Há jogos que valem mais do que um simples jogo. Há jogos que nos oferecem mais do que uma vitória. Foi o que aconteceu ontem, em Alvalade, com equipa e adeptos de mãos dadas, rugindo contra medos e fantasmas, muitos deles seus, e recusando-se a falhar na missão de lutar pelo único objectivo que lhes resta

O Bruno recupera a primeira bola. O Raphinha recupera a segunda. Está apertado, deixa no Dyabi. Entretanto, o Bruno já se chegou à direita, pronto a receber a bola. Simula o cruzamento, puxa para dentro, deixa o Grimaldo fora da jogada e saca um remate com o seu pior pé, o esquerdo. Acontece que, naquele momento, Bruno Fernandes não é só Bruno Fernandes. É todos aqueles 30 e qualquer coisa mil Leões e Leoas, mais os outros não sei quantos mil ou milhões que se recusam a deitar a toalha ao chão. E também é um bocadinho Balakov, que arqueia o corpo e dispara aquela bomba teleguiada ao ângulo mais improvável.

Não te admires se ainda te arrepias ao ler o que está escrito neste duplo parágrafo, que mais espaço não tem do que aquela nesga entre a luva do boneco Svilar e a barra da baliza. Foram meses de alma e coração doridos que foram libertados com aquele golo, o golo que decidiu uma meia final da Taça, num jogo nem sempre bem jogado, carregado de faltas, com uma arbitragem a roçar o nojento, mas onde, desde o primeiro minuto, os rapazes de verde e branco mostraram que quiseram ganhar, incluindo Gudelj e Bruno Gaspar que, imagine-se, aos cinco minutos já surgiam na ficha do jogo como os que primeiro atiraram à baliza lampiã.

Foram dez minutos praticamente jogados no meio-campo encarnado, até o benfica começar a esticar o jogo e emperrar as ideias leoninas que, invariavelmente, morriam na incapacidade de decidir bem no último terço do terreno. Algo que, digo eu, não será de estranhar. Perguntem ao Acuña e ao Raphinha, até ao Bruno Fernandes, o que é normal fazerem quando se aproximam da área adversária? Centrar para o Dost. Acontece que não havia Dost, mas sim Phellype, e isso obriga a um jogo completamente diferente. A rotinas que não existem, como as diagonais que Raphinha e o próprio Luiz devem fazer para aproveitar a liberdade de Bruno Fernandes entre linhas.

E com o Sporting a querer e a não conseguir e o benfica a jogar tudo nos irritantes arrufos de vedetismo dos Félix da vida (alguém lhe bata palminhas, hoje) e na paciência de esperar por um deslize adversário (muito bem, Borja, em cima do intervalo, a roubar o golo a Seferovic), não admirou que o jogo tivesse ido para intervalo com um 0-0 e com um forte sentimento de que a final do Jamor estava perfeitamente ao nosso alcance.

Bruno Fernandes fez tremer a barra logo no recomeço, na marcação de um livre directo, Seferovic respondeu com um remate ao lado na única vez em que, lançado em profundidade, conseguiu isolar-se. Depois o jogo voltou a empastelar. O Sporting era mais intenso, queria a bola, queria ganhar. Queria, mas não conseguia, por mil e um motivos, entre maior e menor qualidade, entre fantasmas que pesam chumbo. Ilori substituía um amarelado Bruno Gaspar, Dyabi entrava para dar a falsa ideia de que Acuña baixaria para defesa, pois o carrossel estava invertido e agora era Ilori a fazer de terceiro central a partir da direita, juntando-se à classe de Mathieu e ao Sebastião limpa tudo tudo tudo. Gudelj fazia o seu melhor jogo de Leão ao peito, Wendel era 90% de esforço e 10% de inspiração, Acuña continuava intratável na arte de segurar a bola no meio de três ou quatro adversários, Raphinha estava de fato macaco vestido, Luiz Phellype fazia o que podia e não podia, muitas vezes sozinho entre os centrais, apanhando cotovelas atrás de cotoveladas (a única forma que Jardel conhece de disputar bolas) e conseguindo alguns domínios de bola incríveis.

E quando, na bancada, os adeptos sentem que a equipa está a deixar tudo em campo, não há como não ficar sem voz fora dele. Foi por isso que a curva deu a volta. Foi por isso que o “Sporting até morrer” foi crescendo até ser um rugido único. Foi por isso que, naquele minuto quase 75, o Bruno Fernandes não foi só o Bruno Fernandes. Foi todos aqueles 30 e qualquer coisa mil Leões e Leoas, mais os outros não sei quantos mil ou milhões que se recusam a deitar a toalha ao chão. E também foi um bocadinho Balakov, que arqueia o corpo e dispara aquela bomba teleguiada ao ângulo mais improvável, no momento de arte que quis ser vida.