
Na Madeira. Eu treino o Marítimo e o Jesus vai para o União. Há um dia, vou almoçar com o meu adjunto a um restaurante e vou dizer-te é só histórias isto. O meu adjunto entra antes de mim e sai de lá a dizer ‘ouve lá, está ali o cavalo branco’.

Cavalo branco?
Era a alcunha dele, eu chamava-o boi branco. Aquela juba branca e estava sempre vestido de preto. Só percebi muito mais tarde que ele vestiu-se de preto uns nove anos em homenagem à mãe. E o meu adjunto disse-me que ele estava no lado direito. ‘Então arranja-me uma mesa no lado esquerdo’, disse-lhe. Sabes como é que entrei?

Nem ideia.
De costas, ahahahahah. Ouve lá, isto é um filme interminável. É só histórias. Vou contar-te outra: dia de treino nos Barreiros, nós temos uma hora e meia por semana e o União entra em campo depois do Marítimo. Ainda estamos nos alongamentos e eles entram. Eu, não estás bem a ver, completamente passado e com a voz grossa: ‘aí! Que ninguém meta o pé dentro do nosso templo, ainda estamos a treinar’. Na verdade, já passavam cinco minutos da hora, ahahahah. O Jesus faz queixa a não sei quem e vem de lá o Rui Lopes, adjunto do Jesus [Inácio baixa a voze fala delicadamente]: ‘ò Inácio, dá para começar o nosso treino?’.

E tu?
Então, olha, dás a volta à pista e ficas no outro meio-campo? Assim foi, o Rui Lopes aceitou e o União deu a volta. Ahahahah.

Tu és treinador desde quando?
A primeira experiência foi nas camadas jovens do Porto.

Ahhhh, pois foi. Tinhas o Pauleta, não tinhas?
O Pauletaaaaa, isso é juniores do Porto. Não ficou no Porto, saiu.

Então?
Epá, o plantel tinha Toni e Miguel Bruno como avançados. E eram os avançados da seleção portuguesa. O Toni, então, até foi ao Mundial sub-20 em 1991, aquele que ganhámos, e ele até foi titular. Era ele e o Gil, lembras-te? Mais Figos, Rui Costa, Jorge Costas e por aí fora. Pronto, tinha Miguel Bruno, Toni e Pauleta. Disse ao Pauleta que ele seria a terceira opção: ‘ò miúdo, se quiseres ficar aqui, fica; mas seria melhor saíres daqui para jogar todas as semanas.’

E o Pauleta?
Saiu mesmo e foi o melhor que fez. Voltou para o Santa Clara e construiu uma carreira brutal, um sucesso tremendo.

Também havia o Rui Jorge nesse Porto, certo?
E ele nem era titular.

Então quem era?
Álvaro Gregório. Há coisas na vida que vou-te dizer.

Então?
Estou no Algarve a passar umas férias, quando recebo uma chamada do Raul Peixoto, dirigente do Porto. ‘Ò Inácio, temos um convite para ir jogar um torneio à Venezuela e já aceitámos.’ E nós sem Toni nem Álvaro Gregório, ambos num Europeu pela seleção. Perguntei pelas equipas e só havia Porto mais Perugia.

E o resto?
Só seleções. Dois grupos de quatro, o vencedor de cada um vai à final. O torneio era de sub-23, nós éramos sub-18. Lá fomos sem defesa-esquerdo. Ah, espera aí: quanto tomo conta dos juniores do Porto, o Rui Jorge estava na lista das saídas. E eu estranhei porque lembro-me de ter gostado de o ver a jogar num dia em que fui ver os juvenis à Constituição. Perguntei por ele e responderam-me Rui Jorge. Fiquei com o nome na cabeça. Quando o vejo na lista de dispensas, questionei ao Costa Soares e ele justificou que o Rui faltava muito aos treinos para ir às aulas.

E tu?
Meti um travão e disse ao Costa Soares que ninguém saía dali. Eu é que ia fazer a triagem. Queria ver e decidir, até porque tinha de fazer duas equipas, uma para os distritais e outra para os nacionais. E o Rui Jorge ficou. No primeiro ano, o titular é o Álvaro Gregório. Vamos então recuperar o fio à meada: estamos na Venezuela a jogar a final desse torneio e o Rui Jorge é o titular. Nem está bem a ver, o estádio completamente cheio, a abarrotar, umas 30 mil pessoas. Acho que foi contra a Venezuela. Ou então Peru, não me lembro já. Sei que chegámos ao estádio umas duas horas antes do início do jogo e entramos no balneário que estava cheio de patas de coelho e sei lá o que mais. Superstições deles. Invadimos o balneário, mandámos tudo para o chão e tranquei a porta. Quando a seleção chegou, era coño para aqui, coño para ali, os gajos estavam lixados connosco. E ainda não tinha começado o jogo.

Começa e depois?
Ganhámos 2-0 e fomos direitos aos adeptos para festejar o título. O Rui Jorge faz um grande torneio, só que é o Álvaro Gregório quem começa a época a titular. Cheio de peito, não joga nada na primeira jornada. Chamei-o ao gabinete e perguntei-lhe quantas internacionalizações já tinha. Ele responde-me umas 30 e eu ‘mete isso pelo cu acima; isto é o Porto, não é a seleção; ou aplicas-te ou não penses que jogas aqui com a camisola da seleção.’

E?
Ao segundo jogo, nada. Fora. Entra o Rui Jorge. Nunca mais saiu da equipa.

E foram campeões nacionais?
Claro. Em 12 pontos possíveis na final four, fizemos 11. O empate é um 0-0 na Luz, com o Benfica, treinado pelo Nené.

Nené com quem dividiste balneário no Euro-84?
Não, porque falho o Europeu. Lesionei-me e não fui a tempo, embora tenha feito todos os jogos de qualificação.

Então também não jogaste a final da Taça das Taças-84?
Ainda fui ao banco.

E que tal?
Vai-ta lixar, aquilo é um sofrimento que nunca mais acaba. Jogou o Eduardo Luís no meu lugar. Foi uma pena, porque jogas sempre e, de repente, falhas a final. Fiz tudo: Aberdeen, Shakhtar, Rangers e Dínamo Zagreb. Na Taça dos Campeões, é o contrário: falho a meia-final em Kiev e jogo a final.

Não foste a Kiev? Esse jogo é mítico.
Pois é, mas estava lesionado. E não fiquei muito triste.

Então?
Ainda se falava muito de Chernobyl e fiquei por cá. Eles que fossem lá apanhar com aqueles ares e se qualificassem, ahahahah.

E jogar a final com o Bayern?
Cala-te, nem te digo nada. Só o ambiente antes do jogo propriamente dito é um filme. Por acaso, antes da final em 1984, foi pior.

Porquê?
No hall do hotel, havia pessoas a querer que usássemos botas assim, botas assado.

Chuteiras?
Pois. Davam botas, davam dólares, davam tudo. Valia tudo, entre Nike, Puma, Adidas.

Eras o quê?
Adidas. Gostava mesmo. O calçar da Adidas era bom, confortável. O da Puma, por exemplo, era duro e tínhamos de colocar uma espuma para não magoar os calcanhares com a fricção e isso. Agora, calças as botas e começas a jogar. Antes, davas as botas aos juniores para eles baterem as botas. Ahahahahah. ‘Miúdo, bate aí as botas’. E eles todos contentes, com as botas novas e tal. Passado um tempo, as botas já estavam ao nosso jeito e os calos estavam nos pés dos putos. Ahahahahah.

Quem é que marcaste do Bayern nessa final de Viena?
Às vezes, o Kögl. Outras, o Rummenigge. Há uma cena que nunca esquecerei: entre o 1-1 e o 2-1, o Madjer está todo roto, encostado à linha lateral, a ser assistido. Ele no chão, só com dores, e nós a empurrar-lhe o pé para aliviá-lo. Às tantas, muito a esforço, ele lá se levanta. É aí que o Celso tem a bola dominada e olha para o nosso lado. Fazemos sinais para o árbitro, ele manda entrar o Madjer e somos nós quem o empurramos para dentro de campo. O resto é história. O Celso mete-lhe a bola, o Madjer finta um e cruza para o 2-1 do Juary.


Antes do jogo, a caminho do estádio, os adeptos alemães a fazerem-nos a sinaléctica de quatro ou cinco. Eu, dentro do autocarro, a dizer-lhes ‘ao intervalo, quatro ou cinco ao intervalo’. Lá dentro, estamos em fila para entrar em campo, e os gajos eram uns animais. Se lhes tocássemos, a gente parecia que estava a bater contra um muro. Eles tinham cá uns caparros. Eles deviam comer bifes desde pequeninos e nós leite. Eles começaram a intimidar e ficaram em vantagem. Ao intervalo, o Artur Jorge deu-nos uma descasca: ‘têm 45 minutos para entrar na história, vocês nunca mais vão ter esta oportunidade’. E nós, 1-1 mais 2-1, No controlo anti-doping, eu e Frasco pelo Porto, Rummenigge e Kogl pelo Bayern. O Frasco foi o primeiro a despachar-se e diz-me ‘ò Augusto, vê se te despachas’. Depois, virou-se para os alemães e atirou: ‘ali dentro, levaste 2-1; aqui já está 1-0’. Ahahahah. Ahahahahah. Ahahahahah. Grande Frasquinho.

Acabou quanto?
O Kogl fez o 1-1 e eu o 2-1. Virei-me para o Rummenigge e perguntei-lhe ‘do you speak english?’.

E o Rummenigge?
So-so.

E tu?
In the field, 2-1 for us. Here, in piça, 2-1 too.

E o Rummenigge?
Só abanava a cabeça a dizer ‘yeah yeah’. E depois continuámos a ganhar: Taça Intercontinental e Supertaça Europeia. Aí, já com Ivic.

Qual a diferença entre Artur Jorge e Ivic?
Sabes que o Artur Jorge naquela altura, dasssssss. Ele, às vezes, exagerava e apanhou uma cena complicada. No meio de um treino, o Gomes vai atrasado em relação ao pelotão numa corrida e o Artur Jorge diz-lhe ‘vê lá é se chegas à frente, ò’. O Gomes respondeu-lhe ‘chego à frente, se puder; agora vai obrigar-me a chegar à frente se não conseguir’. E o Artur Jorge ‘ò vai mas é embora, vai tomar banho’. E o Gomes ‘tomar banho o quê? Não vou nada tomar banho’. E ficou lá. Quer dizer, tanta autoridade tanta autoridade e depois és desautorizado. É a questão do pulso.Se fosse o Quinzinho, o Inácio, o Laureta, era uma coisa. Como é o Gomes, é outra. Ou manténs a tua linha e não te desvias um milímetros ou então és apanhado. A partir daí, o pessoal aproveitava aqueles ajuntamentos para dar uma boca ou outra, tipo ‘para uns é uma coisa, para os outros é outra’. E o Artur Jorge sem saber quem soltava a boca.

E o Octávio Machado, alguma vez foi bater-te à porta?
Nem uma, sei o profissional que fui. Aquilo ali é à risca: se fosse almoçar ali, eles sabiam na hora e transmitiam-me no treino seguinte.

Como assim?
Sabiam tudo. Com quem tinha ido, o que tinha comido, o que tinha bebido. Aquilo era ‘então o Muralhas estavas bom?’ E eu respondi ‘estava bom, sim senhor, fresquinho; aquele peixinho estava a pedir aquele vinho’. Tinha de ser assim, às claras. Esconder, porquê?

Falaste do pulso. Quando chegaste ao Sporting em 1999, impuseste o teu pulso?
Claro.

Encontraste o quê nesse balneário?
Tive de encontrar quatro capitães.

O Barbosa?
O Barbosa? Nããããã, o Barbosa não, o Barbosa só se preocupava com o contrato dele. Eu confiava mais no Rui Jorge. Depois, Acosta. Quando cheguei lá, o Acosta não jogava. Respeitavam-no mas não jogava. Na estreia, com o Viking, jogou uns 20 minutos. Depois, jogámos com o Boavista do Manuel José e chamei-lhe ao meu gabinete. Perguntei-lhe ‘que idade é que você tem?’. Tinhas de os tratar por você, à distância.

E o Acosta?
Ficou perplexo. ‘Hein?’, perguntou. E eu insisti. E ele ‘quase 33’.

E tu?
‘Isso não me interessa, vais jogar no domingo’. E ele ‘yo?’. Sim, tu. ‘Não queres jogar? Gostei da tua atitude com o Viking e vou apostar em ti’.

E o Acosta?
‘O mister não se vai arrepender’. Respondi-lhe ‘de letra, estou eu farto; quero que me mostres em campo’. O Acosta que tinha guia de marcha em Dezembro.

Para onde?
Sei lá, o Sporting ia rescindir contrato com o Acosta em Dezembro. E também com o Vidigal. Disse ao Sporting para esperar uns meses, queria trabalhar com a equipa toda. Aproveitava o bom momento do Acosta para entregar-lhe a responsabilidade pelas ações dos argentinos e espanhóis do plantel, como Hanuch, Kmet, Toñito, Duscher. ‘Tu és o treinador dele, tu és o pai deles; se eles provocarem algum problema, responsabilizo-te e tiro-te da equipa.’ O Acosta assumiu esse papel na boa. Outro capitão, André Cruz. ‘André, tens personalidade, cuida aí dos brasileiros.’ Ao Rui Jorge, dizia-lhe: ‘toma lá conta dessa malta’. Porque havia malta que se passava dos carretos, tipo os Duschers.

Ai era?
Um dia, empatámos e o Bastos [adjunto do Inácio] apareceu no balneário com aquele discurso do ‘vamos lá, calma, fazemos melhor para a próxima’. O Duscher virou-se ao Bastos a chamar-me coño e tal.

Uyyyy.
Uyyyy, mesmo. Chamei o Acosta, contei-lhe o caso e disse-lhe: ‘toma lá conta do Duscher, senão dou-lhe um pontapé na boca que lhe parto os dentes todos’. E o Acosta a pedir-me calma, calma. Eu era maluco, não estás a imaginar? O Acosta falou com o Duscher e ele veio pedir-nos desculpa.

E o André Cruz?
Cinco estrelas, cinco estrelas. Falo com ele, ainda hoje.

Como é que surge o convite do Sporting?
Ahahahah. Estava a fazer o comentário do Porto-Estrela para a Antena 1, a convite do Costa Martins. Ia começar o jogo e recebo um telefonema do Agostinho Abade a perguntar-me onde ando. Digo-lhe a verdade e ele marca uma conversa para um hotel na Boavista, no antigo Meridien, acho. Acaba o jogo e vou lá para ouvir que o presidente Roquette quer falar comigo.

Para quê?
Pois, boa pergunta. A proposta não era para treinador. Adiante, encontrei-me com o presidente no dia seguinte, ao pé da Churrasqueira do Campo Grande. Levaram-lhe para uma vivenda no Restelo e o Roquette começa-me a falar da falta de ligação entre o futebol e a hierarquia. A ideia passava pela criação de gabinete de scouting, gerido por mim e com vários preparadores físicos e treinadores, para seguir os jogadores. Tudo para evitar as barracas dos Kmets e Hanuchs. Até já tinha pensado em dois treinadores: Raul Águas e Vítor Manuel. A coisa ficou assim no ar. Só que o Materazzi tinha-se ido embora e, por agora, ia tomar conta da equipa.

E assim foi.
Nos primeiros dias, saio do meu gabinete e encontro o Miguel Galvão-Telles que me diz isto: ‘ò mister, não ponha nunca o Vidigal; aqueles pés de tijolos não podem jogar’. E o pessoal todo a rir-se, o Roquette, o Abreu e tal. O Roquette percebeu o meu ar sério e disfarçou com um ‘eles gostam de brincadeiras’.

Pior a emenda que o soneto, não?
Claro, levou logo com o primeiro choque. Não gosto nada disso, disse-lhes. Se querem armar-se em treinador, não tivesse falado comigo. Uns dias depois, os tais gabinetes vão a vida e fico como treinador. Há episódios e mais episódios. Um deles foi a entrada do Luís Duque no Sporting, na véspera de um jogo em Alvalade com o Campomaiorense. Ele chegou ao pé do Carlos Janela, no início do almoço da equipa num hotel, e disse sem pestanejar ‘Carlos Janela, você já não faz parte do Sporting’.

O quê?
Bem, o Janela até mudou de cor. Muitas cores, aliás, parecia um camaleão. Quer dizer, até eu mudava. Aquilo foi assim de repente, sem aviso prévio nem nada. Depois o Duque dirigiu-se a mim e acertámos que só falávamos depois do almoço. Dito e feito, fomos para o meu quarto, onde o Duque expressou o apoio da nova estrutura em mim e pediu para levar o Sporting à Taça UEFA da época seguinte.

À Taça UEFA?
Calma ò Rui. Mais à frente, o Duque veio ter comigo e dizia-me ‘ò mister, bom bom era levar o Sporting ao segundo lugar, isso já era um grande campeonato’.

E o Sporting é campeão.
Exato, e isso levanta inúmeros problemas. Primeiro, nunca fui a aposta clara de ninguém. E depois, estava no meio de uma guerra de poder entre Roquette e Duque. O Duque queria um x para investir e o Roquette não dava. Quem ia desempatar aquilo? Je. Estava de férias em Punta Caña e a receber mensagens da minha filha a falar-me do clima a ferro e fogo no Sporting. Quando chego a Portugal, o Duque liga-me e impede-me de fazer a ligação para o Porto. Okay, fico na expectativa. No aeroporto, apanha-me o Carlos Freitas e leva-me ao Estádio José Alvalade, à porta 10A. O carro pára e os adeptos puxam Duque Duque Duque. Ato contínuo, abre-me a porta e os adeptos Inácio Inácio Inácio.

O quê?
Subimos, encontramos os administradores e é aí que o Duque quer a divisão.

Como?
Com um discurso do tipo ‘chamámos-te aqui para pressionar a direção e tal’. Quando me perguntam se estou de acordo, digo que não. Sou profissional do Sporting, sim senhor, mas não quero dividir o Sporting. Se faço uma escolha naquela hora, estou a dividir o Sporting e não quero. De todo. Aliás, antes de chegarmos a esse ponto, devem explorar todas as hipóteses e mais alguma de um entendimento. Comecei aí a perder pontos. Claramente. Isto depois continuou: então não é que contrataram o Bruno Caires ao Celta, que não jogava há um ano, vindo de lesão? É quando vieram os Mahons, os Babbs, os Kirovskis. Vem essa malta toda e eles dizem-me que posso mudar em Dezembro. Mudar o caraças. Mudar? Isto não fica por aqui, há a ligação Barbosa-Duque.

Então?
No tal Benfica-Sporting, estamos a perder 1-0 e eu meto o Spehar. Estamos em cima do Benfica, à procura do 1-1, e o Barbosa é expulso. Ele já tinha amarelo e faz tudo para ver o segundo.

Como assim?
Vai a correr atrás do árbitro. Depois, o Coroado é que me disse que foi obrigado a dar-lhe o segundo amarelo, porque o Barbosa persegui-o por todo o lado. Com dez, o Benfica dá o golpe pelo João Tomás: 2-0 e 3-0.

Ahhhhh, o dérbi do Mourinho.
Perdemos 3-0 e ouço uma voz no cimo das escadas, antes da porta do nosso balneário.

De quem?
‘Calma, malta, eu assumo; calma, malta, eu assumo’. Era o Barbosa. Quando eu subo as escadas, confronto-o: ‘mas tu assumes o quê? Vais dizer publicamente que foste o culpado? Foste um capitão de merda, a culpa é tua. Bem, arrasei-o todo.’ O Duque ficou do lado dele. E aí é que percebi tudo: ‘Augusto, foste um grande camelo; andaste a suportar isto tudo e agora’.

E agora?
Sou despedido. Com direito a conferência de imprensa e tudo. A caminho da sala, uma mulher vira-se para o Duque e faz-lhe sinais gestuais de um manguito. ‘É o Mourinho que vem para cá? É o gajo que fez isto à gente?’ Ela estava a referir-se ao gesto do Mourinho nos golos do 2-0 e 3-0. O Duque nunca lhe responde e até foge dela. Só que é apertado e descose-se ‘não, não é Mourinho, porquê?’ E a mulher continua a falar ‘é uma vergonha despedirem o treinador campeão, é uma vergonha’.

Renovo a pergunta: e agora?
Às duas da manhã desse dia, o meu telemóvel toca. Estou em casa, no apartamento em Telheiras. Era o Duque.

Então?
‘Epá ò mister, precisava de falar consigo; eu perdi a cabeça, sou o culpado, fiz tudo mal; podemos tomar amanhã o pequeno-almoço no Radisson, ás nove da manhã’.

O que se passou?
Pequeno-almoço às 9 da manhã e ele a dizer-me que está arrependido da decisão e que me quer de volta no Sporting.

De volta?
Sim. E para fazer o treino desse dia às 1600.

Porquê?
Que o erro tinha sido dele, que me ia acompanhar ao treino. Perguntei-lhe pela conferência de imprensa do meu despedimento e ele justificou que se dava facilmente a volta, bastava dizer que os jogadores queriam a minha continuidade. Aí, disse-lhe que isso não era assim, porque os jogadores nunca disseram o contrário e até estavam comigo.

E o Duque?
‘Arranja-se qualquer coisa, eu vou consigo ao treino das 1600 e justificamos tudo’.

E?
Às 1600, eu no treino e nada de Duque. Mal me viu, o Schmeichel pergunta-me ‘comeback?’. Faço-lhe uma careta, com quem diz que sim, e ele ‘good good good’. O Rui Jorge também espantado, ‘então mister?’. E o Barbosa desconfiado, a olhar para mim.

Então e o Duque?
Nada de aparecer. Ligou-me à noite a perguntar-me pelo treino e também pelo jogo seguinte, em Alvalade, com o Belenenses. Respondi-lhe que estávamos como o aço, uma expressão muito aqui de cima. O Duque diz que me acompanha no treino do dia seguinte, novamente às 1600, e combina encontrar-se às 1530. No tal dia seguinte, estou a almoçar na casa da minha mãe, mesmo em frente ao estádio, e liga-me a secretária do Duque. Ouve lá, isto é um filme, um filme.

O que queria a secretária?
‘O senhor Duque pede-lhe para não ir ao treino’.

O quê?
‘Olhe, o senhor Duque está aí?’ E a secretária disse que sim. Peguei no carro e fui a Alvalade. Entrei por gabinete adentro, fechei a porta à chave e falei-lhe com calma, aquela calma do-quase-a-rebentar, sabes? Perguntei-lhe o que se passava e ele justificou que tinha havido uma reunião em que se decidira realmente com a saída.

Ouch.
Passei-me. ‘Ò meu grande filho da puta, seu garoto de merda, seu isto, seu aquilo. Ouça, eu agora vou-me embora, você matou-me, mas você é o próximo a cair. Sabe porquê? Quem o suportava aqui era eu. Você vai a seguir a mim. Agora, aquilo que você tem sacado com estas transferências todas, que o deixou rico, isso vai acabar’. Ele ainda perguntou o que é que você quer dizer com isso? ‘Você enriqueceu à custa do Sporting e à custa do título de campeão, você não vale nada, você não vale um caralho’. Três meses depois, o Duque caiu mesmo. Isto nem o Spielberg inventava um guião destes. Que filme, que vergonha. Abusaram da minha boa vontade, do meu sportinguismo. Nasci no Alto do Pina, mas fui morar à frente do estádio desde os nove anos. Vivi experiências inesquecíveis com o Sporting, vi episódios históricos. Como a conquista da Taça dos Campeões do hóquei em patins em 1977. Aliás, antes disso, até joguei hóquei no Sporting e fui guarda-redes.

À baliza?
Ah pois. Houve uma altura em que me pediram para escolher entre futebol e hóquei.

Isso é muito à Jesus Correia?
Ahahahah, pois é, pois é. Joguei hóquei à baliza, e porquê? Porque patinava mal. E também joguei andebol à baliza. E ainda pratiquei mini-basket na Rua do Passadiço. Vê lá onde eu andei, vê lá. Ainda me lembro de bater umas bolas com um jogador que treinava sozinho, atrás do peão. Era um paraguaio chamado Paniagua, que nunca chegou a assinar pelo Sporting, só a treinar. Então eu passava por lá e batia umas bolas com ele.

Futebol?
Futebol, isso mesmo. Isto há memórias para tudo. Vivia lá perto e respirava o Sporting. Quando saí do Moreirense para o Sporting, interrompi a carreira de treinador por três anos.

Porquê?
Li o caderno de encargos da lista do Bruno e fiquei convencido. Aquilo era possível fazer, era possível mudar. E troquei o Moreirense pelo Sporting. E, atenção, ganhava muito mais no Moreirense do que no Sporting. Agora imagina: morava há 31 anos seguidos no Porto e mudei-me para Lisboa. E mudei porque quis fazer a diferença, juntamente com o Bruno. E o primeiro ano até correu muito bem.

Tu e o Bruno foram buscar o Van Basten, não foi?
As pessoas nunca souberam, a primeira escolha foi o “El Loco”.

O Bielsa?
Marcelo Bielsa. Encontrei o número dele na Argentina, lá no meio de uma quinta em Mendoza, e liguei-lhe a dizer que estava disponível para ir à Argentina. Como ele ia para Madrid, reunimo-nos ali: ele, Bruno e eu. Aparecemos mais cedo do que o previsto e apanhámos o Bielsa ainda no quadro. Ele entretanto desceu para o pequeno-almoço e estávamos à porta do hotel, porque o Bruno fuma muito. Como era o Bruno quem estava de frente, ele é que perguntava ‘é este?’ à procura do Bielsa. De repente, o Bruno pergunta-me ‘é este velho?’. E era o Bielsa, de fato de treino, com um ar meio esgazeado. Ahahahah. Apresentámo-nos e o Biela convidou-nos para tomar o pequeno-almoço. Dissemos que não e esperámos por ele. Subimos ao quarto do Bielsa, que tinha uma secretária e um sofá. Todo esse espaço estava cheio de coisas do Sporting. Ele sabia tudo: academia, calendário, jogadores, vitórias, derrotas, plantel. Começámos a falar e fomos até à hora e meia. Às tantas, diz-nos ‘não quero este jogador’. Perguntei-lhe se o conhecia e ele continuou: ‘não o quero, é muito pequeno’.

Era quem?
Cédric. Não queria saber se era bom ou mau. E o Bruno olhou para mim, como quem diz ‘olha-me este gajo’. Também nos mostra o esquema dele dos treinos e aquilo era do meu tempo de juniores. Uma bonecada nuns exercícios quase pré-históricos e eu ‘good, bom’. O Bruno avança então para o dinheiro e o Bielsa recusa. ‘Não discuto dinheiro, nunca. Ganha as eleições e depois falamos sobre isso’. Só que nós insistimos, que era bom apresentar um treinador e ele ‘não sou cara para campanhas’. Tudo bem, não quis dar a cara, vamos embora. Cá em baixo, o Bruno todo lixado, viemos para Madrid para nada e tal e tal e tal. Perguntei-lhe se gostava do Van Basten. Ele disse para tratar do assunto. Lá fiz. Eu e o Pina Cabral fomos a Amesterdão e reunimo-nos com o empresário, num hotel. Bebemos um café, falámos um pouco, bebemos outro café, falámos mais e só depois é que apareceu o Van Basten. Acertámos um contrato de dois anos e ele ficou de ir a Lisboa para ver o Sporting-União Leiria. Azar dos azares, o Sporting empata esse jogo. Como a campanha eleitoral estava ao rubro, fomos apresentar o Van Basten ao Sheraton. O pessoal todo doido a gritar Van Basten, Van Basten, Van Basten. Ele embarcou para Amesterdão, todo contente, e pronto. Na semana seguinte, os outros gajos ganham as eleições.

O Godinho Lopes?
Foi o maior roubo de sempre, não sei se sabes. A verdade é que o Van Basten liga-me todo chateado: ‘adormeci a pensar no Sporting e acordo com esta notícia’. Nem eu lhe consegui explicar o que se tinha passado. Nem sequer eu, vê lá.

[Inácio sai do restaurante e puxa de um cigarro]

Fumas desde sempre?
Só comecei quando fui para treinador. O Pedroto dizia ‘para se ser treinador, temos de fumar uns cigarros, beber uns uísques e perder umas noites’. Comecei a aprender com ele, ahahahahah.

E jogador a fumar?
Muitos, apanhei muitos. Há jogadores que fumam por doping. Como o Fraguito e o Mlynarczyk. O Mly, por exemplo, fumava no intervalo dos jogos.

Mlynarczyk, g’anda guarda-redes.
Depois de ter passado pelos juniores do Porto e pelo Rio Ave, voltei ao Porto na era Carlos Alberto Silva. O meu trabalho era treinar o Vítor Baía. Uma semana depois, fui bater à porta do presidente. Ainda hoje me dou bastante bem com o Pinto da Costa. ‘Ò presidente, não vou ensinar nada ao Vítor Baía. Quanto muito, ele é que me vai ensinar a mim. Quer dizer, não tenho vocação para isto e o Vítor precisa é de treino específico’. O Pinto da Costa pergunta-me se tenho alguma ideia e sugiro-lhe o Mlynarczyk, como grande guarda-redes da seleção polaca, grande guarda-redes do Porto, e até grande referência para o Vítor, porque ambos trabalharam nas Antas. Pronto, é assim que o Mly volta ao Porto. Diz-me agora uma coisa: fui lateral-esquerdo a vida toda, o que é ia fazer ao Vítor? Uma coisa é treinar avançados, extremos, do meio-campo, agora guarda-redes? É uma coisa totalmente diferente: como é que se mete as mãos, como é que se abafa, como é que se sai aos cruzamentos. E eu não tinha esse conhecimento, daí o Mly. O treino com o Vítor só era bom para eu meter a bola na gaveta, ahahahahah.

Como jogador, era costume meteres a bola na gaveta?
Quando eram livres perto da área, gostava de meter a bola por cima da barreira. Tinha era de ser descaído para a direita para a canhota fazer isto [Inácio faz a letra C com a mão direita]. Houve um golo giro, com o Vitória Setúbal, em Alvalade. O árbitro estica o braço e é livre indireto, só que eu nem vi e atirei à baliza. O guarda-redes, burro para caraças, acho que era o Silvino, mete as mãos e é golo. Siiiga.

Só tens um vermelho, num Amora-Sporting. Lembras-te?
É o dia em que nasceu a minha filha. O árbitro era o Veiga Trigo e foi a penúltima jornada do campeonato. O Sporting não faz estágio e eu levei a minha mulher para a clínica. No dia seguinte, jogo em Amora. Levei uma bordoada de um gajo e o Veiga Trigo, népia. Depois, dou uma porrada no gajo e o Veiga Trigo apita falta antes de me mostrar amarelo. Virei-me a ele e falei-lhe dessa injustiça.

E o Veiga Trigo?
‘Se não te calas, ainda vais para a rua’.

E tu?
‘E coragem para essa merda?’

E o Veiga Trigo?
Tumba, vermelho. Ainda por cima, chego à clínica e a enfermeira diz-me que é uma menina. É o quêêêêê? Queria mais um rapaz, mas saiu-me uma menina. C’um caraças.

Veiga Trigo era tramado.
Era uma marca fodida. Agora giro giro era aquele Miranda Dias. Num Académico Viseu-Sporting, a caminho do balneário ao intervalo, era ele para mim ‘diga ao seu amigo Jordão que ele’ e eu interrompi ‘diga-lhe isso a ele, car****, ’tá-me a dizer isso a mim porquê?’ Ò c’um caraças, é só duques.

Quando é que foste mais roubado por um árbitro como jogador?
No Juventus-Porto, final da Taça das Taças. Vou dizer-te uma coisa, nunca nada assim. A grande diferença era que nós tínhamos para oferecer frigoríficos e fogões, porque o Pinto da Costa trabalhava numa empresa de eletrodomésticos chamada Segrobe, e eles Fiats. Quer dizer [Inácio tira as duas mãos do volante e encolhe os ombros].

E como treinador, quando é que foste mais roubado?
Tantas vezes, não consigo dizer-te. Agora como dirigente do Sporting é o do Schalke 04, porra. A bola bate na cara do Jonathan e ele apita penálti.

Boa, boa. Por falar em Braga, o que dizer da final da Taça da Liga de há um ano?
Bem ganho, esse jogo. Foi uma alegria imensa.

Foste campeão nacional pelo Sporting, ganhaste a Taça da Liga pelo Moreirense. Só te falta uma Taça de Portugal.
Fomos à finalíssima, em 2000. Aí não trabalhámos bem, o Porto trabalhou melhor.

Então?
Às vezes, o roubar não é um escândalo dos foras-de-jogo. O roubar é marcar faltas à entrada da área ou não. Nessa finalíssima, o árbitro não apitou três faltas à entrada da área do Porto e nós tínhamos o André Cruz. Que, por acaso, até tinha marcado ao Vítor Baía no 2-0 para o campeonato. Um golo do André, outro do Acosta. Ainda hoje falo com eles ao telefone, gente boa, muito boa. Adiante, o árbitro não nos marca qualquer falta e ao Porto toca de apitar. Numa delas, golo do Deco de livre direto.

Cinco dias antes ou assim, 1-1 por Jardel e Barbosa.
Foi, isso mesmo. O Reinaldo Teles vira-se para mim e diz-me ‘amiguinho, vais ter de perder esta tacinha’. Ahahahah. Pior foi o Duque. Quando perdemos a finalíssima, dá-me um toque na perna e diz-me ‘poupámos 120 mil contos’.

Então?
O prémio de vitória dos jogadores, percebes? Ele não queria pagar o prémio. ‘Ouça lá, eu até pagava do meu bolso’.

[ò Rui, ficas aqui ao pé do Wall Street e está feito]