A última recordação que tenho de ir à bola com o meu pai é das mais nítidas. Alvalade vivia tempos estranhos, era 1985 e o Porto começava despontar como uma séria ameaça à hegemonia de Sporting e Benfica. Futre tinha acabado de se transferir para o Porto, que tinha um novo treinador – Artur Jorge – no lugar do mítico Pedroto. No Sporting, vivia-se a cisão entre os que veneravam João Rocha como o homem que tinha modernizado e transformado completamente o Sporting e os que o odiavam, sobretudo por uma gestão do futebol que começava a perder terreno para as “novas práticas” vindas do Norte do país.

Lembro-me que a nossa equipa era de humores, que tanto podia fazer oprimas exibições como podia empatar em casa com um dos últimos classificados. Era uma equipa de veteranos, com Damas, Gabriel, António Oliveira, Virgilio, Romeu, Sousa, Manuel Fernandes e Jordão…onde começavam a despontar uns putos como Fernando Mendes, Morato, Venâncio, Oceano, Litos e Carlos Xavier (este já mais rodado). Era curiosamente na veterania que se escondiam os problemas, havia inúmeros problemas contratuais com a Direcção, John Toshack parecia ser muito menos líder que os capitães de equipa e as bancadas agrupavam-se por mais ou menos desaprovação quanto “às asneiras” de João Rocha e a forma como eram visíveis na forma de jogar da equipa.

Sempre que perguntava ao meu pai, se João Rocha era o problema do Sporting, este respondia-me mais ou menos o mesmo: “O problema não é o Presidente. É esta raça de gente que se acham todos melhores que os outros.”

Invariavelmente sentia que genericamente os adeptos mais jovens eram contra João Rocha e os mais “maduros”, mais apoiantes da célebre “estabilidade”. Nunca consegui porém “arrancar” ao meu pai qualquer posição contra ou a favor de quem quer que fosse e sempre me baralhou esse quase alheamento político. Começo, hoje, a compreender quer o seu desgosto por um clube dividido, quer o desprovimento de vontade de validar uns sobre outros.

Começo a perceber também que muitos de nós, adeptos e sócios do Sporting, nos estamos a transformar em adeptos de nós próprios e não do clube ou do emblema. No fundo a negação do significado de adepto, fã, aficionado…não seguimos, não idolatramos, não confiamos, já nem sequer “gostamos” do Sporting. Vivemos um para-fenómeno de adesão, de agregação, perdemos o sentido coletivo e consumimos o clube como uma facção, um partido, um “eu contra o ele”, numa maravilhosa e trágica epopeia pessoal. O amor transformou-se em ódio. A ilusão em pessimismo. A diversão em trauma.

Enredados nas nossas “batalhas” individuais, quando imaginamos as massas a optarem pela nossa via ou pela dos “outros”, esquecemo-nos das pessoas como o meu pai. Das pessoas que não querem optar, não querem transformar o emblema em problema. Esquecemo-nos até por vezes que será impossível o clube crescer enquanto se divide, enquanto atravessa um verdadeiro rio de fratricídio. E se não cresce, decresce. Perde. Torna-se menos relevante, tem menos pontos de atracção. Todos estão bastante preocupados, todos acham grave o estado actual, todos arrancam cabelos face às previsões de futuro. Curiosamente ninguém parece muito preocupado com aquilo que faz, mas com o que os “outros” fizeram ou fazem.

30 anos depois, compreendo cada vez melhor o que fez o meu pai decidir nunca mais ir a Alvalade, deixar de estar com o seu grupo de amigos na bancada, deixar pura e simplesmente de viver ativamente o Sporting. 30 anos depois, o Sporting como associação de pessoas e de ideias está a falhar, a desiludir. A maior das derrotas, das humilhações, não são os quartos lugares, as derrotas com os Tondelas da vida. É a nossa cultura de clube. É a nossa incapacidade para aceitar outras opiniões, outras soluções, outras lideranças, outros comportamentos. É a nossa xenofobia intra-leonina, puritanismo, dogmas, extremismo, onde o único e verdadeiro sportinguismo é conjugado na primeira pessoa do singular. Todos os outros são tontos, acéfalos, querem tacho, elitistas. A única visão válida é a minha.

Olhem para os sportinguistas que conhecem na vossa vida pessoal. Contem o número com que deixaram de partilhar o clube nos últimos anos. Lembrem-se. Conseguem explicar o que nos afastou? Conseguem descobrir a razão do ódio? Conseguem realmente explicar como poderemos continuar a viver desta maneira? Uns mais entretidos em espetar facas em fantasmas, outros a regimentar planos quiméricos de utopias passadas. Uns a recauchutar o presente com soluções impregnadas de mofo, outros a perseguir os apoios nos camarotes de gente que nem sabe o que “apoiar” significa. Uns a contar armas que não existem, outros a enterrar a capacidade de lutar.

Escolham o vosso sítio, escolham o vosso Sporting. Todos entramos numa ou várias portas. Mas não saímos de nenhuma. Não saímos para lado algum. Estamos numa jaula, fechados, a lutar por quem fica mais perto das barras, não pela liberdade. Não entendemos que sem diálogo, sem partilha, sem aceitação do “outro” como alguém que não é inimigo…ser Sportinguista cada vez quererá dizer menos, cada vez será sinónimo de algo grande, apaixonante e motivador. Cada vez menos será tradução do que somos como indivíduos.

Olho para os “notáveis”, para as figuras apresentadas como “exemplos” de Sportinguismo e perdoem-me o francês, só vejo merda. Gente que sobreviveu a saltar de “apoio” em “apoio”, que aprendeu a viver o Sporting como um jogo de cadeiras, que chega às TVs e jornais dominando a arte de gerir as facções dentro do Sporting. A cultura de espartilhar o Sporting começou nestes Garibaldis de charuto. Começou nesta vivência de clube como um micro universo de maçonarias. Começou no “meu Sporting é melhor que o teu”.

A única chave para fugirmos desta prisão de pequenez, mesquinhice e guerrinhas patéticas é a verdadeira e comprometida adesão ao nosso lema: Esforço, Dedicação, Devoção e Glória. Todos sabemos o que quer dizer, o que custa, ao que nos obriga como seres humanos, ao que nos remete ser, dizer e fazer como sportinguista. Quem está disposto a isso?

*às quartas, o Zero Seis passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca. Este post sai à terça porque estava a marinar desde a semana passada