Toda a cultura ocidental moderna está assente na primazia da individualidade. O cidadão e os seus direitos, o indivíduo e a sua especificidade, o descendente e a sua herança genética e cultural, o contribuinte e o seu património. Numa reação à massa genérica e indiferenciada socialista e à congregação homogénea religiosa, o ser é agora predominante sobre as suas associações. Ganham-se conceitos como a liberdade à diferença, perdem-se os hábitos de interacção e colaboração. Noções como patriotismo ou bairrismo, tendem a esbater-se ajudadas por outra realidade emergente, a globalização.

Outra génese de associativismo pode sofrer ainda mais. O sentimento de ser adepto ou fã de um clube também está a mudar bastante. Os clubes de futebol foram organismos construídos em cima de um tecido social emergente da revolução industrial. A maior parte resultante de um conceito novo que (re)nasce principalmente no início do séc.XX, o desporto. Na verdade o conceito não é novo, mas democratiza-se bastante mais, saindo da pequena esfera dos momentos de lazer das classes mais altas e tornando-se acessível às classes mais baixas (sobretudo o futebol).

Nascem as primeiras vedetas, formam-se os primeiros grandes clubes, quase todos oriundos de locais com enormes massas de população. Criam-se os campos e rapidamente os estádios. Nascem as Federações, as Associações, o futebol organiza-se e estruturam-se competições regulares. As leis do futebol são ajustadas e surge uma verdadeira actividade económica que cumpre os desejos de uma procura voraz pelo espetáculo de futebol. Nestas primeiras décadas, desenvolvia-se nos clubes de futebol o mesmo espírito de colaboração que permitia outras forma de organização em massa: os enormes quadros de operários, os enormes exércitos, as grandes congregações religiosas.

Talvez não tão democráticos quanto seria desejável, mas os clubes eram tecidos onde se respirava a lógica do “nós”, a identificação pelo grupo, o sentimento de pertença a um plural. O indivíduo ganhava forma, mas obedecia a uma máxima de direitos e deveres mapeados em cima de uma necessidade de crescimento coletivo. Quanto mais pessoas adeptas, maior o clube. Mais quotas, mais poder financeiro. Mais espectadores nas bancadas, mais dinheiro para pagar às grandes vedetas. O tamanho do grupo determinava a sua aspiração a vencer.

Muito mudou desde estes primeiros tempos. A televisão primeiro, as leis de cidadania depois e por último a ascensão do poder desenfreado dos empresários de jogadores transformariam o futebol para sempre. A TV colocou o jogo nas casas, permitindo o crescimento global do clube (já não amarrado à geografia das distâncias físicas) mas retirou hábitos de bancada, em regra geral os estádios diminuíram a sua lotação, a era do conforto trouxe novas exigências e a mais nefasta de todas, a acomodação e letargia. Há adeptos (até bem fervorosos) que contam pelos dedos de uma mão as vezes que se deslocaram ao estádio.

Sobretudo a lei Bosman, abriria outra fenda. Quase sem restrições, caem a maior parte das limitações de jogadores estrangeiros. As grandes equipas artilham-se de tudo o que é bom, venha de onde vier, tornando-se autênticas “show teams” de Babel, perdendo ao longo do tempo a lógica de representarem o seu bairro, o seu país ou uma determinada língua ou cultura. Os clubes são hoje um retrato completamente espartilhado de um planeta em aproximação. Mais uma vez ganha-se pelo esbatimento das diferenças, perde-se pela identificação ou pertença a um grupo. Hoje em dia há fãs do Barcelona em Seul, adeptos do Manchester United em Capetown, crianças que vibram com a Juventus em Sidney.

As TVs e os satélites levam tudo a todo o lado, a internet despeja informação constante. Pode-se estar em qualquer lugar e aceder a informação em tempo-real de qualquer assunto ou acontecimento de qualquer outro sítio. Ser do Manchester United já não é exclusivo aos bairros operários das inúmeras industrias transformadoras de Tradfford Park. O “eu” da tal criança de Capetown já lhe permite optar pelo clube britânico em vez da natural escolha que seria o clube da sua proximidade. “Eu” posso escolher. “Eu” não preciso de estar amarrado à minha geografia, ao meu país, ao dialecto afrikaner ou zulu. “Eu” posso vestir a camisola do clube que eu quiser. “Eu” não tenho de ser o que os meus pais, vizinhos ou amigos são.

O meu filho é uma destas crianças. É Sportinguista e na idade que tem, já não mudará de preferência. Mas ao contrário de mim, o Sporting para ele não é tudo. Sente-se leão pela circunstância nacional, mas ao escolher um equipamento para levar para a escola, tende a preferir o kit do Barça ou do Chelsea. As razões são as mais simples de todas. Adora o Messi. Adora o Hazard. Ao contrário de mim, os heróis dele não vestem de leão ao peito. Até simpatiza com Bruno Fernandes, mas a estocada que levou com a saída de Rui Patrício e Gelson fizeram-no desistir das incertezas verdes e brancas. Ao contrário de quem venera jogadores porque são de um determinado clube, quem é fã apenas de um clube por um jogador específico, nunca se sentirá traído.

Para o meu filho de 9 anos, idolatrar o Hazard no Chelsea ou no Real Madrid é indiferente. O Messi estar no Barcelona, no City ou na Argentina é igual. O “eu” do meu filho está ligado ao “eu” do jogador. Esta é a maior ameaça à evolução do futebol, tal qual o conhecemos. A hegemonia do indivíduo. Os jogadores sem clube. Os “clubes” hóspedes. Os adeptos de jogadores e os seus empresários “mercadores” de talento. Já começam a ser visíveis as primeiras fendas que esta mudança irá provocar. O poderio de 5 ou 6 clubes que se distanciam dos demais. O consumo de receitas para lá do que é sustentável pelos clubes. Os “eus” de magnatas que transformam clubes de menor expressão em monstros europeus. A secundarização de várias ligas, inundadas de interesses especulativos, autênticas barrigas de aluguer para as grandes ligas europeias.

Assusta-me na verdade esta conjuntura de direitos do “eu”, a globalização e o desequilíbrio das receitas de TV. O que será mais divertido daqui a 2 ou 3 anos? Ver o jogo no estádio ou com acesso costumizável às 20 câmaras de tv na minha casa, podendo seguir até um determinado jogador? Jogar à bola na rua ou jogar playstation com hologramas espalhados pela minha parede ou chão da sala? Ver um jogo de uma Superliga Europeia, inundada de vedetas ou um decrépito, corrupto e convulso jogo da Liga Portuguesa? Afinal de contas, “eu” posso escolher, não posso?

*às quartas, o Zero Seis passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca