José Guilherme Chieira, de 45 anos, é o novo homem forte da estrutura do futebol leonino, reforçando uma das áreas mais vezes apontada como uma das mais débeis do clube: o scouting.

Analisando o que dele se diz, ficamos a saber que os conhecimentos adquiridos no Championship Manager transportaram-no para o scout profissional ligado a clubes. Do Sporting, onde cresceu na companhia de Aurélio Pereira até ao FC Porto, clube onde esteve durante oito anos, sendo o responsável pela validação das contratações de jogadores como Alex Sandro, Jackson Martínez, Otamendi, Alex Telles ou Brahimi. Pelo meio, passagens por Vitória de Setúbal, Académica e Panathinaikos e o tornar-se numa das principais referências do scouting português.

Recorde-se que, ainda durante a campanha eleitoral, Frederico Varandas deixou claro que, caso fosse eleito, teria especial atenção à formação do clube e ao scouting. “Só nos aguentamos no escalão de sub-17, em termos de Seleção. O paradigma mudou. Temos de ter recrutamento, área técnica… Temos de ser mais efetivos e, para isso, precisamos de investimento. Temos de dominar Lisboa, Setúbal e Braga, os distritos mais jovens, e em escalões de seis a oito anos. Temos de ir buscar os melhores, ter as melhores condições de treino, com Unidade de Performance, porque não é só entrar na Academia e sair jogador. Temos de remodelar por completo a formação do clube. Não se impõe gostar do Sporting, ensina-se. Perdemos muita competitividade e qualidade. Sei o que é preciso alterar, onde investir e em que pessoas. Teremos problemas para os próximos cinco/seis anos. A formação vai ser a base da equipa”.

A contratação de José Guilherme Chieira é um passo firme nesse sentido e, permitam-me, convido-vos a aproveitar a pausa de almoço para lerem uma entrevista que o Mais Futebol fez a este craque do scouting.

Maisfutebol: Como é que descobriu o futebol?
José Chieira: Além de brincar um bocadinho a jogar futebol, quando era miúdo, o início de qualquer atividade ligada ao futebol começou com o Championship Manager [CM]. Já foi há mais de 20 anos. Sou péssimo em datas, mas deve ter sido por aí. Basicamente, jogava o jogo, era um treinador virtual como qualquer outro e estava registado na base de dados dos treinadores virtuais de vários países. Perguntaram-me se estava disponível para começar a participar no scouting e na criação de uma base de dados das equipas portuguesas. Fiz um teste que consistiu na análise do plantel do Marítimo e em 15 dias foi fácil decidir.

MF: Mas chegou a jogar futebol?
JC: Sim, cheguei a jogar. Praticava muitos desportos e ao mesmo tempo estudava. Os meus pais condicionavam um pouco as práticas desportivas e a disponibilidade para as mesmas. Tive de fazer escolhas. Nasci em Coimbra e fui para Lisboa com 16 anos, porque entrei na faculdade mais cedo. A partir daí foi fácil tomar uma decisão. Tinha muitos amigos que jogavam e tive sempre uma relação muito próxima com o futebol. Íamos para Santa Cruz, na Sereia, onde era o campo de treinos da Académica e, em vez de ir à catequese, ficava lá das 9h da manhã até à hora em que acabava a missa (risos).

MF: Considera importante ter jogado futebol no desempenho da função que tinha no Championship Manager?
JC: Claro que sim. Considero que se calhar fui vítima, no bom sentido, de um processo muito prematuro de scout. Desde muito cedo, que consegui transportar toda a sensibilidade do jogo para a análise da parte técnica individual. A entrada para o CM, tinha 20, 21 anos, obrigou-me a ter uma abordagem mais analítica do jogo. O facto de ter jogado e de ter conhecimentos e sensibilidade, permitiram-me, muito rapidamente, perceber que estava num contexto novo e num espaço muito particular para permanecer ligado ao futebol.

MF: Em que consistia, de facto, a sua função no CM?
JC: Basicamente tinha de «matar» tudo o que era futebol. O que se pedia? Pedia-se informação, não só dos jogadores com uma discriminação muito rigorosa em várias vertentes, mas também da parte contratual. Também tinha de reunir informação das equipas técnicas. Nessa altura, já havia detalhe na análise do treinador e de todos os profissionais que faziam parte do clube, incluindo a direção.

MF: Como é que se chegava a essas pessoas?
JC: Tive sorte. Quando olho para trás… Nessa altura, nem toda a gente tinha acesso à Internet. Felizmente tinha Internet em casa e consegui, nos seus primórdios, criar uma dinâmica proactiva. Procurava as pessoas, não só através do meio tradicional, mas também através da Internet. Era obrigado a ver imensos jogos de vários escalões, porque estávamos na fase de absorver tudo o que era informação. Ainda não era conhecimento, queria-se acumular muita informação, tanto pela observação com os próprios olhos, como pela observação do resto da equipa que estávamos a criar. As pessoas queriam estar ligadas ao jogo e aproveitámos isso para criar uma situação de pirâmide, como forma de alimentar a base de dados.

MF: Como se filtrava a informação?
JC: Não era fácil, não era fácil. Depois aparecem os «Tó Madeiras». É uma história engraçada, que resulta das ineficiências que podem existir até nos mecanismos do scouting. Até num contexto de clube pode acontecer. É impossível controlar tudo. Tentávamos, tal como se faz nos clubes, criar mecanismos de cruzamento de informação, ou seja, filtrar tudo de forma a que quando a informação chegasse à parte de cima, fosse credível. A própria forma de trabalhar a base de dados é muito complexa. Não permite uma colaboração ao mesmo tempo, não podem estar duas pessoas a editar o mesmo jogador simultaneamente. Isto torna o processo muito complexo. Em relação ao Tó Madeira… um tipo candidatou-se como colaborador, era de Gouveia e podia dar informações do clube. Ele deu as informações e estas foram importadas para a base de dados, escapando ao primeiro controlo no momento em que saiu a primeira versão do jogo. Passado um dia pensámos “Isto é uma loucura, o tipo de Gouveia é espetacular”. O Tó Madeira era ele, junto com os amigos (risos). Tornou-se um fenómeno porque tem um nome comercial. É uma tarefa muito complexa, porque não se pode controlar todos os instrumentos do processo.

MF: Não sentiam que o vosso trabalho estava a ser usado por clubes ou por outras pessoas?
JC: Acho que isso era um dano colateral, era uma crise de crescimento com consequências positivas. Era um reconhecimento de que estava a ser feito alguma coisa. Não digo de qualidade, porque era um processo de scouting primário, apenas criávamos informações e referências. Não era um processo de conhecimento, por uma simples razão. Uma coisa é trabalhar neste tipo de base de dados fora de um contexto de clube. Num contexto de clube, cada análise tem um custo e, num clube como o FC Porto, uma conversa circunstancial pode ter consequências de 30 ou 40 milhões. O CM criou uma dinâmica de organização e gestão de informação que não existia em Portugal. É normal que os outros agentes do mercado, clubes, treinadores ou empresários, aproveitassem. Era abordado por muito gente e apercebi-me de que o nível a que trabalhávamos não era nem bom nem mau, porque simplesmente ele não existia em Portugal.

MF: O scouting era um espaço pouco desenvolvido em Portugal?
JC: Sim, e o tempo acabou por me dar razão. Na altura, sem saber, o trabalho que fazíamos era trabalho de um departamento de scouting. Fruto da implosão do jogo, as pessoas que colaboravam em cada país tornaram-se parte de um fenómeno incrível. Não só da parte técnica, mas também da parte de organização, gestão de informação e da parte de networking para alimentar essa base de dados. Assim, de repente, praticamente do nada, pessoas muito novas criaram um departamento de scouting que, na sua génese partia de Inglaterra e tinha pessoas no mundo inteiro. Fiz verdadeiramente parte da primeira base de dados mundial quantitativa, não só de jogadores.

MF: Entretanto começa a colaborar com o Sporting…
JC: Eles tinham uma estrutura com muita dificuldade em gerir informação. Por coincidência, a nossa colaboração começa por aí. Funcionou como uma parceria. Comecei a sair com os scouts mais antigos do clube, por amizades em comum, e eles começam a perceber que a dinâmica de gestão de informação e de rede era diferente. Até aí o CM conseguiu transportar-se para o futebol: criou um paradigma de scouting que não havia em Portugal.

MF: Que recordações guarda desse período?
JC: Tive a enorme sorte de partilhar conhecimentos, aliás, de absorver. Eram situações brutais para a minha idade e para o patamar em que estava. Saíamos de Lisboa às 6 da manhã para ir ver um jogo de infantis a Chaves ou aqui em Matosinhos ao Leixões. Criei uma dinâmica de estar no terreno e comecei a perceber os feedbacks desse mesmo trabalho. Não tem nada a ver com o trabalho fora do clube, o que me fez pensar que o scouting valia a pena num contexto de clube. Já tinha os instrumentos que me foram proporcionados pelo CM para poder aportar uma estrutura de um clube.

MF: Nessa altura conjugou o trabalho no Sporting com o trabalho no CM?
JC: Durante vinte anos, de uma ou de outra forma, estive sempre ligado ao CM. A par de um italiano, era o colaborador estrangeiro mais antigo. Comecei antes da pessoa que nesta altura é o CEO da empresa. Foram muitos anos.

MF: Quantos anos esteve com o Aurélio Pereira no Sporting?
JC: Estive uma época a trabalhar no futebol jovem e, entretanto, surgiu a possibilidade de passar para o futebol sénior do Vitória de Setúbal. Entrei num patamar do departamento de scout, onde fazia análise coletiva e individual. O meu trabalho nesta área começou verdadeiramente aí. Coordenava o departamento de scout, criado pelo Jorge Jesus, era responsável pela zona sul e ainda fazia análise de adversários. Foi assim que iniciei o meu percurso profissional ligado aos clubes.

MF: Do Vitória de Setúbal passa para a Académica.
JC: Sou de Coimbra, mas foi uma coincidência. Tive vários convites, mas a Académica convidou-me para criar um departamento de scout. Ofereceu-me um contrato de três anos e juntei o útil ao agradável. Era o coordenador do scout, não tínhamos muito recursos, mas faz parte do nosso crescimento perceber como podemos otimizá-los. Foi um desafio brutal. Mesmo para o próprio clube, do ponto de vista financeiro, houve situações de alavancagem que nunca tinham existido. Isso também foi possível pela abordagem diferente ao mercado.

MF: Que tipo de abordagem era essa?
JC: Tínhamos de ser pragmáticos para transformar a Académica num clube de I Liga. O processo da Académica era muito nacional, tinha de o ser. Para fazer uma aposta em jogadores de qualidade, de fora, era necessário conhecê-los e ter dinheiro para os pagar. Houve exceções, como o caso do Marcel que permitiu alavancar a parte financeira e a parte desportiva. De janeiro a dezembro salvou a Académica de duas descidas de divisão, portanto, foi um bom negócio para toda a gente.

Maisfutebol: Depois muda-se para o Panathinaikos. Como é que a oportunidade surgiu?
José Chieira: Trabalhava diretamente com o chefe de operações, o Jasminko Velić que jogou no Estrela da Amadora e que, mais tarde, foi adjunto do Fernando Santos. Conheci muita gente durante a minha trajetória e tive o convite para coordenar todo o scouting internacional do Panathinaikos. Na verdade, foi um desafio extraordinário. Permitiu-me sair de um clube, não digo regional, porque a Académica é enorme, gigante… Não é o maior, mas é o melhor clube do mundo. E ficamos por aqui… (risos). Continuando, permitiu-me sair de uma zona geográfica muito condicionada para o mundo. Contudo, a primeira saída que fiz ao estrangeiro foi à Argentina, pela Académica, mas na verdade isso não se repetia muitas vezes. O Panathinaikos permitiu-me ir para o mundo.

MF: No Panathinaikos o vosso trabalho incidia mais sobre que mercado?
JC: Há questões relacionadas com a cultura e com o histórico do clube. No Panathinaikos tínhamos uma particularidade. O dono do clube estava casado com uma senhora escandinava… então, todos os anos, tentávamos conhecer vários mercados escandinavos para fazer um negócio, de forma a tentar estabelecer boas ligações. Até porque era importante para o dono do clube ter essa ligação. Depois, também existiam casos de sucesso de jogadores argentinos no clube… então, interessava-nos ter jogadores argentinos. Por outro lado, tínhamos uma ligação a Espanha. Entendia-se que o treinador ou o jogador espanhol aportava uma mais-valia, nem que fosse do ponto de vista da marca. Tínhamos de conjugar isto tudo. Este jogo de xadrez permitia-me ver muita coisa, andar muito. A Europa Central também nos interessava. O contexto financeiro do Panathinaikos era desalavancado ao contrário do Olympiacos. Andávamos sempre por baixo, fazíamos scouting a sério. Procurávamos bons negócios, isso implicava algum risco. O primeiro jogador que levei para o Panathinaikos foi o Dame N´Doye. Tinha 21 anos. Da análise que fiz de jogadores com aquele perfil, o Dame era muito acima da média. Existia o risco por causa da idade, mas já estava a jogar na Europa. Entretanto, era preciso ver se valia a pena seguir aquele caminho. O Panathinaikos tinha limite de extracomunitários. Cada decisão tinha peso. Na altura, toma-se a decisão técnica, mas o jogador tinha contrato com a Académica. Existiram algumas divergências entre o clube e o jogador, entretanto resolvidas em tribunal. Como já tínhamos um pré-acordo, ele veio para a nossa equipa. Foi sempre titular enquanto teve vínculo com o clube. Deu dinheiro ao clube durante cinco ou seis anos. Entre empréstimos, recompras e vendas, o Panathinaikos estava constantemente a fazer bom dinheiro. Foi um negócio excelente.

MF: Depois passa para o FC Porto.
JC: Estive oito anos no FC Porto. Já vinha com quatro anos de mercado mundial a tomar decisões. Trabalhava diretamente com o chefe de operações, havendo uma participação muito próxima na decisão. Já não era só análise de mercado e parte técnica. O que fazia já integrava o contexto negocial, relacionando o perfil com o preço. A chegada ao FC Porto decorre num processo quase natural. O FC Porto foi um upgrade.

MF: Que função desempenhou?
JC: Entrei para o scout internacional. O FC Porto tinha uma estrutura forte e, talvez, existisse uma lacuna na parte internacional. Entrei para colmatar essa mesma lacuna.

MF: No FC Porto havia um perfil de jogador definido?
JC: Sim, existia. Por exemplo, tradicionalmente o FC Porto não fugia ao 4x3x3, embora a abordagem do professor Jesualdo fosse diferente da do Villas-Boas e da do Vítor Pereira. A forma de trabalhar de cada treinador tem uma contribuição específica incluída, a qual pode conduzir a diferentes perfis. Na sua génese, e de forma simples, temos de ir para a dimensão global do jogador, o que implica uma desconstrução pragmática. É jogador para jogar no FC Porto ou não? Essa é a pergunta final. Depois temos de desconstruir para trás, ou seja, questionar “quando é que ele vai jogar no FC Porto?” ou “como é que ele vai jogar no FC Porto?”. Está de acordo no detalhe ou no pormenor do que nós queremos nesta altura para o paradigma do clube? Olhámos para o FC Porto como um clube que tem de ter sempre soluções no plantel para ganhar todos os jogos. Mas no final, temos de dar a resposta se joga ou não no clube. Para trás são questões de detalhes, mas que implicam todo um processo.

MF: Quais eram as limitações enquanto scout nesse período?
JC: Estão presentes em todos os clubes. A otimização dos recursos existe sempre, menos no Real Madrid ou no Manchester United. Em qualquer contexto, o trabalho do scout tem um fim, que é validação técnica do jogador. Depois, pode haver uma avaliação da projeção do mercado e, essa leitura, convém estar na cabeça do scout quando está a desconstruir o jogador. Por exemplo, não vale a pena estar a ver o Martial se o Martial não vem para o FC Porto. Não podemos fazer um trabalho sem balizas. Essa vertente financeira não faz parte do scouting, está a montante do scouting.

MF: Que tipo de relação o departamento de scouting mantém com o treinador?
JC: Depende das organizações e dos perfis das pessoas envolvidas no processo. Cada vez mais o treinador percebe que deve ser um parceiro do departamento de scouting. Obviamente, qualquer treinador quer ganhar, qualquer treinador – transportando para o futebol jovem – quer ter os melhores jogadores possíveis. E tal só será possível com o departamento de scouting. Olho para essa relação como uma parceria, até porque o trabalho do departamento de scouting tem de ir, em parte, de encontro aos perfis traçados pela equipa técnica. É no meio que está o equilíbrio. Tem de existir abertura de todas as partes para se perceber que o clube é que fica a ganhar com essa comunicação, e que esta deve ser frequente. Os treinadores procuram canais para chegar a jogadores de qualidade e, tendo o canal dentro do clube, este deve ser alimentado.

MF: Qual o mercado em que mais trabalhava durante o período que esteve no FC Porto?
JC: O FC Porto funciona como os outros. Há um histórico de sucesso com ligações à América do Sul, mas a intenção era ver a floresta o mais possível. Há bons jogadores em qualquer parte do mundo. Por outro lado, há instrumentos para conhecer os jogadores e, um clube como o FC Porto, tem uma maior capacidade conhecer melhor esses jogadores. Temos de ser pragmáticos e perceber que, financeiramente, o FC Porto, o Sporting e o Benfica, não podem ter a ambição de pagar 30 milhões por um jogador. Portanto, isso condiciona a geoestratégia. Nestes clubes, é cada vez mais difícil garantir aquilo a que chamamos relação entre a maturidade e a qualidade. Porquê? Os clubes maiores têm máquinas de scouting gigantes, que estão presentes em todo o mundo desde as mais tenras idades. Por estratégia e porque podem, esses clubes condicionam o scouting o e recrutamento de clubes como o FC Porto. Já disse isto a pessoas amigas que estão em clubes maiores que, por princípio, é mais rentável fazerem uma redução da estrutura e deixarem equipas como o FC Porto, Benfica, Ajax, PSV e outros clubes, fazerem o primeiro filtro. Depois, limitam-se a colher os frutos, ou seja, deixam essas equipas errarem e depois aproveitarem os que acham que tem projeção para chegar a esse patamar. O mercado funciona assim. Um clube como o FC Porto paga para ver, esses clubes maiores pagam para esperar.

MF: Neste período alguma vez validou um jogador que depois não chegou a ser contratado?
JC: Sim, mas isso é normal. O mercado é muito complexo. Muitas vezes, sabemos que há momentos para fazer o negócio, mas nem sempre é possível.

MF: Qual?
JC: Não vale a pena dizer, estão em outros clubes (risos). Muitas vezes, questiona-se o scout em relação à sua frustração, que é saber que está ali um negócio extraordinário, um momento extraordinário para trazer um perfil extraordinário, mas as coisas não se concretizaram. A primeira coisa que digo é que temos de saber lidar com isso.

MF: Que jogadores validou e que foram contratados pelo FC Porto?
JC: Ui, a lista é longa. Jackson Martínez, Alex Sandro, Otamendi, Brahimi, Herrera, Alex Telles, Felipe, Otávio, por exemplo.

MF: Alguma história engraçada por trás de algumas dessas observações?
JC: Há coisas que agora se podem dizer. Andámos três anos a tentar trazer o Jackson Martínez, não a observá-lo. O dono do clube onde ele estava, no México, não tinha necessidade de vender até que houve a oportunidade. O Jackson que saiu do México foi muito diferente do Jackson que chegou ao México. Tinha algumas limitações técnicas, inclusive nos cruzamentos. Apesar de tudo isso, identificámos que o jogador tinha o perfil que precisávamos para a posição nove. Ao longo desse tempo, a projeção feita foi de acordo com as nossas expetativas. Outra situação engraçada está relacionada com o Alex Sandro. Fomos obrigados a acelerar o processo de recrutamento do jogador, apesar de sabermos que naquela altura não estava preparado para ser titular do FC Porto, uma vez que ainda tínhamos o Palito (Álvaro Pereira). O que aconteceu foi que o Vítor Pereira andou, literalmente, quatro ou cinco meses com o Alex Sandro pela mão, a prepará-lo para ser titular na época seguinte. É interessante como o scouting pode perceber os momentos e ajudar o clube a fazer os negócios na altura certa.

MF: Em trabalho, qual foi o melhor jogador que viu?
JC: Há uma história engraçada. O Lamela estava referenciado [pelo FC Porto] quando jogava no River. Tinha 18 ou 19 anos. Aliás, queimou a etapa de reserva e passou muito jovem para a equipa principal. Há um jogo na Bombonera, Boca-River, no qual o Lamela saca um jogo… tareia, mas tareia a sério na primeira parte e ele sempre com um comportamento impecável. Na segunda parte, ele é provocado, é expulso e o River perde o jogo. Mas o que se guarda dali é que, na loucura que é a América Latina, na loucura que é Bombonera, na loucura que é um Boca-River, conseguimos ter miúdos que têm de ser homens muito cedo e lidar com todo o tipo de pressão, que imaginamos e a que não imaginamos, e que conseguem dar aquele tipo de resposta. Além disso, o carácter e o talento que aquele miúdo mostrava ali, é muito mais que futebol. É claro que, o Lamela, na mudança para a Europa, ficou um pouco aquém, em virtude de algumas razões relacionadas com a formação social dele. A família já tinha alguma capacidade financeira e ele não veio com aquela resiliência que tinha de ter. Como experiência naquela qualidade, no contexto do jogo, foi uma situação brutal. E atenção, vi Messi e Cristiano Ronaldo, mas há circunstâncias e momentos que são totalmente irrepetíveis.

MF: Por que razão decidiu sair do FC Porto?
JC: Estive a fazer scout durante 23 anos. Por várias razões, decidi que tinha de descansar um bocadinho. As pessoas podem não ter noção, mas quem está ligado a este tipo de trabalho, não tem férias. Mesmo quando os jogadores têm férias, as pessoas da área do mercado continuam a trabalhar. Obviamente que há um desgaste inerente a isso. Independentemente de o FC Porto ter sido uma experiência extraordinária, com profissionais enormes e uma estrutura fabulosa, entendi que seria o momento para dar um passo ao lado.

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Maisfutebol: O que é preciso para ser scout?
José Chieira: Fazem-me muito essa pergunta. Não há uma fórmula mágica. Tem de existir muita vontade, muita disponibilidade para trabalhar, mas trabalhar a sério, muita capacidade para absorver conhecimento e muita capacidade para estar disponível para fazer coisas do ponto de vista organizacional dentro da estrutura do clube. Pode-se começar por um clube pequeno, disponível nem que seja para ser o quinto adjunto do escalão de sub-11 do clube. Tudo isso são experiências fundamentais para construir o perfil do scout, ou seja, na sua base tem de estar disponível para absorver todo o tipo de experiências e ser proactivo. Hoje em dia fala-se em intuição. É um conceito vago. A intuição resulta de um processo. Hoje já não é intuição, se calhar há 15 anos era. A partir daí, a intuição transformou-se. Esse processo tem de ser sustentável. Não é fácil toda a gente do scouting ter um processo sustentado em algum contexto durante muito tempo. Normalmente, digo que vão estar dois ou três anos a tentar criar o perfil de scout e, porventura, depois vão perceber que dá para seguir outro caminho. Ou vão para o treino, porque existe uma oportunidade mais direta de ter rendimento numa área ao lado, ou então vão para uma situação de mercado, passando para a intermediação. É necessário fazer sacrifícios. Pela minha experiência, a malta nova quer ter acesso às melhores coisas com pouco trabalho. E, às vezes, falta alguém dizer “meus caros, isto não se vai conseguir em dois dias”. Não é por falarem com os José Chieiras desta vida que as coisas vão acontecer. O crescimento dos profissionais, como eu ou como o José Boto, resultou de um processo. Não há uma regra de ouro, mas para quem quer começar, tem de ter noção que existe um processo. Em geral, as pessoas têm pressa.

MF: Tem curso de treinador?
JC: Não. Ainda tentei, mas não tinha tempo. Acabaram por me dar equivalência, já nem sei onde estão os diplomas. Perdeu-se tudo. Depois começaram a chamar-me para ser monitor dos cursos, mas não tinha tempo. A minha sensibilidade não era ir para o treino. Sentia que o meu processo de formação se fazia trabalhando e cruzando informações e experiências com treinadores, jogadores e diretores.

MF: Mas não acha que hoje em dia é essencial?
JC: É fundamental. O mercado conduziu à especialização e isso implica qualificação. Resultei de uma série de circunstâncias e tive sorte. Surgiram algumas oportunidades que soube aproveitar. Foi um pouco ter olho numa terra mais ou menos de cegos e dar sequência a isso com trabalho e com uma trajetória que me permitiu escolher o que me pareceu bom. Hoje em dia, sou abordado por imensa gente que quer entrar no scout. Alerto sempre para as dificuldades, porque a carreira de scout não está formatada nem está defendida do ponto de vista institucional. No ano passado surgiu a vontade de criar um organismo que possa criar a função do scout, com direitos e deveres. Não é uma carreira fácil, sobretudo em Portugal. A forma como o mercado remunera e reconhece este tipo de trabalho, não permite alimentar grandes desejos. Ser profissional não é só uma palavra, é preciso criar uma dinâmica de sobrevivência.

MF: Um scout apenas faz análise individual e coletiva ou foca-se apenas numa das áreas?
JC: O scouting abrange as duas vertentes. Tradicionalmente, associa-se o scout à análise de jogadores o que não é verdade. A análise coletiva implica um trabalho de scouting muito diferente. Não só na tarefa em si própria, mas também na abordagem ao jogo. Desmontar uma equipa é totalmente diferente de desmontar um jogador. São processos que, por vezes, podem ser um pouco contraproducentes. Alguns colegas que durante muito tempo fizeram análise coletiva, tendo inclusive formação de treinador, necessitam de algum tempo para passarem para a análise individual.

MF: Qual prefere?
JC: Prefiro análise individual. Hoje em dia a análise coletiva, feita num patamar de excelência, é muito agressiva em termos de disponibilidade. Implica muito trabalho e um trabalho diferente. Trabalha-se de uma forma mais próxima do grupo e lida-se diretamente com o treinador. Nesse aspeto é interessante. Já a análise individual, a descoberta… tudo o que envolve ver o mundo é um desafio extraordinário.

MF: Qual a diferença entre a análise de campo no CM e no clube?
JC: A explicação é simples. Num clube, as balizas estão mais ao menos formatadas, ou seja, sabemos que temos um meio – observação e análise – para um fim. Sabemos que há um perfil a trabalhar, que há um mercado a desconstruir e temos de perceber se o que estamos a observar se encaixa no perfil procurado e se vai de encontro à identificação do treinador. No CM/FM existe uma análise romântica, embora haja uma responsabilidade em relação à credibilidade da base de dados. Mas, por outro lado, não há uma consequência, podemos falhar. No clube cada análise que se faz tem consequências.

MF: Quais são os primeiros atributos que avalia num jogador?
JC: Hoje em dia fala-se muito do fator talento.

MF: Também se fala do entendimento de jogo…
JC: É outro fator também muito em voga, ou seja, a inteligência do futebol. A inteligência do futebol resulta de uma série de coisas que levam a uma boa decisão. Estamos a falar da decisão. A boa decisão pode ter origens no talento: pode ser um talento inato – um contexto cada vez mais batido –, pode ser um talento adquirido, ou ainda um talento contextual, que advém de um processo de qualificação. E aqui já entramos numa franja da especificidade do talento. Imagine um jogador pode ser um ponta de lança extraordinário, com golo, mas ao longo do processo de qualificação, tem de adquirir uma série de comportamentos, se quiser ser um jogador de elite. Não chega ser bom para estar no FC Porto, temos de apontar ao jogador de elite. A própria dimensão física pode permitir ao jogador tomar uma boa decisão em qualquer situação do jogo. O dez clássico, o jogador de talento, não tem espaço no futebol. O próprio Bernardo Silva ou o David Silva não são dez nas mãos do Guardiola. O conceito de talento está cada vez mais batido, porque hoje em dia procuram-se amplitudes, frequências e efetividade em todos os momentos do jogo. Temos de procurar perfis muito completos, mas que aportem sempre a um nível qualidade/rendimento acima da média.

MF: Prefere análise in loco ou análise em vídeo?
JC: São completamente diferentes. Tenho uma história muito boa sobre isso, só para exemplificar. Na minha primeira saída no Panathinaikos, fui ver um jogador alemão de sub-21, que jogava no Twente. Não o conhecia. Supostamente, um jogador com trajetória de sub-21 na Alemanha garante algum pedigree. Teoricamente, o jogador era defesa central, mas também podia fazer lateral. Tinha de chegar cedo, uma vez que os acessos eram condicionados e toda a gente tinha de ser identificada. Iniciou-se o aquecimento e os jogadores começaram a fazer um meiinho. Desmontei a equipa, percebi qual era o jogador e disse logo que aquele tipo não tinha hipóteses de jogar no Panathinaikos. Ele ainda nem tinha começado a jogar. Honestamente, bastou-me olhar para a biomecânica e para a relação dele com a bola, para perceber que era impossível acrescentar alguma coisa ao clube. Liguei ao meu chefe e, com todo o respeito, disse-lhe que tinha ido fazer turismo. Há detalhes que se veem na análise vídeo que muitas vezes não conseguimos ver ao vivo. Há fatores de distração que temos na análise ao vivo que podem ser mais importantes ou não. Quando fazemos uma análise exaustiva para tomar uma decisão, o vídeo traz algumas coisas. Claro que estar ao vivo é muito mais importante.

MF: Mas acontece alguns jogadores serem identificados com análise em vídeo?
JC: Sistematicamente. Mas isso não é conhecimento, esse processo só fica fechado com a análise ao vivo. Há pequenos sinais que, obviamente, nos permitem validar o jogador tanto para sim, como para não ou ainda para quando ou como. Mesmo em patamares de maturação, é engraçado. A análise ao vivo permite-nos ver, por exemplo, a abordagem do jogador ao contacto e os comportamentos quando a bola está do lado oposto. Por norma, isso não aparece no vídeo. Muitas vezes, com comportamentos recorrentes, em dez minutos lemos se está preparado ou não. Ou então apercebemo-nos de que estará preparado daqui a dois anos ou que precisamos de lhe dar determinadas coisas. Essas observações ao vivo permitem fazer essa desconstrução.

MF: Quantos jogos são necessários ver?
JC: Não há uma regra. Quantos mais melhor, embora a certa altura comece a ser contraproducente. Num processo de scout temos de ser assertivos e tentarmos que a zona cinzenta seja a menor possível. O scouting não faz os jogadores. Há demasiados fatores circunstanciais que não garantem que o que estamos a ver vai acontecer sempre. A nossa expetativa é que o nosso filtro seja o mais aproximado do que é o grau da certeza. Esse grau não depende do scouting. A quantidade da análise nem sempre está ligada à qualidade. O que interessa é ter um conjunto de scout que está num processo devidamente preparado e maturado, conduzido pela própria estrutura do clube, em comunicação com o treinador, e que permite otimizar esses recursos e identificar rapidamente uma grelha de comportamentos que interessam ou não. Ao mesmo tempo, temos de perceber do que vemos aquilo em que se pode melhorar ou aquilo que é impossível de melhorar. Ou então perceber se está num patamar intermédio, em que o que ele precisa para melhorar nós não temos tempo para lhe dar. Se um central falha os apoios ou leitura dos espaços complementares, a dobra, a saída a três, comportamentos necessários ao nosso jogar, não podemos estar a correr esse risco. Há coisas que não vamos ter tempo para qualificar. Há outras que ele tem e que vai melhorar. Por exemplo, um central rápido, mas que não sabe ler uma bola descoberta – porque esteve num processo de qualificação pouco competente. No entanto, se identificarmos nesse central coisas top, acreditamos que ele vai adquirir o resto. Nesse caso, confiamos no processo de qualificação.

MF: …
JC: Aqui entramos num espaço recente em Portugal e que ainda não está devidamente preenchido. O trabalho do desenvolvimento do talento. Recrutamos, identificamos e depois não podemos olhar como uma zona estanque. O jogador que chega precisa de um processo. A clubes como o FC Porto ou o Benfica, dificilmente chega um jogador feito. Estes clubes precisam de alavancar jogadores, tanto desportiva como financeiramente. Não podemos olhar para o jogador como um produto acabado que passou para o outro lado. Ninguém melhor do que quem fez a análise para comunicar com o treinador. O jogador chegou com este perfil, foi identificado com estas coisas boas e foi identificado com estas lacunas. Esse espaço chama-se desenvolvimento do talento, sai do recrutamento e sai do treino e fica no meio. É fundamental trabalhar a especialização. A indústria futebolística, num patamar de elite, tem de ser trabalhada no detalhe. Esta área em Portugal ainda tem muito para andar.

MF: Já aconteceu validar dois jogadores diferentes e aquele com menores expectativas desenvolver-se mais que o outro?
JC: Pode acontecer. Temos de ter cuidado na análise dos jogadores. O processo de formação da pessoa que está ali tem implicações no processo qualitativo. Isto abaixo dos sete anos. Fala-se muito sobre o talento, mas o talento é cada vez mais circunstancial. Leio muito sobre o talento e o processo de qualificação é fundamental para o jogador de rendimento. Há o jogador de desenvolvimento, o jogador de desenvolvimento/rendimento e o jogador de rendimento. Para um jogador ser de rendimento, num patamar de excelência, muitas coisas têm de correr bem. Uma delas tem a ver com o contexto qualitativo do clube, onde o papel do treinador é muito importante. O scouting é muito projeção, ainda mais no contexto em que estamos. Temos de fazer uma projeção ainda mais ambiciosa, já que as condições financeiras não permitem ter um jogador de rendimento acessível num patamar de elite. Temos de desmontar os jogadores antes de chegarem ao patamar de rendimento. Nesse percurso, a contribuição do treinador é fundamental, podendo ser suficiente para que em duas ou três épocas um jogador se transforme. A margem de erro vai sempre existir, uma vez que não controlamos a maturação do jogador. Principalmente, quando precisamos de contratar jogadores abaixo do patamar de rendimento. Exceto situações de reação.

MF: Como se diminui a margem de erro?
JC: Temos de ir de encontro ao processo individual de scout. Ao longo do seu trajeto, o scout constrói uma abordagem mais sólida em que, com o seu pragmatismo, responde à velha questão “joga ou não joga?”. Ou então, tem de existir um contexto estrutural que permita chegar aos melhores resultados possíveis. Se houver contacto com a equipa técnica, baixamos a margem de erro.

Maisfutebol: Hoje em dia usa-se muito a análise quantitativa.
José Chieira: A cultura do número está cada vez mais a ganhar espaço no futebol. É uma cultura americana. O mercado europeu, nomeadamente o futebol, começou a criar uma análise quantitativa ao mercado. Houve empresas, mais em Inglaterra, que começaram a fazer análises de dados dos jogos. Começaram a desmontar os jogos de futebol. Este trabalho de abordagem quantitativa é cada vez mais amplo. Cada jogador está a ser analisado ao detalhe, por exemplo, empresas como a Opta contrata cientistas da NASA para, a partir do número que estão a desmontar, criar fórmulas que entrem no chamado modelo preditivo. O scouting tradicional pode e deve absorver essa contribuição, mas não a pode encarar como o fator mais importante. Hoje em dia, existem tantos jogadores que não podemos entrar num processo de paranóia. Sei, por experiência, que me estou a deitar hoje e está a nascer um Neymar algures no Amazona. Eu não o conheço e isso pode criar paranóia. A abordagem do número permitiu, na base da pirâmide da informação dos jogadores, começar a desmontá-los com números. O número pode ser posto em causa. Se um central tiver uma taxa de sucesso de passe X e um outro central de Y, isto pode ter uma série de condicionantes que não estão relacionadas com a qualidade do jogador. Pode estar relacionado com a proposta do treinador ou com a qualidade dos colegas. Esse número, num primeiro momento, dá ao departamento de scouting um filtro que precisa de ser validado.

MF: E num segundo momento?
JC: Pode ajudar à decisão final. Imagine, podemos ter 10 jogadores para a mesma posição, todos com perfis semelhantes, com maturidades parecidas e que nos trazem mais ao menos a mesma coisa. Mas, se no patamar final da decisão do recrutamento, houver uma contribuição dos dados que possa ajudar também a decidir, é mais um instrumento. A parte melhor para mim é a parte seguinte, e que está a ser trabalhada para o futuro. Vou dar o exemplo da desconstrução de uma equipa com números. Se tivermos uma equipa que nos últimos cinco anos precisou de uma média de X pontos para chegar à Europa, chegamos a um número. Depois, observamos a média de golos que essa equipa sofreu por ano durante cinco anos. Quantos golos sofreu por jogo? Que jogadores foram mais utilizados nessa linha de quatro ou cinco? E vamos desconstruindo até chegar aos números de cada jogador que fez parte da linha recuada mais utilizada. É uma desconstrução simples, mas concreta. Então, se queremos ir à Liga Europa e fazer X pontos, precisamos de ter um perfil de guarda-redes com este número, de central com este número, etc. Através da análise coletiva, desconstruímos para chegar ao individual. Para mim não é infalível, mas entendo que no caos que é o mercado hoje em dia, tem de haver fórmulas que ajudem a fazer essa análise. Curiosamente, os clubes ingleses – estamos a falar de orçamentos intangíveis – têm profissionais a fazer só a análise do número. Uns fazem a parte das equipas técnicas, com três ou quatro elementos por jogo, outros apenas fazem a análise individual. Com um analista no departamento de dados, conseguimos poupar, teoricamente, uma série de recursos do scout profissional.

MF: Essa desconstrução coletiva para chegar ao individual é exatamente o contrário.
JC: Levantam-se questões acerca da sensibilidade do analista. Penso que é esse fator que ainda não credibiliza este tipo de trabalho. No processo de análise vai existir sempre uma margem de desconfiança, mas não podemos ignorar o número. Cada vez mais o número tem de fazer parte do processo geral no pós-moderno do scout tradicional. Essa foi a grande evolução. Deixamos de ter o conceito de intuição pura, do scout tradicional com os seus 60 anos, a ver os jogos todos e a conversar com os pais, para entrar num processo cada vez mais científico. Isto não deslustra o processo tradicional. Tem é de existir um equilíbrio, onde não se dê demasiada importância ao número, mas que também não o ignore.

MF: O analista deve ter essa sensibilidade ou então ter alguém que interprete o número.
JC: Exatamente. O analista tem de mostrar o que ele faz, por que razão ele faz já é outro trabalho. O modelo preditivo é o expoente máximo do número, mas na prática não garante resultado. Pode, no entanto, ajudar na validação de um jogador, poupando recursos. Temos de perceber que as pessoas que fazem parte do processo têm de saber o que estão a fazer. Será que está a ver o que quero? Se está a ver bem? Temos de ter o cuidado de explicar. Por experiência, essa base da pirâmide é muito frágil num processo maduro. À medida que subimos na pirâmide, mais perto da decisão final, tem de existir um espaço pequeno com pessoas que saibam ver a floresta. Posso dar o exemplo de quando estava no Panathinaikos, porque o Boto falou disso. Disse que andou durante dois anos e meio a tentar trazer o Aimar. Costumo dizer que a cidade a que mais vezes não fui, foi Saragoça.

MF: Por que razão nunca foi a Saragoça?
JC: Porque o Aimar estava sempre lesionado, praticamente não jogava. Tinha a certeza que, com aquele perfil e carisma, era o jogador que iria mudar o paradigma do clube. E nós precisávamos. Como acabou por acontecer no Benfica. Na estrutura temos de ter pessoas pragmáticas e é fundamental termos a certeza que as mesmas resultam de um processo.. No caso de um jogador como o Aimar, financeiramente o clube não vai alavancar, mas vai mudar todos os jogadores. Vai ter efeito/rendimento imediato, correndo mais ao menos bem, vai provocar uma alavancagem incrível no que é o paradigma do clube. Vai melhorar a estrutura e os jogadores à volta, deixando de ser um custo para ser um investimento com retorno top. Atrás do rendimento direto dele, vem o rendimento da equipa, vem o paradigma todo atrás, vem todo o elã da massa adepta e, consequentemente, a componente financeira. Há mais probabilidades de ser campeão e de estar na Champions, o que dá outra visibilidade. É complicado as pessoas do clube entenderem que o pequeno número de pessoas que fazem parte deste centro de reflexão terem de estar preparadas para fazerem leituras diferentes e serem capazes de ver a floresta. Um treinador não tem tempo para ver a floresta e acaba por cometer o erro de se agarrar a referências circunstanciais: ou jogadores que treinou, ou jogadores que defrontou ou informações avulsas. O scout, num processo maduro, rapidamente desmonta estas situações.

MF: Que influência tem o scouting no processo negocial?
JC: Quando um empresário ou intermediário sugere um nome ao clube, esse nome é ou não analisado pelo departamento de scouting. Mas o clube está a reagir, o que limita a tomada de decisão. Proactivamente, o clube devia ir ao mercado para conhecer mais coisas para poder ter mais campo de escolha. A proatividade do scouting, se for feita de forma competente e em comunicação com o treinador, permite otimizar recursos no processo de negociação. O que está por trás do sucesso ou insucesso negocial? A informação de cada uma das partes. Imagine que o clube está à procura de um «box-to-box», se o departamento de scouting consegue dar dez nomes e, durante o processo de negociação consegue indicar alguns argumentos a favor e/ou contra o jogador, acaba por permitir ao clube até baixar o preço. Vai para além do conhecimento técnico, pode funcionar como uma alavancagem brutal no processo de negociação. Esta minha abordagem não é apenas técnica, tem a ver com um contexto técnico, com um contexto de processo/experiência e um contexto economicista. Não podemos olhar para o scouting apenas como um fim em si. Advém da minha formação, sou formado em economia e tenho uma especialização em Gestão Desportiva.

MF: Um scout apenas valida tecnicamente o jogador ou avalia outro tipo de áreas?
JC: A componente volitiva é cada vez mais importante, pois reflete-se no jogo. Cada vez mais, o jogo exige equipas solidárias. Uma coisa é a equipa técnica construir plantéis solidários e criar ligações entre jogadores que depois se veem em campo. Tentámos também desmontar, e é curioso, porque isto traz-nos contribuições a montante do que é a área do scouting. Já entra a área da psicologia. Eu, no meu processo, também dou muita atenção a esse tipo de comportamentos. Como é que o jogador lida com o próprio erro, com o do colega, com o erro do árbitro ou do adversário. Se o jogador engana, se vai ao espaço ou à bola. Há ações facilmente desmontáveis. Temos de saber que o jogador pode ter um dia mau e que tem este comportamento. Pode pesar na decisão final. O FC Porto e o Benfica, por exemplo, já utilizam a psicologia.

MF: Por que razão há pouco investimento no scout em Portugal?
JC: É uma questão estrutural e de cultura relacionada com a sensibilidade. A maioria dos clubes gere orçamentos reduzidos. Se olharmos para o scout como uma despesa e não como um investimento, determinadas coisas nunca vão acontecer. Os ciclos de tomada de decisão nos clubes são curtos. Não há paciência nem tempo para construir um contexto de scouting competente. Acho que podemos fazer um paralelo com o mercado de treinador e jogador: se faz um bom trabalho, é reconhecido. Ao mesmo tempo, permitiu alavancar crescimento e vai ter espaço para subir. Nota-se o mesmo também nos diretores desportivos. Há a tendência para ex-scouts, que conseguem ver a floresta e criar vivências na área de gestão e do relacionamento, fecharem o círculo. É uma mais-valia. Os clubes, em contextos de dificuldades financeiras, não conseguem ter essa abordagem. Olham para o scout como uma despesa que pode não ter um rendimento imediato.

MF: Então agora pergunto-lhe qual a importância de um departamento scout?
JC: É fundamental porque garante a sustentabilidade do clube. Permite dar resposta às necessidades do clube a curto, médio e longo prazo. É uma estrutura de estabilidade e tem de ser imune à filtração do treinador ou do presidente.

MF: Como vê o papel do diretor-desportivo num clube?
JC: Há uma ausência da imagem do diretor-desportivo, como a do Monchi na Roma, por exemplo. O regime que se assume em Portugal é um regime presidencialista. O presidente assume a maior parte das funções, não técnicas, mas de gestão de clube. Muitas vezes, quando existe um diretor-desportivo, ele está mais conotado. É capaz de fazer uma leitura permanente das necessidades do plantel, do que existe no mercado e o que, decorrente do grau de comunicação com o presidente e com o treinador, consegue terminar as tomadas de decisão. Isso reflete-se nas renovações, nos valores que se podem praticar, não só nos contratos, mas também no que é possível ir buscar ao mercado. Se a figura do diretor-desportivo não tiver o contexto que deveria ter, o clube fica mais fraco. Isto está ligado à necessidade criada nos mercados mais fortes financeiramente. Os clubes foram obrigados a criar um espaço específico de forma a que o resultado final seja o mais competente possível, tanto desportiva como financeiramente. Tem a ver com a figura do diretor de recrutamento.

MF: O que é o diretor de recrutamento?
JC: Essa figura não existe em Portugal. Foi criada para existir alguém com capacidade para ver a floresta, ou seja, alguém capaz de ler os momentos. Entenda-se, uma pessoa com a capacidade para ver os recursos do clube e o que o mercado pode oferecer, ler nos diversos momentos o que é necessário no imediato para o clube, o que será necessário no futuro e o que existe e existirá no mercado que vá de encontro ao perfil desejado. Hoje em dia, isso passa muito por esta função. Não é um diretor de scouting, mas sim, alguém com domínio de mercado e que seja capaz de fazer uma projeção para a área de gestão.

MF: Diferença entre chefe de recrutamento e o diretor-desportivo?
JC: Diretor-desportivo é uma função que passa pela gestão do plantel e dos recursos do clube. O chefe de recrutamento é, tal como o nome indica, o coordenador do recrutamento. Isso implica conhecer o plantel que existe, mas não em ato de gestão. O diretor-desportivo gere os contratos dos jogadores e equipa técnica.

MF: Tem noção de quantos jogos já viu?
JC: Não tenho essa ambição, já perdi a conta há muito tempo. Posso dizer que já visitei 47 países em trabalho.

MF: Qual a história mais engraçada que viveu ao longo seu percurso?
JC: Tenho muitas. São muitos anos, muitas viagens. Há tantas. Uma grande mais-valia e, que faz parte da formatação do processo de análise, são as vivências. Dessa forma, sei o que estou a ver num jogador brasileiro de 16 anos e o que estou a ver num jogador escandinavo de 22 anos. Caminhando por esses países e conhecendo as vivências do jogador, da própria família, da cidade, do país, ajuda-nos a desconstruir as coisas. Por exemplo, as pessoas questionam-se por que razão tradicionalmente o jogador sul-americano está mais preparado. O grau de desenvolvimento é mais baixo, o grau de educação é mais baixo e o jogador é obrigado a procurar um caminho para ajudar a família. Está preparado para ser mais resiliente, o que é fundamental. Todos esses fatores variam de país para país. Mas há uma experiência que posso contar.

MF: Qual?
JC: Estava a ver um jogo da Copa São Paulo, no interior da cidade, entre o São Paulo e o clube local. O estádio estava sobrelotado e o jogo era facílimo para o São Paulo. Era um jogo da primeira fase. De repente, começam a rebentar petardos, tentativas de invasão de campo e, mesmo os scouts que estavam misturados com o público, incluindo um que trabalhava para o Chelsea, foram bombardeados com gás pimenta. Esse senhor do Chelsea foi encaminhado de urgência para o hospital, ficou totalmente K.O e não pudemos fazer o nosso trabalho. Deixaram-nos sair e no dia seguinte continuamos a nossa vida e fomos ver jogos a outro lado. Por exemplo, viajar de Quito para La Sierra e depois, por volta das duas da manhã, ter de voltar. Imagine o que é os 50 scouts dos 50 clubes de topo do mundo, com um condutor completamente louco a andar na altitudezinha do Equador no meio de uma tempestade.

MF: Quais são os projetos profissionais que tem em mente para o futuro?
JC: Há uns dias ouvi o próprio Sérgio Conceição a falar sobre isto. É normal que o mercado reconheça e absorva este tipo de perfil. Acredito que faz parte do meu processo normal de crescimento. Temos de aprender todos os dias e temos de nos sentir úteis e ver os projetos que chegam. Vai acontecer num curto prazo.