Beto, que tal tudo por aí?
Tudo bem.

Pronto para a Copa América?
Prontíssimo.

Vais ver onde?
Por la tele, aqui, em Buenos Aires.

O negócio da televisão é um fenómeno recente. Como é que fazias quando eras miúdo?
Usava a imaginação.

Porquê?
Nasci num pueblo muy pequeno chamado Arocena [só para entenderem a dimensão do ‘pueblo’, nem sequer tem página no wikipedia]. A minha vida era tranquila, na casa dos meus pais. Como não havia televisão e como também não havia acesso a grandes estádios ou coisa que se parecesse, o futebol, como fenómeno desportivo, era vivido de…

De forma apaixonada?
Isso mesmo. Também é isso. Ia dizer futebol de rua. Cresci na rua, cresci a jogar sozinho contra uma parede e também em grupo, com amigos, amigos de amigos a fazer torneios, aquela calle contra a outra, aquele barrio contra o outro e por aí fora. Cresci a coleccionar revistas para colar os posters e admirar os ídolos naquele cubículo que era o meu quarto.

Quem eram os ídolos?
Kempes, sobretudo Kempes. Também Fillol, el arquero. Era uma febre, quase, je je je je [os argentinos riem-se assim, não me perguntem porquê]. Admirava o Kempes pela imponência do seu físico, pela quantidade de golos e pela qualidade do seu jogo. Era um 9 móvel, que estava sempre no sítio certo mas que também saía a driblar dentro da área. Além do mais, ele transferiu-se para o Valencia e ganhou fama internacional. Isso, naquela altura, causava outro impacto em todos nós. É preciso ver que o futebol não dava na televisão e, por isso, havia menos pressão. Agora vês um jogo em directo a toda a hora e sabes em cima da hora qualquer resultado, seja aqui ou na Ásia. É incrível. Antes, não. Nada disso. Lá ias vendo os golos dos jogos mais importantes e, claro, a selecção.

Onde estavas quando a Argentina foi campeã mundial em 1978?
No meu pueblo.

Lembras-te da festa?
Claaaaro. Tinha 11 anos e saímos todos à rua. Lá está, Fillol na baliza e Kempes a 9. Foram tempos desportivos fascinantes. O ganhar um Mundial era como se fosse um sonho, agora concretizado, ainda por cima em casa. A adesão popular foi maciça.

E em 1986, onde estavas?
O México-86 é diferente. Já tenho 19 anos, já jogo futebol profissional, já tenho consciência, por assim dizer. Je je je je. É verdade, já analisava tudo e mais alguma coisa. É normal. E havia Maradona. O que ele fez no México é algo que me ultrapassa. A mim e à maioria, creio. Que génio. Ele partiu toda a gente: Coreia, Bulgária, Itália, Uruguai, Inglaterra, Bélgica e Alemanha. Ninguém escapou. Também saí à rua, claro. Foi outra fiesta bonita, até às tantas. A selecção mexe sempre connosco.

Diz-se que os argentinos vibram mais com a selecção do que com os clubes. É verdade?
Talvez seja assim, talvez. A verdade é que apanhas a geração Kempes e és campeão mundial em 1978. E depois apanhas a geração Maradona e sais campeão em 1986, sem esquecer a final em 1990. Agora é a geração Messi. São muitas coisas boas a acontecer num curto período de tempo. E quem as vive não as esquecerá. Nunca. Por isso, é válido pensar assim, que os argentinos unem-se e ouvem-se mais durante os jogos da selecção.

Falaste nas gerações Kempes, Maradona e Messi. E a tua?
A minha é a do Maradona, je je je je.

Jogaste com ele?
Sim, um par de vezes.

E então?
Há a realidade, há o sonho e há o Diego. É qualquer coisa de especial, acima de qualquer sonho. O que ele fazia com a bola nos treinos e também nos jogos, não há explicação. Era grande, grande, grande. Génio.

Como é que apareces na selecção?
A minha primeira convocatória é para um jogo particular no Centenário, em Montevideo: Uruguai-Argentina.

Uauuuu, clássico.
Je je je je. Verdade, só que este acabou 0-0.

E és convocado porquê?
Comecei a carreira aos 19 anos no Unión Santa Fé. Dois anos depois, já estou no San Lorenzo. Depois, aventuro-me pela Europa, ao serviço do Toulouse, e volto ao San Lorenzo. É aí que começo a marcar golos e a ser notado. Lembro-me perfeitamente dessa convocatória, porque ligaram-me para casa ao domingo à noite, depois de um jogo. Telefonaram-me a dizer para estar em Buenos Aires na sede da Associação Argentina de Futebol às tantas horas. Lá fui.

Lindo. E quem lá estava?
Craques de todo o tamanho. Batistuta, seria ele a maior referência. Depois, Simeone, Redondo e outros. Só que, ao contrário de hoje, todos nós jogávamos na Argentina. Não havia esse fenómeno da emigração. Conhecíamo-nos todos do campeonato nacional. Acompanhávamos as nossas virtudes de semana a semana, ou ao vivo ou pela televisão.

Tu entras para a selecção e?
Foi um período sem Maradona. Já não me lembro porquê, deveria estar sancionado pelo caso de doping. Bom, a verdade é que entro na selecção e apanho aquela fase em que não perdemos durante 31 jogos. Foi mágico, ganhámos duas Copas América. Uma em 1991, no Chile, outra em 1993, no Equador.

Jogaste as duas?
Sim, sim. Quer dizer, mais a segunda edição, em 1993. Na primeira, a dupla era Batistuta e Caniggia.

Uauuuu.
Je je je je, é ieso mesmo. Dois craques que se completavam muito bem.

E em 1993?
O Batistuta e eu. Às vezes, o Medina Bello.

Quem é o seleccionador?
Tanto o que me convocou pela primeira vez como o das duas Copas América, é o Alfio Basile. Mais conhecido por Coco. Era um treinador de uma outra escola. Sempre bem-disposto, sempre correcto e muito frontal. Só coisas boas sobre ele, um homem muito profissional e extremamente prático. Para ele, tudo era simples. E assim o era, de facto. Não joga este, joga aquele. Não fazemos isto bem, vamos tentar fazer aquilo. Aprendi muito com ele. Mais: todas as minhas 19 internacionalizações são com ele e sabes uma coisa?

Nem ideia.
Nunca perdi um jogo, je je je.

Espectáculo, maravilha.
Podes crer, grandes tempos. A Argentina estava fortíssima, cheia de confiança. Eram os tempos dos dois nueves. Nós jogávamos com Batistuta e Caniggia, depois Batistuta e eu, que éramos fisicamente muito fortes. O Brasil do Mundial-94 tinha Bebeto e Romário.

Verdade, nunca tinha pensado.
Outros tempos, agora até é moda jogar sem um 9 fixo, de área.

Dos fixos, de quem é que gosta mais?
Assim para o combate físico, é o Lewandowski. O homem é brutal, derruba qualquer muralha. Também há Agüero, muito fino e perspicaz. Agora se falarmos em goleadores, sem serem realmente 9, temos de nos render à eficácia de Ronaldo e Messi. O que eles fazem, je je je je. Trituram os guarda-redes dias sim, dia sim. É incrível.

Batigol era assim, não?
Batigol era um deus para a Argentina e para a Fiorentina. Quando ele pegava bem na bola, nem valia a pena.

Dizias tu, Batistuta e Acosta na Copa América 1993.
Je je je. Começámos bem e passámos a fase de grupos em segundo lugar, atrás do México, o que implicou que apanhássemos o Brasil nos quartos-de-final. Acabou dois-dois e tivemos de ir a penáltis.

Marcaste algum?
Nesse dia, fui suplente. Entrei a meio da segunda parte para o lugar do Batistuta. E marquei o quarto penálti, logo a seguir ao Roberto Carlos.

E então?
Golo, je je je je.

Como é que o Coco definia os batedores de penáltis?
À base da conversa. Perguntava-nos se nos sentíamos confiantes, se queríamos patear.

Nas meias-finais?
Outro desempate por penáltis, com a Colômbia. Aí marquei o quinto penálti, depois do Valderrama. Mais uma vez, o Goycoechea deu-nos a vitória. Ele era um guarda-redes impressionante em tudo, ainda mais nos penáltis. Agarrava sempre um ou outro. Ou mais. No Mundial Itália-90 foi colossal. Nessa Copa América também.

E a final?
Dois-um ao México, bis do Batistuta. Campeões.

Bicampeões.
Je je je, pois é.

Entre essas duas Copas América, ainda ganhas a Taça das Confederações em 1992?
Baaaaaahhhh, ainda era uma Taça das Confederações muito primitiva. Só quatro selecções. Ganhámos 4-0 à Costa do Marfim, campeã africana. Marquei o 4-0. E depois, na final, 3-1 à anfitriã Árabia Saudita. Foi bom, claro. A rotina de vitória sabe sempre bem, mas era um torneio pequeno, sem a importância da Taça das Confederações dos tempos de hoje.

Muy bien. Andaste pelas Américas de 1993 até 1999. De repente, Portugal.
Je je je je. Que aventura. Queria esquecer a aventura no Toulouse, em França, e sair-me bem na Europa. O Sporting abriu-me as portas.

Quem, concretamente?
Mirko Jozic. Ele treinava o Colo Colo [aliás, sentem-se: Jozic é o único europeu a conquistar a Libertadores] e eu jogava na Universidade Católica. Conhecemo-nos aí e, passado um tempo, o Jozic foi contratado pelo Sporting. Passado mais um tempo, ele recomendou-me. O Sporting foi lá e já está. Je je je.

Conhecias o quê do Sporting?
Pouco, a verdade é essa. Sabia que era de Portugal, claro. E, óbvio, era pelouro Jazalde [eles, argentinos, dizem J em vez do Y]. O Jazalde era muito falado na Argentina, marcou golos em Mundiais e tudo. Era uma referência pela capacidade goleadora, ainda por cima foi Bota de Ouro como melhor marcador na Europa.

E tu não foste Bota de Ouro como melhor marcador da América do Sul?
Estava a ver que não dizias, je je je. Fui, sim [em 1994, com 33 golos].

Chegaste a Lisboa e?
Nem me fales. Os primeiros seis meses passei-os em Cascais. Quando acabou essa época 1998-99, pedi para mudar e meteram-me perto do estádio, na Avenida de Roma. Nem imaginas o tempo que passava no trânsito. Aquela marginal je je je. Lindíssima, mas caótica. Na Avenida de Roma, era bem melhor.

E o clube propriamente dito?
Uma estrutura de grande, com adeptos formidáveis e uma equipa fantástica. O capitão Pedro Barbosa foi o primeiro a receber-me. Havia outros pesos pesados, como Beto e Rui Jorge. Os argentinos Duscher, Quiroga, Hanuch e Kmet. O André Cruz, que profissional. E um líder nato. Tal como o Schmeichel. Difícil marcar-lhe golos nos treinos, hein?! Que muralha. E um tipo cinco estrelas, cheio de boas intenções e constantemente bem-disposto.

Mesmo nos jogos? Via-o nervoso, de vez em quando.
Je je je je. Isso já não sei. Sou avançado e não o ouvia. Escapei de boa. Je je je je. Uma animação pegada era o Nuno Santos, que figura. Era o terceiro guarda-redes e estava sempre, sempre mas sempre mesmo a gozar com o resto da malta.

Mais alguém?
É um poço sem fundo, acredita. Olha, o César Prates.

O que tem?
Inesquecível, estava sempre a rir-se. A sério, ele simplesmente passava a vida a rir-se. Até nos treinos. Até nos jogos. Às vezes, lembro-me como se fosse agora, ele falhava um cruzamento e eu olhava zangado na sua direcção. Para quê? Ele já estava a recuar para o seu lugar com uma cara de menino traquinas, que sabia que tinha feito uma asneira mas que não queria que lhe chamassem à atenção. Que figura. E, claro, havia o maior de todos.

Quem?
Paulinho.

Pois ééééé, o Paulinho.
Um personagem da cabeça aos pés, muito profissional e divertido até dizer chega. Um bom balneário não é só feito de jogadores, também tem de incluir médicos, roupeiros e por aí fora. A verdade é que esse Sporting era especial do ponto de vista humano. Havia figuras incontáveis. E havia rituais que nos transmitam união e nos davam mais força ainda.

Tais como?
As chamuças. No fim dos treinos, às quintas ou sextas-feiras, havia sempre massagens e, depois, pedimos chamuças. Comíamos no balneário, era divinal. Partilhávamos um tempo de qualidade na véspera dos jogos.

Quais os jogos mais importantes?
Todos. Para se ser campeão, é preciso reagir bem às vitórias, aos empates e às derrotas.

Aquela do livre do Sabry fez mossa?
Claro que sim. Foi um dia mau. Estávamos tão perto do título e queríamos dar o título aos nossos adeptos em Alvalade. Só que o nosso jogo não apareceu e o Sabry marcou aquele livre directo a poucos minutos do fim. Aquilo derruba-te. Mas só nesse dia. No dia seguinte, acordas com outra disposição. Sobretudo quando te reúnes com o resto dos jogadores no balneário e chegas à conclusão que o sonho ainda está ao nosso alcance. Bastava-nos ganhar ao Salgueiros, no Porto. E goleámos 4-0.

Foi uma tarde de glória.
Mais que isso, foi o concretizar de um sonho. Para os adeptos, à espera dessa alegria há 18 anos. Para os dirigentes, que apostaram naquele plantel. Para os jogadores portugueses, já enraizados no Sporting, e para os jogadores estrangeiros, que trocaram as voltas à família e foram viver para Lisboa à procura de um sonho. Concretizável. Foi inesquecível. Até porque o sonho de ir para a Europa também era o de jogar na Liga dos Campeões. Objectivo cumprido.

É no ano em que o Sporting rouba a liderança ao Porto num clássico em Alvalade.
Grande jogo, 2-0 para nós.

Marcaste o 2-0, de fora da área.
Mal recolhi a bola, imaginei um exército de camisolas azuis e brancas atrás de mim. Decidi-me por um pontapé forte e colocado. A verdade é que a bola entrou colada ao poste. O Baía esticou-se, mas não chegou. Foi um momento daqueles inesquecíveis. Trabalhas para eles durante toda uma carreira e, finalmente, ei-lo ali à tua frente. Foi mágico.

E os dois golos ao Benfica na Luz, para a Taça?
Dois?

Não foram dois?
Dois e meio. Dois e meio [insiste] je je je. Ganhámos 3-1. Há um golo em que o André Cruz faz a emenda a um cabeceamento meu. Baaaaahhh.

Agora é a minha vez, je je je je.
Je je je je.

E aquela final da Taça de Portugal?
O que tem?

A cotovelada na cara do Paulinho Santos?
São coisas que acontecem no futebol e que não deviam acontecer. De todo. Aquilo é uma fracção de segundos, a gente passa-se num clique. Arrependeste-te no instante seguinte. Não me orgulho, claro que não.

O último título é a Supertaça ao Porto. E com um golo teu.
Já foi um Sporting diferente do da época anterior. Vieram João Pinto, Paulo Bento e Sá Pinto, por exemplo. O Inácio também saiu e entrou o Manuel Fernandes. Aliás, ganhámos essa Supertaça com o Manuel Fernandes. Foi um jogo engraçado. O Schmeichel defendeu um penálti do Deco e depois eu marquei o 1-0, também de penálti. Sempre tive queda para bater penáltis. Era assim nos clubes argentinos, era assim na selecção durante a Copa América e foi também assim no Sporting. Vive-se para esses momentos de enorme responsabilidade. A adrenalina sobe e um golo nessas circunstâncias de maior aperto é a realização de um sonho e o sentido do dever cumprido. Tanto em relação aos colegas de equipa como em relação aos adeptos, que pagam para viajar e puxam constantemente por nós em campo.

E amigos no Benfica, tinhas?
Assim de repente, lembro-me do Bossio.

Claro, argentino.
E o Chano, espanhol. Eram simpáticos. E levavam-me a almoçar.

Onde?
Ao Barbas, acreditas? Je je je je. Fui sempre bem recebido por lá. Mesmo junto à praia, maravilha.

Quando voltaste à Argentina, ainda jogaste uns anos?
San Lorenzo. Siempre. Joguei quatro vezes no San Lorenzo, je je je je. É um amor grande. Como o do Sporting

Obrigado Beto, grande abraço.
Obrigado eu. Envia-me depois o link da reportagem, por favor.
Tranquilo, claro que sim.

entrevista publicada no jornal digital, MaisFutebol