Poucas coisas me restam que traduzam a memória de meu pai. Viu muito além da sua parca condição económica. Financiou e encorajou os estudos de um menino com uma peculiar relação com a escola, que perdia dias a ler os livrinhos, velhos e rasgados, em línguas indecifráveis que aprendera sem ninguém lhe ensinar.

Assim foi até ao dia em que as propinas do Técnico se começaram a pagar, em boa parte, com os prémios de mérito. Vi, nos seus olhos, um homem realizado quando lhe expliquei sobre uns americanos doidos que financiariam um grau académico de nome estranho, lá em Massachusets.

Nos quatro anos que se seguiram, do outro lado do mar, os telefonemas eram escassos porque caros. “Viste o Sporting, puto?”.

Não é estranho, pois, que sem herança física e com os valores e sacrifícios que me deixou feitos na carne que sou hoje, a memória que tenho dele seja uma viagem. Reconfortante. Sinuosa. Dura, mas nossa. Tão nossa.

19 de Maio de 1996. Já no fim da adolescência, entrei em casa madrugada dentro. Tinha sido uma noite perdida, a vaguear a pé, sozinho, mas com muitos demónios em mim. O cheiro a queimado, a carne a arder, as gargalhadas estridentes dos lampiões, as suas caras de gozo e alegria comemorando golos, ébrios de vitória e do prazer de subjugar o inimigo, de lhe espezinhar a dignidade, de lhe negar a humanidade. O cheiro ainda cá está, mas suspendeu-se ao entrar em casa e ver o choro e o desespero de meu pai. Seu desespero era ainda maior que o meu. Não apenas tinha vivido o mesmo, mas pendia sobre a sua cabeça a culpa de me ter levado lá. Como prenda, como reconforto, como a promessa que tínhamos feito de estar juntos, de fazer a nossa viagem de Sportinguismo. Fizemo-lo sobre o caixão de um irmão, com quem não tive tempo de partilhar tudo isso e tanto mais.

26 de Junho de 1989 marcou o inicio dessa viagem. Uma segunda-feira doutros tempos. Tempos em que um menino de 10 anos comprava um bilhete de autocarro e vinha, desde os subúrbios norte até ao Campo Grande. Não foi uma viagem qualquer, foi a viagem para entregar a inscrição como sócio do Sporting Clube de Portugal. Numa atitude pouco reflectida foi-me respondido que sim, poderia ser sócio, mas a prenda de aniversário inexistiria para pagar a jóia. E teria que vir entregar os papéis a Lisboa. Aceitei prontamente, para estupefacção até de um convicto Sportinguista.

Foi uma viagem de 29 anos. Acabá-la é encaixotar a memória de meu pai. Não conseguiria fazê-lo em sua vida. Não posso deixar de o fazer quando o Novo Sporting conspurca os valores que a nossa viagem me permitiu construir. Não é pela queda de um dirigente – já atravessámos muitos – é pela capitulação, é pela eutanásia moral que isto representa. Um Sporting que ousou levantar a cabeça, ser insubmisso, lutar contra os interesses – com bons ou maus modos – e decide ajoelhar-se não é o nosso Sporting. Não é essa fibra que o meu pai me transmitiu.

O meu Leão poderia ter vivido uma vida na jaula, mas tendo-se libertado para a selva, não lhe admito que volte a correr para a jaula.

Hoje cancelei o débito directo. Tu és o culpado. E tu. E tu. Tu que votaste SIM e tu que meteste uns votos a mais à socapa, pelo sim, pelo sim. Odeio-te com toda a minha sinceridade, com toda a minha força e convicção. Mais do que aos lampiões. Desejo-vos o pior que conheço. O pior que conheci no Sudão, no Congo e nos Balcãs.

Ainda vou polvilhar esta caixa de comentários. É o meu luto. Vou insultar despudoradamente, injustamente. Estou destroçado, injustiçado. Quero que sintam igual. Quero que se fodam.

A mesma vivência que me trouxe a ponderação, o respeito pelo outro, a necessidade de me colocar na posição de quem discorda de mim para o entender, o segredo de que os homens sábios se fazem de humildade, é a mesma vivência que me leva tudo isso. Sobra o ódio e a aspereza do vazio. Não estranhem, pois. Depois vou desvanecer e desaparecer.

Duas palavras: Bruno e Cherba.

Obrigado Bruno por mostrares que é possível ser insubmisso. Obrigado Por estes 5 anos maravilhosos. Obrigado por tanta, tanta coisa que só posso resumir num agradecimento por me devolveres o orgulho. Embora seja para mim evidente que houve fraude, há muita gente que votou pela destituição. Hoje parece óbvio e lógico que haverias de sucumbir perante o poder instalado, às mãos, foices e martelos daqueles que preferem viver uma vida de servidão e olham com mais ódio àqueles que, em condição análoga, tentam colocar a cabeça de fora do que aos “pais grandes” que os escravizam.

Isto é muito mais que desporto. Bruno, foste uma revolução de mentalidades que o poder tinha que esmagar. Ricciardis, Salgados e Sobrinhos não vivem sem Garcia Pereiras nem Oliveiras, nem os segundos sem os primeiros. Mas, após queda do BES e dos Dos Santos tinham que mostrar que são, em conjunto, os Donos Disto Tudo, aconteça o que acontecer. Pouco me importa se te recandidatas. Objectivamente, já estará tudo em cacos, mas mais importante que isso é que jamais apagarás a suprema ingratidão destes sócios, mais afinação, menos afinação, que optaram pela eutanásia do clube. Se o fizeres serás só um tolo à deriva.

Cherba. Por seres o meu farol de Sportinguismo nestes tantos anos desde o cacifo. Há textos que recordarei para a vida. Hoje só me ocorre o do Leão nos cuidados intensivos, rodeados de médicos a decretar o fim, mas nós a segurar-lhe a mão. Até se erguer. Com Bruno. Noutros tantos dias são tantos outros textos memoráveis. Nestes últimos meses só desejei que, caso o primeiro quisesse sair, se elegesse o segundo. Agora não quero saber.

*Este texto foi escrito sem qualquer tipo de acordo, revisão, etiqueta ou boas maneiras, já que isto foi lixado de por no papel.

** Não estou certo de o título, e a canção a que alude, estarem completamente ajustados a tudo o que sinto. Estão-no em parte mas a escolha deveu-se à circunstância de ter sido a música favorita do meu Pai. Cumpre-me recuperar estas heranças dispersas quando a grande herança, o Sportinguismo, me morreu.”

ESTE POST É DA AUTORIA DE… Hadji
*às quartas, a cozinha da Tasca abre-se a todos os que a frequentam. Para te candidatares a servir estes Leões, basta estares preparado para as palmas ou para as cuspidelas. E enviares um e-mail com o teu texto para [email protected]