Falar sobre o Relatório e Contas é muito mais do que discutir números agregados e fazer comparações também elas numéricas. O sumo que o relatório possui pode levar muito mais além e permitir discutir o que é essencial: o rumo traçado, a estratégia, a política de gestão, e como compto geral comparar as opções tomadas com o que é veiculado publicamente e com as promessas eleitorais. De outra forma, o fulcral é olhar para a floresta e não tomar uma árvore com se fosse o resto da floresta.

Distracções
Noam Chomsky já há muito tinha descrito a Estratégia da Distração como uma das estratégias de manipulação mais eficazes. Mas o isco pegou e o debate empolou. É a questão do salário de Frederico Varandas e restantes executivos assim tão importante? Na verdade não, porque é a tal árvore e gera apenas distração, sem utilidade nenhuma para a discussão geral. Serve apenas para retirar o foco do mais importante e reciclar lavagem de roupa suja. São números marginais no relatório e o seu impacto é também ele marginal. É como quando numa manifestação de milhares de pessoas, as câmaras de vídeo se focam em 3 ou 4 tipos que partem coisas e isso se torna a imagem central, quando na realidade os milhares de manifestantes marcham pacificamente e a violência é periférica. Então, a quem é que interessa que este tema dos salários centralize a discussão?

Verão Submerso
Há alguma ficção sobre história, alterando o curso da mesma numa nova realidade, um dos livros mais famosos é o de Philip K. Dick, The Man In The High Castle. Nesta versão são os Nazis e Japoneses a emergirem vitoriosos da 2ª Guerra Mundial. Pela mensagem introdutória do relatório nada indica que seja o caso. Em Alcochete existiram “trágicos eventos”. Tudo certo. Aconteceram a 14 de Maio… Portanto estávamos na Primavera passada, e não no Verão passado… Bom, é mais uma gralha, mau sinal, logo a abrir um relatório, mas em nada altera o que aconteceu, nem é isso que faz pensar que estamos perante uma obra de ficção.

Então? Então, entre a tomada de posse deste novo Conselho Directivo e os acontecimentos de Alcochete existiu uma Comissão de Gestão que chamou a si a responsabilidade de planear a época desportiva 2018/19, e com isso tomou decisões com impacto substantivo nas contas deste relatório, entre contratações e regresso de jogadores que haviam rescindido. Não estamos assim perante um exercício de um único responsável, mas com 2 agentes principais. Contudo, em nenhum lado do relatório existe menção a este ponto, que não é um detalhe, a não ser que o aumento de despesa com o ordenado de Bas Dost, mais a contratação de Diaby e o empréstimo de Gudelj sejam periféricos. A Comissão de Gestão podia ter tomada outras opções.

Seria normal falar da co-responsabilização da Comissão de Gestão nas contas finais, porque é o que aconteceu, e até ilibaria o actual CD em algumas matérias, mas nada disso aconteceu. Fica a questão: Porquê esta permanente imunização da Comissão de Gestão?

Imparidades
De salientar que, se excluirmos as imparidades registadas com os jogadores Alan Ruiz, Luc Castaignos, Josip Misic, André Pinto, Fredy Montero e Bruno Gaspar o resultado líquido do exercício é positivo em 0,7 milhões.” (pag 5). No relatório este argumento é repetido mais 6 vezes, isto para se perceber a importância dada às imparidades. É importante referir que imparidades implicam neste caso a desvalorização de um ativo relativamente ao que se poderia esperar como valor real. Portanto, não é uma perda real, mas uma perda virtual e circunstancial. Por outras palavras, são desvalorizações que acontecem devido a um contexto. É portanto subjetivo e de que maneira. Por exemplo, André Pinto chegou ao clube a custo zero, como é que isto pode encaixar em imparidade?

O que as “imparidades” escondem são opções do CD (e Comissão Gestão). A política seguida optou por desvalorizar jogadores e permitir que a sua saída se fizesse ou por empréstimos perniciosos (Demiral, por ex.) rescisão ou por saídas sem contrapartidas, actos de gestão que apenas aliviaram a folha salarial mas que negligenciaram a entrada de capitais no curto e no longo prazo. Para além de o Sporting não ter feito nenhum encaixe com Nani, Monteiro, Misic, Castaignos e outros, não cuidou que houvessem retornos no futuro. No fundo as imparidades geraram imparidades, só que reais. E infelizmente é uma política que continua, basta olhar para o caso Viviano, ao contrário do que passa do outro lado da segunda circular, em que não há problema em recuperar rejeitados e valorizá-los, como Taarabat.

Más escolhas camufladas de imparidades, dinheiro deitado borda fora, onde se hipotecaram investimentos já feitos e retornos presentes e futuros. Isto é o rabo de fora.

Formar é Uma Palavra Gira
Este CD salienta no relatório ter investido 33,2 milhões de euros na equipa principal. É um valor importante para quem afirma” o investimento em jogadores jovens e a aposta estratégica na formação deverão ser uma prioridade” (pag 26), onde “aquisição de atletas de maior experiência e com créditos firmados, como complemento da “matéria-prima” da nossa formação” (pag 27). As contradições são evidentes olhando para a realidade do plantel e a ausência da formação na Equipa Principal.

O que este relatório demonstra é uma ausência na aposta no aproveitamento da formação e pelo contrário, opções com gastos consideráveis em contratações que dificilmente trouxeram saltos qualitativos importantes. A mais flagrante será Llori, 2,4 milhões de euros gastos e mais uma imparidade para registar num próximo relatório de contas. Então a formação? Que é o mesmo que perguntar, porque não estão Mama Balde, Ivanildo Fernandes, Domingos Duarte, Daniel Bragança, Pedro Mendes, entre outros, na Equipa Principal. Perante a necessidade de contenção não seria até lógico apostar na prata casa e evitar custos com contratações que não são de maneira nenhuma uma mais-valia para a equipa? E que mensagem é passada para as camadas jovens? O que não se trata, murcha.

Mendização
O Sporting não comprou nenhum jogador agenciado por Jorge Mendes mas apresenta uma dívida de (4.459 milhões + 461 mil euros) cerca de 5 milhões à Gestifute (pag.129 e 131). Como é que isto é possível? Nas palavras de Salgado Zenha, os negócios com Mendes foram “interessantes. Certo… Percebe-se que a acção de Mendes está relacionada com os jogadores que rescindiram, mas a questão que se impõe é a seguinte: Quando no relatório está bem vincado que “é forte convicção do Conselho de Administração da Sporting SAD que os factos alegados como integradores da justa causa invocada pelos referidos jogadores nas respectivas resoluções unilaterais não procedem para um tal propósito” (pag.147) porque raio tem de se pagar princescamente a um agente, para além de advogados, para reclamar e repor justiça? São 5 milhões a sair dos cofres de um clube que luta por equilíbrio financeiro e tudo conta e neste valor nem se inclui o tal jogador Wang e uns 2 milhões de gasto dúbio. Pior, prevê-se que o envolvimento com Mendes não ficará por aqui, uma vez que Salgado Zenha diz que “O Jorge Mendes é um parceiro”. Pena que não tenha tinha utilidade para livrar o Sporting das imparidades calculadas em 8,577 ME.

Para além disto, referia-se que o Sporting duplicou a dívida a empresários. Fora Mendes são mais cerca de 15 milhões, enquanto que na época passada o valor andava apenas perto dos 7 milhões. Portanto, um acréscimo de 100%. Tudo junto, o Sporting deve quase tanto a empresários quanto a clubes (22.357), sendo a distância muito residual, cerca de 500 mil euros.

Batem-se Records
A 10 de Julho de 2019 o Sporting anuncia a melhor época de sempre nas renovações da Gamebox, mas o que os dados do relatório nos dizem, não são indicadores de nada disso. Apesar do aumento preço, o valor da venda das Gamebox caiu de 6.067 para 5.416. A medida visou tentar compensar a quebra na taxa de ocupação do estádio que passou de 87% na época 2017/2018 para 67% na época passada, o que representa uma perda de 170 mil adeptos no estádio. Terá sido a melhor opção? Não há nada que aponte nesse sentido no relatório.

Mas “existe sempre a possibilidade de recuperar parte da receita em bilheteira jogo a jogo” (pag 20). Para a bilheteira da Liga NOS, parece que não. A receita foi em 2018/2019 inferior (2.024), enquanto em 2017/2018 foi de 2.112. Em suma, cada vez menos pessoas em Alvalade, cada vez menos receita no que são os jogos efetivos (existe sempre a aleatoriedade das receitas para Liga Europa e Taça Portugal).

Números Brutos
Feitas as contas, estes são os números brutos e a brutalidade da realidade: prejuízo de 7,877 milhões de euros ao longo do exercício; o passivo subiu 42,256 milhões, estando agora nos 324,8 milhões; os capitais próprios também se agravaram, passando de 13,3 milhões negativos para 23,6 milhões, quase 50% de agravamento. Vale a pena sublinhar o último dado e o cabeçalho que fez de uma notícia do Correio da Manhã – Contas da SAD do Sporting revelam maior passivo na história da sociedade. Mas não há problema que o Benfica e Porto têm um passivo superior…

Mas estes são apenas os dados mais midiáticos: é ainda preocupante que a Dívida Financeira de 1-5 anos (pag 144.) tenha passado de 34.995 para 112.806, mais de 150%. São precisos dados concretos para poder falar sobre isto, mas é um alerta importante uma vez que receitas de futuro (contrato NOS) já estão creditadas e isso requer novas fontes de financiamento; e uma vez que não existe valorização significativa do plantel, à exceção de um par de jogadores; e ainda pela previsão de que a chegada à Liga dos Campeões não é um objetivo tão claro nem para esta época, nem para as próximas.

Saídas do Conselho Fiscal
Em comunicado enviado à CMVM, Marques dos Santos (Vogal Efectivo do CF) e Luís Alberto Vilalonga Pinto Durão (Vogal Suplente do CF) renunciam ao cargo. Mudanças que, segundo o Sporting, “visam assegurar o cumprimento pela Sociedade do regime de representação equilibrada entre homens e mulheres”. É muita coincidência, não é. Deixa no ar que o processo não foi pacífico e as primeiras baixas começam a surgir. Se havia a cumprir este requisito porque não o fizeram logo há um ano atrás? Quem compra esta?

Abrir os Olhos
Utilizar o aspecto emocional muito mais do que a reflexão dá em asneiras grossas. O relatório é um espelho disso mesmo. A política de gestão está direcionada em varrer todo o legado recente e pouco preocupada em perceber que havia muito que podia ser aproveitado ou até recuperado. E a guerrilha comunicacional utilizada, saindo só a espaços temporais enormes, e para auto-vitimização, não ajuda. O Sporting depende de militância, de adesão, de atração, e a estratégia utilizada por este CD está em sentido contrário.

Queremos perceber estes resultados? Basta adicionar, os chamados investimentos no plantel, desvalorização de jogadores, alienação de jogadores sem retorno financeiro, dívidas crescentes a empresários (especialmente a Mendes), quebra nas receitas de bilheteira, antecipação de receitas e outros que não estão claros no relatório, como o caso da indemnização à YoungNetwork (cerca 200 mil euros) e pagamento adicional do mesmo serviço à LPM, duplicando ou triplicando assim o pagamento de um serviço. Tudo junto e o quadro fica mais nítido.

Com este escalonamento, de que serve uma reestruturação financeira, que alias contínua envolta em mistério total? A este ritmo ela só servirá para amenizar as condições do presente quando ela tem o objetivo de dar folga ao clube e focar-se em preparar tanto o presente como o futuro.

É preciso abrir os olhos, redefinir barricadas e estarmos mais virados para o futuro. A emoção faz parte do sentir o clube, mas isso pode levar á condução de estratégias erradas para a mudança. É preciso invocar Apolo e reagir com consistência, tanto no discurso como na prática. O salário de Varandas e companhia é o menos importante e só distrai.

ESTE POST É DA AUTORIA DE… Montenegro
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