Na mesma semana em que, pela primeira vez, Portugal ultrapassou as 10 mil federadas, Cláudia Neto foi considerada — pelo quarto ano consecutivo — uma das 100 melhores do mundo, numa votação global de jogadoras, treinadores e jornalistas, compilada pelo “The Guardian”. Há três anos no Wolfsburg, a algarvia dá uma entrevista ao Expresso onde recorda a emigração precoce e uma carreira que passou por Espanha, Suécia e Alemanha e faz dela, indiscutivelmente, a melhor jogadora portuguesa.

Como vai a vida em Wolfsburg?
Está tudo a correr bem. Tivemos agora um jogo para a Taça, ganhámos e passámos aos quartos de final, e no campeonato também estamos muito bem, ainda não perdemos nenhum jogo e estamos em 1º lugar da Liga alemã. Acho que as coisas estão a correr muito bem.

E para ti, particularmente, como vai a época?
É assim, não tão bem como no ano passado. Não estou a jogar tanto, não estou a ser uma peça tão importante como fui na época passada. Mas pronto, sei que é difícil, porque esta é uma equipa muito competitiva, mas continuo a trabalhar e a tentar dar luta às melhores [risos].

É preciso ter uma mentalidade forte para estar numa equipa de topo onde se pode jogar menos vezes, ao invés de estar num clube de um nível mais baixo e jogar sempre.
Depende daquilo que são os objetivos da jogadora, não é? No meu caso, já tenho 31 anos e acho que é sempre bom evoluir nos melhores clubes.

Quando estás na seleção, as mais novas já te pedem conselhos?
Sim, falo bastante com elas. Ficam sempre muito interessadas em saber o que fazemos no Wolfsburg, como são os treinos, o dia a dia, a alimentação, o ginásio… Fazem muitas perguntas, porque querem saber como se trabalha no melhor clube do mundo, com as melhores jogadoras. É muito importante ter o exemplo das melhores.

Para ti, o Wolfsburg é o melhor clube do mundo?
Para mim, é o melhor clube do mundo [risos].

Mas o Lyon venceu a Liga dos Campeões nas últimas quatro épocas.
[risos] Acho que o Lyon e o Wolfsburg são as melhores equipas do mundo. Claro que o Lyon neste momento está a ganhar muito, em França e na Liga dos Campeões. Se calhar, está um bocadinho acima, porque ganhou, não é? Vamos ver este ano na Champions… Seria uma final muito interessante. E com duas portuguesas, porque a Jéssica [Silva] está lá [risos].

No ano passado encontraram-se nos quartos de final da Champions e o Lyon é que passou, e depois ganhou a prova.
Sim, infelizmente foi uma final antecipada e foi assim. Este ano tivemos sorte, entre aspas, porque apanhámos o Glasgow, uma equipa das mais acessíveis.

Como dizias, a Jéssica Silva agora joga no Lyon, portanto temos duas portuguesas nas melhores equipas femininas. Falaram sobre isso?
Antes de ir, não falámos sobre isso, mas agora temos falado, claro, quando nos encontramos na seleção. Ela partilha a experiência dela lá e eu a minha.

Como surgiu o futebol na tua vida?
Tenho gosto pelo futebol desde que me conheço. Quando era pequena andava sempre com uma bola atrás, ia a qualquer lado e levava a bola, era sempre o que pedia de presente, o meu brinquedo favorito. A minha mãe diz que eu tinha quase uma centena delas.

Quando começaste a jogar?
Quando tinha 10 anos pedi ao meu pai para me levar aos seus treinos de futebol e foi aí que começou o sonho de ser futebolista. O meu primeiro clube foi o União de Lagos, de futsal.

E depois passas logo para o estrangeiro e para o futebol.
Aos 18 anos fui para o Prainsa Zaragoza, através de alguns contactos. Quando a oportunidade surgiu, nem pensei duas vezes, fui para Espanha atrás do meu sonho. Queria muito integrar numa boa equipa para evoluir, só pensava em ser melhor a cada dia.

Com o apoio da tua família?
Os meus pais sempre me apoiaram e sem eles nada seria possível. Devo-lhes grande parte do meu sucesso, sempre estiveram ao meu lado, nos bons e nos maus momentos. Sou uma pessoa afortunada por ter esta família. O meu pai foi uma pessoa fundamental na minha carreira, não só pelo que me ensinou enquanto futebolista mas também pelo apoio que me deu numa fase inicial, quando nunca me proibiu de ir com ele aos treinos, mesmo sabendo que eram só homens e que não havia mais nenhuma menina para eu jogar. Ouviu alguns comentários menos bons, típicos daquela época, mas mesmo assim levou-me sempre.

Uma futebolista tem de sacrificar muitas coisas?
Sim, muitas. São 13 anos de muitos sacrifícios, mas acho que nada se conquista de maneira fácil. Têm sido anos muito duros, sempre longe daqueles de que mais gosto. Espero que o campeonato português continue a evoluir, para que a jogadora portuguesa não tenha de emigrar e possa jogar em Portugal ao mais alto nível.

Vale a pena, em termos financeiros?
Sim. Obviamente que depois depende da jogadora, só está ao alcance das melhores do mundo, que felizmente são bem remuneradas.

Quando chegaste ao Wolfsburg, o que é que teve mais impacto em ti?
Foi claramente a intensidade, dos treinos e do jogo. Aí notei muita diferença. Já quando estava na Suécia, no Linköpings, era uma boa equipa, num bom campeonato, mas na Alemanha a diferença ainda é maior. A intensidade com que se treina e joga é muito elevada. É preciso estar mesmo muito bem preparada para aguentar a pedalada. Elas impõem muito ritmo naquilo que fazem e isso obviamente faz com que evoluas.

E…
[interrompe] E depois é todo o profissionalismo de tudo o que envolve o clube, todas as condições que nos dão. Nós treinamos muito, treinamos todos os dias, muitas vezes até duas vezes por dia, e sempre com intensidade, isto com as melhores do mundo, umas a puxar pelas outras. Isso faz com que, sim ou sim, tenhas de evoluir. Mas claro que é preciso teres muita preparação, para estares bem e também para não haver lesões e aguentares esse ritmo.

Como é que um dia normal de trabalho aí?
Olha, o meu dia normal é assim: acordo às 8h da manhã, tomo o pequeno-almoço em casa, depois vou para o treino. Vivo mais ou menos a 10, 15 minutos do treino. Nós treinamos às 10h, mas antes do treino as jogadoras vão sempre ao ginásio, fazem a sua ativação lá e depois treinamos, normalmente 1h30. Depois, pronto, há alongamentos ou outra coisa, cada jogadora decide mais ou menos o que quer fazer, consoante o que o corpo necessita. Depois vamos para casa, almoçamos e à tarde ou descansamos ou voltamos para treinar, caso haja outro treino. Se houver outro treino, normalmente começa às 15h30. E é por aí. Quando estou em casa, descanso. Gosto de estar em casa, ver filmes, sair de vez em quando, ir jantar ou almoçar fora…

O teu alemão já é bom?
O meu alemão ainda não é muito bom [risos]. Já percebo, claro, porque é importante. Já percebo praticamente tudo, pelo menos o que é relacionado com o treino e com o jogo, aí já percebo tudo. Mas claro que falar ainda me custa. Mas como elas também falam todas inglês, a gente comunica bem em inglês, não há problema.

E o treinador?
Pois, o que é mais difícil é que o treinador fala sempre em alemão. As palestras, as reuniões, as análises aos jogos, isso é tudo em alemão. Claro que isso me complica um bocadinho a vida [risos].

Dentro de campo falam inglês?
Sim, elas para mim falam em inglês, para facilitar, mas também se vai falando alemão, depende. Depois ainda há outras que falam sueco, norueguês… Isto é uma mistura de tudo [risos]. Desde que a gente se entenda, a língua não importa, não é?

Há alguma jogadora que te tenha impressionado mais?
Elas são todas muito boas, como podes imaginar [risos], o nível é excelente. Mas se tiver de escolher uma que me impressionou foi a Caroline Hansen, que agora joga no Barça, infelizmente já não está com a gente. Para mim, é uma jogadora mesmo top, muito boa. E eu, claro, mesmo já com 31 anos [risos]. Estou sempre a tentar aprender com elas, seguir os passos de quem é bom, ver o que elas fazem, mesmo em termos de alimentação, preparação para o treino, tudo isso é muito importante e eu acho que é essencial para uma jogadora termos disponibilidade para estar sempre a aprender. E eu aprendi muito com elas, mesmo com as mais novas. Além da Caroline, também já tinha trabalhado com a Pernille [Harder], que, para mim, é a melhor jogadora do mundo. A Sara Bjork, que também já conhecia do campeonato sueco… Claro que é diferente trabalhar no dia a dia com elas, aprende-se muito, porque elas têm uma mentalidade muito competitiva, querem sempre mais e melhor, sabes? Nunca estão satisfeitas. E isso também contagia as outras, é muito bom.

É essa a grande diferença em relação à jogadora portuguesa?
Olha, esse é um dos aspetos, elas querem sempre mais e melhor, nunca se contentam com pouco. Acho que é muito por aí. Acho que a jogadora portuguesa, ok, é verdade que a gente está numa fase de evolução, mas é importante querermos sempre mais e melhor, nunca estarmos satisfeitas, temos de treinar mais e temos de ser mais competitivas. Aqui elas não facilitam nisso. Nós podemos podemos estar a ganhar por cinco ou seis a zero, mas o treinador vai sempre pedir mais e as jogadoras vão sempre querer mais. Se a gente puder dar 20, não vamos dar só seis, entendes? É essa a mentalidade de que precisamos em Portugal. Não estarmos satisfeitas com o que temos e querermos sempre mais. No dia a dia, a nível de treino também, é muito importante ter essa mentalidade.

É mais difícil haver essa mentalidade por termos um campeonato ainda pouco competitivo?
Pois, é isso. Neste momento é mais difícil. É importante uma liga competitiva, treinar com boas jogadoras, para essas jogadoras também exigirem de ti e tu delas, e assim todas evoluírem. Se não tens isso… Se calhar, quando recebes a bola, tens não sei quantos minutos para decidir, né? Aqui não, aqui tens um segundo para decidir, e é isso que faz a diferença.

No último jogo da seleção portuguesa, frente à Finlândia, fizeste uma excelente exibição e Portugal esteve claramente por cima do jogo, mas depois deixou-se empatar mesmo em cima do fim.
Obrigada, primeiro. E sim, foi uma pena. Nós sabíamos bem a importância que tinham estes três pontos, sabíamos que tínhamos de ganhar em casa, contra um rival direto. O resultado foi frustrante para nós. Empatar aos 90 minutos, fogo… É um balde de água fria. Mas pronto, são coisas que acontecem. Todos temos de refletir sobre aquilo que aconteceu. É difícil, mas ainda faltam muitos jogos, muito apuramento. Se formos a casa delas ganhar, temos muitas hipóteses de nos qualificarmos. Temos é de encarar todos os jogos como se fossem finais, sem facilitar nada. Porque estes dois pontos que nos fugiram… Espero bem que não nos façam falta. Espero que não, vamos pensar positivo.

Para ti, é mais impactante jogar um Europeu ou a Liga dos Campeões?
Quero é ganhar tudo [risos]. Mas o meu maior sonho é ganhar a Champions esta época. É dos poucos troféus que me faltam, e gostava muito de conquistar esse título com o Wolfsburg. Claro que estar num Europeu também é um sonho e todas nós queremos estar outra vez no Europeu. Mas falta-me a Champions [risos]. Há muito tempo que ando a lutar por isso.

No Wolfsburg há prioridade em relação ao campeonato alemão ou à Liga dos Campeões?
O campeonato alemão é sempre muito importante aqui. Nós estamos nas três competições, campeonato, Liga dos Campeões e Taça da Alemanha, e é para ganhar as três. Claro que a Champions tem um sabor especial, porque é mais difícil de ganhar, não é? Mas nós aqui lutamos sempre pelos três títulos.

Acompanhaste o Mundial feminino deste verão?
Gostei muito, foram jogos de grande qualidade e competitividade. Penso que o futebol feminino deu mais um grande passo depois dessa competição. Foi espetacular.

Concordaste com a eleição da Megan Rapinoe para melhor do mundo?
Não, achei injusto. Quem elege não pode olhar só para o Mundial mas sim para o trabalho e as conquistas das jogadoras durante o ano inteiro, tanto nos clubes, nas várias competições, como na seleção. A popularidade das jogadoras não pode ser decisiva.

Quanto tempo de contrato tens?
O meu contrato acaba no final desta época, em junho.

E agora?
Pois, e agora não sei [risos]. Gostava de continuar a jogar ao mais alto nível, pelo menos mais um ou dois anos. Não sei se vai ser no Wolfsburg, não sei se vai ser noutra equipa. E não sei se vou voltar já para Portugal ou não. Depende também das ofertas que tiver, ainda está tudo no ar.

Mas por vontade tua preferias voltar para Portugal?
A minha vontade é voltar. Mas não sei se vai ser já para o ano ou se vou esperar mais um, dois anos. Gostava de acabar a minha carreira em Portugal e ajudar o meu país a evoluir.

Tens algum clube preferido?
É assim, eu sou do Sporting, mas não sigo muito os clubes, até gosto mais de ver futebol estrangeiro… Não sigo tanto o futebol português, mas sou do Sporting.

Vês-te como a Edite Fernandes e a Sílvia Brunheira, a jogar na Liga BPI aos quarenta e poucos?
Mas no Fofó? [risos]

Não, estou a referir-me à longevidade.
Ah, sinceramente não sei. Isso depende do corpo, né? Se estiver em condições… Quem sabe se não jogo até aos quarenta. Logo se vê.

Já pensas na vida depois de parar de jogar?
Sim, é importante começar a pensar nisso, porque o futebol não dura muito tempo. Tenho algumas coisas em vista. Não sei ainda bem se vou continuar ligada ao futebol ou não, vai depender do que surgir. Talvez como treinadora… Agora estou focada em jogar [risos].