fotografia a primeira tascaO Cherba que me perdoe esta ousadia, mas a primeira Tasca começou uns anos antes dos tempos do cacifo, escondida algures numa colina da mais bela vila da Costa do Sol, presa entre o frio da manhã e as tardes soalheiras da linha, nas quais ficávamos a contemplar, com uma cervejinha à beira da estrada, a queda dos últimos raios de luz e o nascimento dos primeiros laivos da noite.

O espaço é uma pequena Tasca, onde cabem pouco mais de 20 pessoas sentadas, bem aconchegadas entre si. À entrada o Leão da Tanzânia – uma pintura esplendorosa, que retrata todo o poder e omnipotência do Rei Da Selva, oferecido por um dos seus mais queridos “netos”, o “Jonny Silva”.

Pelas paredes existem muitas figuras e pequenas esculturas africanas do passado, espaços onde antes figuravam molduras com o “mandante” de Alcochete ou com o maior do mundo, como o seu dono carinhosamente lhe chamava – o seu precioso Cristiano. Pelos cantos da casa vão vivendo retratos com quadras do nosso passado – por entre eles podemos ver grandes vedetas, como Valckx, Balakov, Iordanov, Juskowiak, Figo, Ivković e claro, o nosso Cherbakov.

A clientela é heterógena e alcoólica. Há estudantes que estudam e outros nem tanto; há donzelas e por vezes putas; há chulos e chulados; há os que pagam, os que vão pagando e os que não pagam de todo; há os interessados, os interesseiros e os amigos; há velhos, novos e crianças; há engenheiros, doutores, médicos, enfermeiros e “xotores” e ainda bispos; há portugueses, angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos, são-tomenses, ucranianos, ciganos, brasileiros, romenos, guienenses e libaneses e até mesmo húngaros; há toda uma panóplia de gerações que por lá passaram.

De tempos em tempos, um lampião qualquer vai aparecendo e vai se acostumando à casa. É quase como uma relação de simbiose, do género “quanto mais me bates mais eu gosto de ti”. Na verdade, sempre achei muito curioso a quantidade de lampiões que se afeiçoavam a este espaço e ao seu dono, criando por lá raízes, no entanto, deixo-vos este aviso, não houve um que não ficasse a conhecer a irascibilidade do “Cota” – nome carinhoso que por agora vamos dar ao dono, que habita este virtuoso e precioso espaço, à quatro décadas.

O Cota é um simpático individuo, baixinho e gordinho, nascido na região de Portugal onde fica o “Atrás do Sol Posto”, emigrado pelas terras do semba, combatente, bruto, mas sensível, com um humanismo maior que o mundo, comunista e, claro, de um enorme fervor Sportinguista, como a seguir veremos.

O Cota leva o Sporting muito a sério. Na sua casa, não se pode falar mal do nosso Sporting. Tal como no casamento, quem ama tem de amar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Por isso, neste espaço, não se fala mal do Keizer, do Varandas, do Ricciardi, do amigo do catering, do Soares Franco ou do Sousa Cintra, do Bettencourt ou do Godinho. No entanto, não vos quero enganar ou transmitir-vos a perceção errada, pois fiquem a saber que quando só estão presentes Sportinguistas, o Cota puxa do seu latim e diz verdadeiramente o que pensa sobre estes ilustres notáveis. Caso contrário, na presença de toupeiras ou de fruta, não se pode nem deve lesar o nome do Sporting Clube de Portugal e ponto final! Se o fizerem e forem Sportinguistas serão imediatamente ofendidos com a expressão de “melancia”, se forem de outra cor…bem, já lá vamos ao que acontece se forem de outra cor.

Na verdade, caros tasqueiros, nesta Tasca, respira-se um Sportinguismo que parece nunca ter existido ou já se ter perdido num tempo muito distante. Ainda mesmo antes do fulgor do “mandante” de Alcochete, o nosso carinhoso Cota dizia para quem quisesse ouvir, que o Sporting era o maior de Portugal e gigante por natureza; que todas as grandes figuras do desporto Português tinham sido criadas no Sporting; que o nosso Clube não devia a sua história a ninguém e que os rivais tinham muita coisa para se envergonhar de si próprios, nomeadamente, de tudo o que tinha sido por eles sonegado ao nosso querido Clube.

Por vezes, o seu fervor fazia-o quase perder o controlo. Nunca mais me esqueço, quando um simpático apoiante de Carnide, jantava a ver um derby e num golo do Sporting profere a frase – “está fora de jogo, claro está!”. Imediatamente, o Cota sai do balcão e diz “está fora de jogo o caralho!”. O carinhoso amigo vermelho respondeu – “então mas eu estou a jantar, sou teu cliente e tu ofendes-me dessa maneira?”, ao qual o Cota retorquiu – “ai estás a jantar e és meu cliente? Então põe-te no caralho se quiseres… a mim não me fazem de otário nem de parvo, muito menos os ranhosos ****** ** **** dos vermelhos”.

É verdade e perdoem-me os asteriscos, mas já sabíamos que quando ouvíamos a palavra “ranhosos”, o melhor que o cliente vitimado podia fazer era pagar e abandonar a casa, tal era o chorrilho de emoções que o Cota dizia.

Outras histórias são deliciosas de contar. Não me esqueço do derby do golo do Luisão – ou será do Ricardo? – no qual outro dos seus queridos “netos”, de seu nome “Xanax Júnior”, alegou que tal lance era válido. O Cota, imediatamente, perguntou à plateia, nomeadamente, à minha pessoa, se esse lance não deveria ser invalidado ao qual respondi – “é falta Cota”.

O que estava para acontecer não era verossímil, nem imaginável pelos mais crentes. O Cota apontou para a porta de saída e disse “todos para a rua, sua cambada de ****** ** ****…não fazem de mim otário!”. De facto, todos foram expulsos, no entanto, tal acesso de raiva só durou 15 minutos. Com a sua barriguinha e com o seu jeito de velhinho nascido no tempo dos violinos, de lágrima no canto olho, abriu a porta com um saquinho branco, cheio de minis e disse – “peço desculpa pelos meus atos… vocês já sabem que eu sofro com estas coisas. Estas são para vocês e o resto fica por minha conta”. Esse dia e apesar da relevância do jogo, é, possivelmente, uma das últimas memórias que tenho de Benfiquistas a conviverem com Sportinguistas, com lealdade e desportivismo, como sempre devia ser.

Mas há muito mais para contar! Como esquecer o Portugal – Inglaterra de 2006, no qual um dos “netos” do Cota – a quem o mesmo apelidava, irritavelmente, de “doutore” – pediu para pagar a conta, depois de 120 minutos de jogo e já com penalties a favor do lado luso, dizendo, com o seu ar de fanfarrão e galifão, para quem quisesse ouvir – “são 24!”.

Tal soberba, que parecia impossível de bater iria sair-lhe cara. Em resposta ao dito delambido emproado, ouviu-se uma voz vinda da sombra do arco que liga o corredor ao balcão, que atordoou a plateia, com a discrição e nobreza do poeta local, que informou, vagarosamente e com desprezo pelas maleitas do mundo – “Da minha parte são 36, meu caro amigo Cota e, por sua gentileza, tire-me um café acompanhado de um com 12 anos”.

Outros contos estranhos ficam por contar. Alguns porque não podem ser contados, outros porque causariam estranheza e ainda há aqueles que mereciam ser vividos, antes de serem compreendidos. De facto, a surrealidade deste espaço vai desde os grandes debates e discussões por ali realizados, a clientes que desapareceram e que – alguns – voltaram reaparecer, passando por quezílias politicas entre pessoas sem qualquer interesse material nessas disputas e até mesmo por certos eventos peculiares, nomeadamente, certames clandestinos de fortuna, que segundo alguns dizem, eram realizados algures por ali na zona e no qual perdemos muitos golos, que só depois não foram marcados num tempo mais distante.

Meus caros amigos, partilho convosco este rol de inconfidências por um motivo. Quatro décadas depois, o Cota vai fechar no próximo dia 31. Chegou altura de uma vontade qualquer económica forçar o despejo desta preciosa Tasca. Aqui, eu e muitos como eu, aprendemos a mandar as nossas postas, a dizer as nossas opiniões e, claro, a ofender e a ser ofendidos, a discutir e a berrar, mas também a aprender a ser ouvido, a ouvir e a conversar.

Foi aqui que descobrimos este precioso Cota e já lá vão quinze anos. Nele tivemos um amigo, um parceiro, um camarada da bola, um confidente, um sábio e muitas vezes a voz da razão.

Perde-se um dos primeiros espaços de democracia que conheci, um autêntico parlamento da sociedade civil, no qual quem quer falar fala e quem está presente tem de ouvir. A este precioso Cota, Avô de muitos “Netos”, deixo este post como uma pequena lembrança, na esperança de que ele se emocione com estas palavras, que não são mais do que pequenas partilhas de um tempo que não parecia terminar.

Obrigado meu Cota, um grande Saravá para ti. Encontramo-nos noutra esquina do tempo!

ESTE POST É DA AUTORIA DE… Bucefalus, the Great
*às quartas, a cozinha da Tasca abre-se a todos os que a frequentam. Para te candidatares a servir estes Leões, basta estares preparado para as palmas ou para as cuspidelas. E enviares um e-mail com o teu texto para [email protected]