Um homem de bem com a vida. Gelson Dala, 23 anos, transporta para o relvado a felicidade que lhe é inata. Sorri, fala sem travões calculistas, diz de de forma genuína o que lhe vai na mente. E assim nasce uma entrevista descomplexada ao Maisfutebol, entre o último jogo pela seleção de Angola e a viagem de regresso para Antalya, na Turquia.

Gelson tem contrato com o Sporting até junho de 2022, mas o Antalyaspor contraiu um empréstimo com opção de compra. Por onde passa o seu futuro? Gelson Dala, que é Jacinto no cartão de identificação, fala sobre a situação nos leões, da falta de oportunidades e das muitas histórias vividas com Jorge Jesus.

Maisfutebol – O seu nome verdadeiro é Jacinto Muondo Dala. Como aparece o Gelson?
Gelson Dala – Gelson não é nome de casa, é nome de rua, do bairro. Havia um rapaz lá do bairro que era muito bom e fazia muitos golos. Nos torneios municipais. Quando eu comecei a jogar, as pessoas olhavam para mim e achavam-me parecido com esse rapaz. E esse rapaz chamava-se Gelson. O nome ficou até hoje.

MF – Como era a vida familiar do Gelson em Angola?
GD – Bem, era uma vida grande e uma família grande (risos). Tenho seis irmãos e uma irmã, somos oito filhos. O mais velho é o Elísio e jogou 18 anos no 1º de Agosto. Foi capitão do clube e da seleção, era um bom lateral esquerdo. Agora tenho outro irmão, o Melo, a jogar no 1º de Agosto. Tem 17 anos e já joga nos seniores. Está a fazer golos e a seguir as pegadas da família (risos).

MF – Quem é que o levou para o 1º de Agosto? O Elísio ou o seu pai?
GD – Foi o Elísio, o meu irmão. Eu tinha 12 anos, era um dos ídolos do bairro e os vizinhos convenceram os meus pais a deixar-me ir. O Elísio levou-me lá em… 2010, acho. O problema é que a minha família não tinha dinheiro para tratar dos documentos necessários, das burocracias para eu poder ser inscrito.

MF – O que fez o Gelson?
GD – Desisti de jogar lá e voltei ao meu bairro. Somos uma família pobre, humilde e não conseguimos resolver isso. Eu já estava a treinar nos juvenis, o treinador gostava de mim, mas eu não tinha documentos e tive de desistir. Só dois anos mais tarde é que o meu irmão Elísio, que já tinha outras condições económicas, conseguiu ajudar-me a tratar disso. Em Angola é muito difícil também resolver este tipo de questões, é sempre complicado, principalmente para alguém que vivia no Bairro do Golfe, como eu. É um dos bairros mais perigosos de Luanda.

MF – Era difícil sobreviver no seu bairro?
GD – Também tinha coisas boas. Foi de lá que saíram os maiores talentos de Angola (risos). Mas não era fácil, havia muitos bandidos. Para eu conseguir ir treinar em segurança, a minha mãe tinha de chamar um táxi e acordar-me antes das seis da manhã. Era a altura mais calma do dia lá no bairro.

MF – Viveu lá até que idade?
GD – Até passar a jogar nos seniores. Eu passei diretamente dos juvenis para a equipa profissional, teria para aí 17 anos. Nessa altura o 1º de Agosto mudou-me para um apartamento no centro de Luanda. Antes disso eu tinha até de faltar a treinos. Era duro. Às vezes saía de casa e via gente morta à minha porta. E ia para trás, claro. Eles [os bandidos] podiam matar mais alguém e eu não arriscava, já não saía de casa.

MF – Nessas condições conseguiu frequentar a escola em segurança?
GD – Era difícil, mas quase que consegui acabar o médio [secundário]. A partir dos 15/16 anos saía de casa muito cedo para treinar, saía por volta das 11 horas e a seguir ia para a escola. Mas chegava lá cheio de sono, cansado e não ouvia nada. Acabei por desistir porque era mesmo difícil conjugar o futebol com a escola. Nessas alturas mais difíceis valeu-me a minha mãe. A minha mãe e a minha fé.

MF – É um homem de fé?
GD – Muita, muita fé. Somos uma família religiosa da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Transporto essa ligação comigo para sempre.

MF – Se não fosse futebolista teria sido padre?
GD – Na nossa religião só há ministros e pastores. Se calhar tinha sido, sim (risos).

Maisfutebol – Como está a correr a experiência em Antalya?
Gelson Dala – Estou feliz, foi um bom passo para mim. Fui bem recebido, não tenho nada a apontar às pessoas do meu clube. Vivo numa cidade boa, perto do mar e com um excelente clima. O Antalyaspor tem boas condições de trabalho e luta pelos lugares europeus.

MF – Fez uma época boa no Rio Ave. Por que motivo optou pelo Antalyaspor agora?
GD – Escolhi a Turquia porque recebi um bom feedback de antigos colegas meus. É um campeonato competitivo e queria experimentar outras coisas. Há bons estádios, clubes grandes e um ambiente fantástico em todos os jogos.

MF – Tem contrato com o Sporting até 2022. Ainda não estava preparado para ficar no plantel dos leões?
GD – Eu acho que sim, sentia-me preparado para ser titular do Sporting. O Rio Ave deu-me a oportunidade de crescer muito e gostava de aproveitar esta entrevista para agradecer publicamente tudo o que fez por mim: presidente, treinadores, funcionários e colegas de equipa, muito obrigado. Espero que o Rio Ave faça um bom campeonato.

MF – Esteve no CAN e só se apresentou em Alcochete a 20 de julho, quase um mês depois do início dos trabalhos do Sporting. Terá sido por isso que Keizer não apostou em si?
GD – Não, não, não foi por aí. Cheguei tarde, fiz alguns treinos, mas a gestão do treinador… tenho de respeitar. Acho que toda a gente no clube me conhece bem. Trabalhei duas semanas e depois preferiu não contar comigo. Não queria falar muito mais sobre isso.

MF – Está ligado ao Sporting até 2022. Tem o desejo de voltar ou está recetivo a permanecer na Turquia?
GD – São coisas que não passam por mim. O Sporting é o meu clube, acompanho sempre, sempre a torcer e espero que ganhe sempre. Em relação ao meu regresso, infelizmente, não depende de mim.

MF – Mas sente que tem condições para ser uma opção séria no Sporting?
GD – Pensei que iria voltar ao Sporting. Pensei que ganharia mais espaço. Infelizmente não consegui isso, mais uma vez. Vou continuar a trabalhar e no futuro talvez fique no plantel do Sporting.

MF – O Marcel Keizer falou alguma vez consigo sobre a situação do Gelson no Sporting?
GD – Quando chegou ao Sporting falou comigo e disse que ia acompanhar os meus jogos [no Rio Ave]. Disse-me para trabalhar bem e que depois ele decidiria. Só isso.

MF – Qual é a principal característica do Gelson Dala a jogar futebol?
GD – Alegria. O meu futebol passa muito por isso. Tem muito a ver com Angola. É uma mistura de malabarismo e diversão. Acima de tudo, tento divertir-me quando entro para um campo de futebol.

MF – Essa alegria encaixaria bem ao lado do talento do Bruno Fernandes?
GD – (risos) Gostaria de jogar ao lado do Bruno um dia. Não só dele, claro.

MF – A seleção de Angola esteve no Mundial de 2006, mas não tem tido bons resultados. Como estão as coisas?
GD – Temos uma boa seleção, mas a qualificação para a CAN está difícil. Tivemos duas derrotas… há bons jogadores e podemos fazer mais e voltar às grandes competições.

MF – Há algum jovem angolano que o Gelson aconselhe aos clubes portugueses?
GD – Sim, o miúdo Zito Luvumbo. Tem um grande talento, só com 17 anos. Extremo rápido e muito inteligente. Esteve no Mundial de sub-17 e já fez dois jogos pela seleção principal. Tem jogado no 1º de Agosto e vai ser um dos melhores angolanos no futuro. Em Portugal jogaram angolanos que ficaram famosos, como o Akwá e o Quinzinho, e ele também pode vir a ser famoso. O Akwá é uma das minhas grandes referências.

MF – Tem o sonho de jogar um Mundial?
GD – O apuramento começa para o ano e tenho esse sonho, sim. Angola esteve lá em 2006 e podemos voltar.

Maisfutebol – Chegou ao Sporting em janeiro de 2017, há quase três anos. Mas só fez dois jogos na equipa principal até agora.
Gelson Dala – É verdade. Joguei um minuto para o campeonato e 70 para a taça, sempre com o Jorge Jesus. Aprendi muito com ele e a minha melhor fase na equipa B teve a ver muito com isso. É um grande treinador. Gostava da forma dele trabalhar. Preparava bem a equipa e trabalhava bem a mente dos jogadores.

MF – Em que posição o Jorge Jesus gostava mais de ver o Gelson?
GD – Na altura eu estava com o Bas Dost e o Doumbia no plantel. Quando eu estava com o Bas, o Jesus pedia para eu ser o número dez da equipa. Quando jogava com o Doumbia, era eu o nove e jogava o Doumbia por trás. Para quem veio de Angola, como eu, foi importante apanhar um treinador tão metódico como ele. Faltava-me a aprendizagem tática e o Jesus foi fundamental nisso.

MF – Viveu com o Jorge Jesus alguma história engraçada?
GD – Claro (risos). Ele chateava-me todos os dias por causa dos pitons das chuteiras.

MF – Então e porquê?
GD – Eu escorregava muito nos treinos, é verdade. Ele ficava zangado e dizia ‘amanhã tens de vir com pitons de alumínio’. No dia a seguir a mesma coisa. Eu aparecia sem alumínio e ele ficava doido. ‘O que é que eu te disse ontem?’ E eu lá dizia que não me sentia bem com alumínio, sentia-me pesado e tal.

MF – E o Jesus aceitava?
GD – Ia aceitando. Mas o mais engraçado nem é isso. O mais engraçado é que ele no final dos treinos fazia-me sempre a mesma ameaça: ‘Se amanhã não vieres treinar de alumínio, acredita pá, eu devolvo-te ao ASA’. A malta ria-se toda e eu ainda me ria mais. É que eu nunca joguei no ASA. O Jesus pensava que eu vinha do ASA, mas eu vinha do 1º de Agosto (risos). Claro que nunca tive coragem para corrigi-lo. Qualquer coisa errada que eu fazia, lá vinha o Jesus: ‘Tu vais mas é para o ASA!’

MF – Moral da história: o Gelson alguma vez usou pitons de alumínio?
GD – Nunca (risos).

MF – Como e quando soube que podia assinar pelo Sporting?
GD – No final de 2016 fui informado disso pelo Kali Alonso, um antigo jogador angolano. Ele fez-me o convite em nome do Sporting e eu não acreditei, claro. Quando me apareceu com os papéis é que vi que era mesmo verdade. Para a minha família… bem, para os meus pais não foi fácil. Eles queriam ter-me perto deles, mas depois tudo se resolveu. Disse-lhes que a liga portuguesa passa num canal angolano e que ia correr tudo bem.

MF – Quando chegou a Portugal foi viver para a Academia de Alcochete?
GD – No início, sim. Vivi duas semanas lá e depois mudei-me para um apartamento. Não foi fácil a adaptação. Tudo era estranho. Um miúdo angolano na cidade de Lisboa… felizmente tive a ajuda de muitas pessoas.

MF – Nessa fase inicial quem foram as pessoas que mais o apoiaram?
GD – Os meus antigos representantes, o Kali e o Valter Araújo. Foram e são grandes amigos.

MF – Em Angola é um ídolo. Em Portugal teve uma vida mais calma?
GD – É verdade, em Angola nem posso andar na rua (risos). Joguei no 1º Agosto, fui o melhor marcador e o pessoal adorava-me. Também jogava na seleção e criei uma legião de fãs. Em Portugal tinha menor pressão, andava mais descansado na rua.

MF – Viveu em Portugal e está agora na Turquia. Quando pensa em Angola, do que sente mais falta?
GD – Da família, claro. E do funge, um prato típico de Angola. Adoro. (risos)

MF – Qual foi o jogador que mais o impressionou no Sporting?
GD – Podence. O futebol dele parecia o futebol angolano. Rápido, inventivo, furão. Adorava vê-lo a jogar ao meu lado no dia a dia.

MF – Chegou a Portugal com um compatriota, o Ary Papel. O que é feito dele?
GD – O Ary, sim. Ele voltou ao 1º de Agosto e tem jogado regularmente. Está feliz e fez-lhe bem voltar a casa.