Dorme sempre com o bloco de notas ao lado da cama, não vão os sonhos trazer-lhe ideias para novos exercícios. Nélson Pereira passou 10 anos como guarda-redes do Sporting e já vai em sete épocas como treinador dos homens das balizas do clube de Alvalade e é o denominador comum dos quatro desempates através de pontapés da marca de grande penalidade que valeram duas Taças da Liga que o Sporting, a últimas das quais a semana passada. À Tribuna Expresso, explica-nos o que mudou no treino dos guarda-redes, de como cada vez mais se falham grandes penalidades e do que é preciso para ser bom a defendê-las. Sem esquecer a polémica da última temporada, quando nas meias-finais da Taça da Liga entre Sporting e FC Porto, esteve atrás da baliza do então titular dos leões, Rui Patrício

Diz-se que uma mentira contada muitas vezes se torna verdade e é muita gente que ainda acredita que as grandes penalidades são uma lotaria. O que é que lhe passa pela cabeça quando ouve isso?
Há muita gente que não sabe o que é o nosso trabalho. Eu dou tanta importância ao treino das grandes penalidades como a qualquer outra situação do jogo. Hoje em dia os jogos ganham-se nos pormenores e principalmente quando estamos em competições que se podem decidir nas grandes penalidades estas situações têm de ter a mesma atenção que um livre, um lançamento, um ataque organizado da equipa adversária. Tento estudar todas essas situações para depois poder transmitir aos guarda-redes. Quando eu jogava não tínhamos tanto acesso a imagens como hoje em dia e isso é uma das evoluções do futebol moderno. E nós como treinadores temos de tentar tirar o máximo de partido de todas as ferramentas que temos à mão para dotar os guarda-redes de melhores capacidades e melhores condições para poderem decidir quando são chamados a intervir.

Antes não se dava tanta importância a esse trabalho específico e confiava-se mais na intuição?
Sempre se fez, a diferença é que agora, com novas plataformas de tratamento de imagem e de dados, nós temos mais informação e esta intuição, esta sorte, como as pessoas dizem dá muito trabalho [risos]. São muitas horas de análise, são muitas horas de trabalho de campo. É um trabalho exaustivo e ao qual dou importância, porque tenho que dar importância a tudo o que envolve o jogo e a participação do guarda-redes no mesmo.

O que é que se estuda quando se estuda um batedor de grandes penalidades? Só técnica? A linguagem corporal?
Sim, estudamos os batedores. Tentamos perceber se bate sempre da mesma maneira, se tem alterações quando bate as grandes penalidades. O vídeo permite ver do mesmo batedor várias situações e isso são dados importantes. Mas como fazemos nós fazem outros clubes. Nós treinadores também falamos uns com os outros. Nesta matéria também se evoluiu tal como se evoluiu em outras. Antigamente dizia-se que os guarda-redes estavam na baliza só para defender remates e hoje não é bem assim: hoje na organização do jogo de uma equipa, na construção, o guarda-redes tem missões específicas.

Há treinadores que quando falam em sistemas já falam em 1x4x4x2 ou 1x4x3x3.
Eu sou a favor disso. O sistema de jogo começa no 1. Antigamente se calhar começava num dos quatro da defesa. É a evolução do futebol: os clubes já escolhem o guarda-redes em função da forma de jogar da sua equipa, tenta-se encontrar características que encaixem num modelo de jogo e isso para nós, treinadores de guarda-redes, também é um desafio, e eu gosto de desafios. Há quem me diga ‘Ah, perdes muito tempo a ver imagens’. Eu não perco muito tempo a ver imagens, eu ganho tempo, porque eu estou a estudar, estou a fazer a minha análise e eu sei que quanto mais informação eu tiver, mais preparado vou estar para poder passar a mensagem que eu pretendo aos meus guarda-redes.

Pegando nessa ideia de que as equipas escolhem os seus guarda-redes em função do modelo de jogo: o Renan é contratado no início da época por outra equipa técnica, com um modelo de jogo diferente. Foi complicado trabalhar nesta base face, por exemplo, ao conhecimento que tinha do Rui Patrício, o guarda-redes na Taça da Liga do ano passado?
Eu trabalhei com o Rui sete épocas e as coisas já estavam muito enraizadas. Nós só pela troca de olhares sabíamos o que é que cada um queria dizer e ao longo do tempo foram tornando-se fáceis as mensagens que era preciso passar. Este ano houve alterações, chego com a época em andamento, chego também com um novo treinador, com uma nova metodologia e isso claro que nos obriga a estarmos preparados para tudo. Tive de perceber as ideias do treinador, que é o primeiro passo, saber o que pretende o treinador principal. E depois perceber como iria encaixar o guarda-redes nesse modelo. Se me perguntam se é um desafio? Claro que é, mas é um bom desafio. Eu já trabalhei com muitos treinadores, cada um diferente, o Keizer tem a particularidade de não falar a nossa língua e até aí tive de me adaptar. O meu inglês não é o melhor, mas ainda hoje brincava e disse que em maio vou estar a falar inglês corretamente [risos]! O futebol dá-nos muitos desafios e este tem sido muito bom. Só conhecia o Renan de termos jogado contra, mas todos os nossos guarda-redes são jogadores que gostam de ouvir, gostam de aprender e querem sempre mais. Colocam intensidade nos exercícios, fazem perguntas, ‘fazemos isto porquê?’… quando assim é, o meu trabalho fica facilitado.

Há guarda-redes que têm apetência para as grandes penalidades ou tudo se treina?
Tem a ver com as características de cada um. Há guarda-redes que pelas suas características físicas e técnicas, aliado a uma grande concentração naqueles momentos, têm uma maior capacidade de avaliação do que vai acontecer no momento. E tendo em conta que já trazem informação sobre o que pode cada um dos batedores fazer, isso ajuda. Mas a concentração nestes momentos é determinante.

O Rui Patrício e o Renan têm características que se enquadram nessa ideia?
Sim, têm. Tal como o Salin também as tem. E até o Max [Luís Maximiano]. Há bocado treinámos um bocadinho as grandes penalidades e foi engraçado ver como eles se envolvem e fazem apostas… é que ninguém gosta de perder. Aliás, antes dizia-se muito que o guarda-redes não tem grandes responsabilidades nos penáltis. Pode não ter, dizem que é mais difícil para quem vai bater, mas eu acho que é difícil para todos porque há a tensão do momento e quem estiver mais descontraído-barra-concentrado tem mais hipóteses de ter sucesso. Se formos analisar as estatísticas mais recentes, percebemos que cada vez há mais batedores a falhar penáltis.

Ai sim?
Falha-se muito mais que antigamente. Porque, lá está, há a tal observação que é feita pelas equipas técnicas em que os pormenores fazem a diferença e temos de estar atentos a todos. Os guarda-redes estão cada vez mais preparados e os que têm mais vontade de perceber como é que os adversários batem mais hipóteses de sucesso têm

Há dias ouvi um comentador dizer que, entre as muitas técnicas de encarar uma grande penalidade, há guarda-redes que escolhem atirar-se sempre para o mesmo lado.
Nem consigo perceber de onde vem um comentário desses. Se calhar alguém lhe disse isso, mas não tem de ser assim, nem pode ser assim. Nós no futebol não podemos viver de fezadas, temos de viver de situações concretas que levem à conquista de pontos, de taças. Há lógica nisto. E se me dizem que um guarda-redes se atira sempre para o mesmo lado, não há uma ideia lógica nisso.

Mas ainda há espaço para o chamado feeling?
Há o feeling do momento. Se o guarda-redes está focado no batedor e é uma situação muito rápida, tem de decidir em centésimos se a situação vai ser exatamente como foi analisada anteriormente ou se há uma alteração. E nisso há um certo feeling/leitura/decisão. Os que conseguem ter a perceção mais rápida são os que têm sucesso.

Na semana passada treinaram com mais afinco as grande penalidades, por causa da Taça da Liga?
As grandes penalidades treinam-se todas as semanas, porque em todas as semanas há jogos que podem ser decididos por uma grande penalidades e os batedores e guarda-redes têm de estar preparados. E depois há o trabalho específico de reflexos, potência, das capacidades físicas. Os dados, o vídeo, tudo isso é trabalhado por mim. Tudo isso é recolhido pelo nosso gabinete de imagem, que passa para mim, eu faço uma triagem do que preciso e depois mostro e discuto com os guarda-redes.

Imagino que na semana da Taça da Liga o Renan tenha visto muitas imagens dos batedores do Sp. Braga e depois do FC Porto.
A questão não é ver muitos vídeos, é passarmos as imagens que nós pretendemos que eles entendam. Não é uma sobrecarga de vídeos que vai mudar muita coisa.

O ano passado, nas meias-finais da Taça da Liga, foi para trás da baliza do Rui Patrício…
Ninguém viu [risos]. Este ano meteram lá um cordão policial! Mas para todos os efeitos, a história da Taça da Liga já tem lá o momento que é o Nélson atrás da baliza, já ninguém se vai esquecer. Agora sempre que há penáltis dizem-me que não posso ir para trás da baliza, têm os olhos em cima de mim.

O que é que disse ao Rui Patrício naquele momentos?
Se me perguntarem se há necessidade de eu estar lá? Não há. Pode haver um auxílio em algo que o jogador já não se lembre, de uma característica do jogador que vai bater. Mas não se pode falar, tem de ser por gestos. Este ano eu transmiti as mensagens que tinha de transmitir nos penáltis. E alguém percebeu? Não. Naquele trajeto que o guarda-redes faz até à baliza enquanto troca com o colega, basta fazer um gesto. Fazer atrás da baliza, de lado… é exatamente a mesma coisa. A influência é a mesma. Mas acho que esta situação marcou porque eu estava atrás da baliza. Não lhe vou dizer que informações passei, não é? [risos] São coisas muito nossas, estratégias que temos, códigos que vamos utilizando em momentos necessários. E nem sempre é necessário. Porque há determinados momentos em que quanto mais informação se dá, maior confusão se provoca numa pessoa que tem de tomar uma decisão. Posso dizer-lhe que passo informação quando sou solicitado. Já lhe estou a dizer muito!

O que há de mental aqui?
A tensão do jogo obriga-nos a muita ginástica emocional. Aquilo é duro. Há muito de mental, psicológico. Isto é uma guerra, porque o batedor sabe que o guarda-redes o estudou.

E entre o apito final do jogo e o momento em que se começam a bater as grandes penalidades, que trabalho é que um treinador de guarda-redes pode fazer?
Gosto de conversar com eles, temos ali algum tempo e gosto de falar sobre o que vai acontecer. E felizmente que até hoje nós temos ganho sempre a penáltis. Não sei se é pela conversa ou não… o que é certo é que eles têm conseguido manter a calma necessária para no momento serem eficazes. Nesse momento a conversa vai muito no sentido da motivação e fazê-los ver que é o momento deles, em que podem ser os heróis do jogo. E nas últimas seis vezes em que houve desempate nas grandes penalidades comigo cá a treinar, têm sido os heróis. O trabalho deles ajuda a que eu esteja aqui a dar esta entrevista. Todos os guarda-redes com quem trabalhei têm vindo a fazer de mim melhor treinador porque todos me colocam desafios. E para os ensinar também tive de aprender e à medida que o futebol vai evoluindo eu tenho de aprender para poder continuar a ensinar. Gosto de pensar que também tenho influência no seu sucesso e gosto de vê-los a serem reconhecidos.

Na final, o Renan tem um erro no golo do FC Porto. Naquela altura pensou que se o jogo fosse para grandes penalidades ele poderia estar marcado por aquele erro?
Isso também fez parte do meu trabalho ali. Transformar um momento que não correu bem, conseguindo motivá-lo de forma a que ele perceba que pode ser o herói. Claro que é muito importante também a capacidade dele de reação ao erro, porque no momento aquilo mexe. É uma final. Por norma já é difícil quando se erra e numa final mais impacto tem. O Renan também teve a capacidade de ele próprio dar a volta por cima. Naqueles minutos a minha ideia foi mostrar-lhe que o erro já era passado, já não tinha mais influência para o resto do jogo. Acabou, 1-1, vamos a penáltis, é o teu momento e vão ter de falar de ti pelos melhores motivos.

Lembrei-me de uma situação que aconteceu nos quartos de final do Mundial de 2014, num Holanda-Costa Rica, em que o Louis Van Gaal tirou o guarda-redes titular no final do prolongamento e colocou o Tim Krul para as grandes penalidades [a Holanda passou às meias-finais]. O Nelson faria algo deste género?
Eu não sei o que é que se passou naquele momento, imagino que tenha sido uma estratégia. Correu bem, mas podia não ter corrido. Nunca me passou muito pela cabeça fazer isso. Não sei se estava pré-definido ou não, por isso tudo o que possa dizer sobre esse exemplo acaba por ser vago.

Como é que é o dia-a-dia do Nélson aqui na Academia?
Chego todos os dias a Alcochete às 7h10 da manhã. Moro longe, saio de casa às 6h e gosto de vir com tempo. Temos o pequeno-almoço, a seguir ao pequeno-almoço começo a preparar o treino, depois há o treino. A seguir ao treino faço análise aos adversários e ao comportamento dos nossos guarda-redes no jogo – todos os dias fazemos um bocadinho de tudo. O pós-treino normalmente dedico-o ou à análise do jogo que fizemos e em outros dias à análise do adversário que vamos encontrar a seguir. É importante conhecermos as ideias dos adversários, tal como eles estudam as nossas ideias. Tenho de preparar toda a informação para ela ser passada ao guarda-redes.

Quando jogava nada disto se preparava desta forma tão, digamos, científica.
Eu tive sorte com os treinadores que apanhei, mas só na parte final da minha carreira é que começaram a aparecer todas estas ferramentas que hoje são absolutamente normais. Mas antigamente não. As imagens televisivas não eram assim tão fáceis de ter e hoje tens programas específicos só para isso em que está lá tudo, toda a informação de jogadores do Mundo inteiro. Aqui no Sporting temos todas essas condições que nos permitem fazer um upgrade em relação ao passado. Antes disto, quando defendias uma grande penalidade, ou bem que conhecias o batedor ou tudo se tornava mais difícil, porque imagens para ver não tínhamos. A evolução faz com que estejamos mais perto de tudo. Nós conseguimos ter todas as situações que pretendemos com um clique e todos os clubes profissionais têm acesso a isto.

E quem foi o mais temível marcadores de grandes penalidades que teve pela frente?
O Jardel. Marcava muito bem penáltis. O Jardel ia o tempo todo a olhar o guarda-redes nos olhos, era incrível. Acho que só decidia o lado mesmo mesmo no final. Foi sem dúvida o melhor ponta de lança com quem joguei, como colega e adversário. O Oceano também marcava muito bem.

entrevista publicada no site Tribuna Expresso