No desporto, o fair-play é o mais importante. A vitória não está acima de tudo, nem acima de qualquer valor, bem pelo contrário. É preciso ter prazer a jogar e a minha mãe sempre me ensinou isso. Quando chegava a casa dos jogos, ainda miúdo, a minha mãe adorava perguntar-me: “Quantas assistências é que fizeste?” Ela não queria saber se eu tinha marcado golos, queria era saber se eu tinha jogado bem. Talvez daí venha a minha falta de apetite pelo golo. O golo é importante, mas é para os outros — como o Ricardinho, que já é o melhor marcador de sempre em fases finais de Europeus, com 21 golos —, nunca é nem nunca o foi para mim.

A minha história está relacionada desde sempre com o desporto, qualquer que fosse. O meu pai fundou o Clube Ténis de Loulé, em 1981, ano de nascimento do meu irmão, que sempre foi a minha referência e que hoje em dia me acompanha em todos os sítios onde jogo. Como nós vivíamos ao lado do complexo, tornou-se quase uma obrigação — mas um prazer — irmos lá jogar.

Loulé é uma cidade pacata onde os miúdos podiam andar na rua, algo que hoje não se vê tanto. Tínhamos aulas só de manhã, ou seja, tínhamos uma tarde toda para ocupar. Os trabalhos de casa faziam-se ao ritmo da luz e, com aquele complexo desportivo ali ao lado, tínhamos muito por onde nos aventurar: a mata, campos de ténis, campos de futsal. Esse passou a ser o meu dia a dia: sair cedo e passar metade do dia no complexo. Tantas vezes que eu atirei bolas àquela parede, ainda lá devem estar as marcas. Quando nos cansávamos de jogar ténis, íamos para o futsal. Na altura nem se chamava assim, falava-se de futebol de cinco. Foi assim que tudo começou.

Tive a oportunidade de estar na única final de Portugal num Europeu, em 2010, na Hungria, também frente à Espanha, que perdemos. Dias antes de partirmos, a minha mãe ligou-me a dizer que o meu avô morreu. Ele era uma pessoa por quem tinha um amor imenso. Ele deu-me uma barriga gigante para eu poder dormir lá em cima, deu-me carinho e amor, coisas que não se explicam. Parti para esse Euro com 26 anos, era um miúdo. Na altura tínhamos uma grande equipa: Pedro Costa, Arnaldo, Gonçalo, Cardinal numa fase incrível… Mas acabei por dar pouco valor. Oito anos depois, tudo é diferente. Quando digo de coração que estou a viver intensamente este Europeu, é verdade. Estou mesmo a desfrutar dele, e é pena, porque tenho 32 anos e é provavelmente o meu último Europeu.

Portugal nunca foi favorito a nada em futsal. Espanha e Rússia estão num patamar muito interessante, mas a que Portugal ainda não chegou. Nós íamos a Europeus e dizíamos que lutávamos para ganhar… Eu olhava ao meu redor, via excelentes jogadores, mas pensava: “Caraças, como é que a gente vai ganhar, se nunca ganhámos nada?” Nunca achei que Portugal tivesse aquela maturidade para chegar ao Europeu e dizer: “Este é para ganhar.” Sinto que a Espanha pode dizer isso, a Rússia pode dizer isso. Aliás, esta Rússia é das melhores seleções de sempre. Antes das meias-finais contra eles, estávamos na reunião de preparação e eu olhava para a equipa russa e só via um jogador nosso que podia jogar naquela seleção: o Ricardinho. De resto, não via um que se encaixasse lá.

Mas agora a mentalidade que cada um de nós está a apresentar é uma coisa que eu nunca tinha visto. Não sei o que vai acontecer na final. Pode acontecer algo fantástico, como algo que nos rebente a todos. O que sei é que a história começou com: “Éramos 14 bons rapazes que se juntaram em Rio Maior”, sem perspetiva de nada. E começámos ali o nosso caminho, tranquilos, sem preocupações, a empatar com a Tailândia, contra Marrocos… mas nunca vi o pessoal desesperado. Não houve um jogador que tenha perguntado pelo prémio, não houve um. Nem ouvi essa palavra desde que cá estou, e isso simboliza bem a forma e o carácter com que todos vieram para cá. Revejo-me neste grupo. Eles até podem não ganhar nada, mas uma coisa já ganharam: o meu coração. O facto de serem assim, liderados por um jogador top como o Ricardinho, que nos ajuda a todos, em todos os momentos. E é bom quando sentes que eles te ouvem e ninguém aponta o dedo a ninguém. Muitas vezes, diziam-me que devia falar com este ou com aquele jogador, sabia que ele ia ouvir-me, mas depois esquecia na hora. Estes miúdos não. Ouvem-me, estão de braços abertos, perguntam-me coisas. Quando assim é, o meu trabalho torna-se mais fácil.

Vou ganhar este Europeu pelos portugueses, não preciso de especificar um ou outro, são todos. Às vezes temos a tendência de pensar que só agora é que nos ligam, só agora é que se importam connosco. Mesmo para esses, quero dedicar o título, para perceberem que só abraçando o outro, havendo amor pelo próximo, chegamos longe. Se calhar só os nossos é que acreditaram neste trabalho. Quero ganhar este título pelos portugueses e pelas nossas famílias que sofrem imenso connosco. Vivo os jogos com uma tranquilidade enorme, por desfrutar, por ter prazer em estar num palco incrível, mas sei que o coração do adepto está a mil quando jogamos — também senti isso quando Portugal ganhou o Europeu de futebol — e por isso acredito que o vosso vai estar assim também na final. Mas não se preocupem, porque vou ganhá-la e dedicá-la a todos vocês.

depoimento de Pedro Cary, sub-capitão da selecção nacional de futsal, publicado no Expresso

NOTA DAS TASCA: Pedro Cary faria a assistência para o golo do empate e sofreria a falta da qual resultaria o livre directo do qual nasceu o 3-2 final