Um campeão no futsal, um campeão no hóquei, um campeão no basquetebol, um campeão no voleibol e um campeão no andebol: não é todos os dias que se junta um grupo tão laureado de treinadores, mas foi isso que aconteceu com Nuno Dias, Paulo Freitas, Luís Magalhães, Hugo Silva e Hugo Canela, respetivamente, no Sporting Summit, uma cimeira de modalidades organizada pelo clube de Alvalade

A formação, o alto rendimento, os jovens, os pais, os treinadores e, claro, o jogo. Seja esse jogo de futsal, de hóquei, de basquetebol, de voleibol ou de andebol. Durante duas horas, esta sexta-feira à tarde, em Alvalade, foram esses os temas a guiar a conversa “da formação ao alto rendimento”, da Sporting Summit, entre cinco treinadores que já foram campeões nacionais nas respetivas modalidades: Nuno Dias, Paulo Freitas, Luís Magalhães, Hugo Silva e Hugo Canela.

“É sempre importante partilhar ideias com tantos treinadores com tanta qualidade”, começou por dizer Nuno Dias, tricampeão nacional de futsal pelo Sporting, que acredita que, na formação, “mais do que respeitar escalões etários, importa perceber o nível de desempenho dos jogadores, porque, se o nível for alto, já podem começar a integrar as equipas profissionais”.

No hóquei, segundo Paulo Freitas, a lógica é exatamente a mesma: “Os talentos normalmente precisam de outro tipo de desafios para evoluírem e para se irem preparando para a alta competição, onde a exigência é sempre medida por troféus. Nós seguimos três linhas: temos a estrutura profissional; temos uma segunda linha, na qual estão jogadores com um perfil que nos interessa, além da qualidade, e que achamos que podem estar preparados para a equipa principal dentro de dois ou três anos; e temos uma terceira linha, na qual temos os talentos entre os 16 e os 19 anos, alguns a evoluir dentro do universo Sporting e outros a evoluir fora do clube, e que achamos que podem chegar ao topo dentro de cinco ou seis anos. É esta ‘escada’ que nos estrutura no hóquei”.

No que diz respeito ao basquetebol, a estrutura ainda é diferente, uma vez que o Sporting só irá retomar a atividade da equipa sénior na próxima época, sob a liderança de Luís Magalhães. Questionado sobre as diferença entre o treino na formação e no alto rendimento, o treinador de 60 anos foi cáustico: “O perfil essencial é a competência. Um treinador competente sabe sempre o que fazer nas diversas situações.”

Hugo Silva, treinador do voleibol do Sporting, preferiu questionar os presentes sobre o sucesso, tanto no alto rendimento como na formação. “A exigência tem sempre de existir, na formação e na competição, mas o que acho importante definir é o sucesso. Normalmente, definimos o sucesso com títulos, com o ganhar. Mas esta definição tem de ter outros moldes: o atleta tem de evoluir, tem de conhecer o jogo, tem de saber treinar, tem de saber conviver com os colegas…”

Nuno Dias corroborou a ideia: “Na nossa sociedade, infelizmente, só medimos o sucesso pelo ganhar. Quem trabalha com qualidade é quem ganhou, quem perdeu é porque trabalha mal. Se calhar não é bem assim, não é? Se calhar o sucesso não é só ser campeão: há os conteúdos aprendidos, há os valores transmitidos, há os jogadores mais preparados para o futuro…”

O treinador bicampeão nacional de andebol, Hugo Canela, depois de ouvir elogios de Hugo Silva – “nunca cheguei tão longe nas competições europeias como tu…” -, alongou as teses dos colegas, exemplificando com a sua própria experiência enquanto ex-jogador. “A minha formação enquanto atleta foi deficiente em termos técnico-táticos. Gostei muito dos meus treinadores, eram pessoas dedicadas e com muita vontade, mas houve muitas coisas que não aprendi na formação, só aprendi nos seniores. Há um degrau grande entre juniores e seniores e temos de ver bem quem está à frente da formação, para ensinar bem os atletas.”

Sentado na plateia, Miguel Albuquerque, diretor das modalidades do Sporting, ouviu Nuno Dias revelar o lema do seu superior hierárquico no departamento: “A máxima que o Miguel costuma sempre dizer é: ‘Queremos formar bem e queremos formar campeões.’ Ou seja, primeiro queremos formar bem, mas isso não quer dizer que não queremos ganhar também”.

Para Nuno Dias, enquanto os jovens não ultrapassam os 11, 12 anos, nem sequer devem especializar-se numa modalidade. “Devem vivenciar outras coisas, ter novas experiências. A especialização precoce não interessa. Não queremos que as crianças se cansem do treino. Costumo até dizer: ‘Temos de deixá-los jogar à finta’. Não gosto nada de ir a jogos dos escalões mais jovens e ouvir: ‘Joga a dois toques’. Eles têm de se divertir e até de vivenciar todas as posições possíveis. Depois, quando forem mais velhos, juvenis e juniores, têm tempo de aprender outras coisas”, garantiu.

Paulo Freitas concordou com Nuno Dias, mas notou uma diferença no que diz respeito ao hóquei: “A questão do guarda-redes é diferente. Antigamente, escolhia-se para guarda-redes quem tinha, enfim, menos apetência para patinar…” Nuno Dias aproveitou o momento para deixar uma dica ao colega. “Então mas tu não eras guarda-redes?”, questionou, arrancando gargalhadas à audiência.

“Era, era [risos]. Vou dar um exemplo enquanto pai. O meu filho, que joga hóquei, foi campeão nacional nos sub-13, numa equipa que era uma maravilha de ver jogar, mas que também era uma dor de alma. Ou seja, nós não tínhamos dúvidas de que eles iam ganhar, porque utilizavam estratégias seniores, por isso, coletivamente, ganhavam, mas a formação ali não estava a ser a mais adequada. Queremos formar para ganhar ou queremos formar a ganhar? Isto é discutível e tem a ver com o caminho que se quer percorrer. No profissional nós queremos é rendimento, mas na formação não é bem assim”, explicou o treinador de 50 anos, que cumpre a sua terceira época no Sporting.

Luís Magalhães também pegou num exemplo familiar para falar sobre os jovens de hoje: “Assim que possível, coloquei a minha filha na natação e na ginástica. E deixei-a brincar, saltar, andar na rua, arranhar-se, magoar-se… Fiquei satisfeito porque a minha filha foi maria rapaz e sempre foi isso que quis que ela fosse. Além disso, volto a dizer: o que é essencial na formação é ter treinadores competentes. Porque, depois de detetar os talentos, temos de lhes juntar treinadores competentes e, aí sim, poderemos vir a ter jogadores no futuro. Se não, estamos só a brincar.”

Seguindo a mesma linha de pensamento, Hugo Silva utilizou um exemplo do voleibol para comprovar as ideias dos colegas: “O melhor distribuidor de todos os tempos, o Ricardinho, foi atacante até aos 18 anos. E os atacantes também devem ser passadores, para saber o que os outros sentem. É bom para darmos valor ao que fazem os colegas”.

Hugo Silva indicou também uma especificidade do voleibol, no que à deteção de talentos diz respeito. “Para nós os gestos técnicos são muito importantes. No futsal, por exemplo, alguém falha um passe e se calhar não acontece nada, mas no voleibol perdemos pontos. Por isso, no voleibol, importa o gesto e a deteção de talento é fácil: são os grandes. Tem dois metros? Ótimo”, revelou, acrescentando, ainda assim, que não se importava nada “se aparecesse outro Miguel Maia”, mas Nuno Dias interrompeu-o: “Com os baixinhos fico eu”.

“Há uns anos, fui a uma formação no Porto e disseram-me que havia lá um rapaz muito alto, mas que nem andar sabia. Ele tinha 18 anos e tinha dois metros e tal. Ele até a andar tropeçava, mas em dois anos chamei-o à seleção, porque aprendeu os gestos técnicos e evoluiu. Mas hoje a especialização é quase aprender a andar, que nem sabem. Temos trabalho a quadriplicar: ensinar a andar, a saltar, a fazer os gestos técnicos e a jogar”, contou Hugo Silva, que também é selecionador nacional.

Se no futebol se costuma dizer que faz falta aos jovens jogarem na rua, nas restantes modalidades a lógica é exatamente a mesma. “Quem é que joga fora de casa hoje em dia? Eu jogava por cima do portão de casa com a minha prima, mas isso hoje em dia já não se vê”, contou Hugo Silva.

Hugo Canela, que além de treinador do andebol do Sporting é professor de educação física no Colégio São João de Brito, diz que o problema é da sociedade atual. “Nós, enquanto pais, vivemos cheios de pressa para tudo. Às vezes oiço, sobre o meu filho: ‘Como é que um filho de dois professores de educação física não sabe fazer uma cambalhota?” Eh pá, calma, ele só tem sete anos… Eu olho para o horário do meu filho e acho que é um crime, porque ele tem horas para tudo. Ele não brinca, ele tem brincadeiras organizadas: vai à natação, vai ao futebol… Não tem de inventar nada nem brincar sozinho”.

E o que é que isso tem a ver com o desporto? Canela explica na perfeição: “Um jovem que vem treinar comigo nos seniores, seja dos juvenis ou dos juniores, vai lá só para repetir o que sabe saber melhor, faz sempre a mesma coisa, para não fazer muita asneira. Voltando à minha formação enquanto jogador: como eu era pequeno, diziam-me para eu só fazer uma coisa, que era penetrar, então eu só aprendi a fazer uma coisa, perdi o resto do alfabeto do andebol. Eles têm de experimentar tudo, tentar coisas novas, fazer e errar”.

Para que isso aconteça, nas cinco modalidades representadas pelos treinadores, também tem de haver outro tipo de formação, explicaram: a dos pais. “As minhas filhas andam na ginástica aqui no Sporting e os treinos são fechados aos pais, e eu acho bem. Se não ia lá eu dizer como é que se treinava, não era?”, gracejou Nuno Dias. “Os pais acham que têm competência para se imiscuir no trabalho dos treinadores e acham sempre que o filho é o Ricardinho ou o João Matos…”

Paulo Freitas concordou com o colega do futsal: “Sou contra os pais assistirem aos treinos. Nós também não vamos à escola observar as aulas dos nossos filhos, pois não? E contra mim falo, porque no hóquei os pais podem assistir aos treinos. Mas é uma questão de expetativas: nem todos vão ser o Girão ou o Pedro Gil. Quando um jovem atleta é sobredimensionado, dificilmente depois atinge patamares de excelência. O problema é quando os pais querem vivenciar aquilo que não é deles, que é dos filhos. Lembro-me de ver treinos em que os pais até discutiam quem ficava com colete no treino e quem não ficava com colete, por exemplo”.

Ainda assim, Luís Magalhães lembrou que os encarregados de educação são uma parte muito importante do processo desportivo e só precisam de ser… educados. “Quando estive no FC Porto, foi complicado, então a linguagem… Mas de dois em dois meses fazíamos formações para os pais, para transmitir o que queríamos”, contou.

“Nós não temos só um projeto desportivo, temos também um projetivo educativo”, explicou Hugo Canela. “Isso tem de ser explicado aos pais desde o início. Se não concordarem, então cada um segue o seu caminho. Hoje em dia as coisas são muito diferentes. As crianças passam de ano e recebem uma bicicleta, no outro ano recebem uma moto… Estamos sempre a recompensá-los porque queremos que eles tenham mais do que nós tivemos, mas assim perde-se muita resiliência, é tudo demasiado fácil”, diz o treinador, acrescentando que, na formação, todos precisam de partilhar o mesmo objetivo, para conseguir chegar ao sucesso.

E o que é, afinal, esse sucesso? “Conseguimos ter jovens da nossa formação a jogar a Liga dos Campeões e isso é um grande passo, fiquei muito orgulhoso”, garante Canela. E Nuno Dias acrescenta: “Não só ter jogadores da formação na nossa equipa, mas ter 40 ou 50 jogadores que nós formámos e que estão agora a jogar na Liga Sportzone. Nem todos cabem no Sporting, mas têm qualidade e cabem noutros sítios. E isso também quer dizer que a formação é boa.”

texto escrito por Mariana Cabral in Expresso