Nuno Saraiva, jornalista, sócio do Sporting e antigo diretor de comunicação de Alvalade, escreveu para a Tribuna Expresso a propósito da decisão da Mesa da Assembleia Geral e da instabilidade crónica do Sporting

Quem me conhece sabe que, no último ano e meio, tenho vindo a refletir, de forma distanciada e tão desapaixonada quanto me é possível – o que é quase ficção –, sobre a realidade do Sporting Clube de Portugal. Se me perguntarem se me arrependo de algumas das coisas que fiz enquanto diretor de comunicação do meu Clube, a resposta é “obviamente que sim”. Mas isso não é novidade para ninguém. Também não é surpresa, para quem comigo partilha este amor clubístico, a angústia em que vivo pela situação que nos encontramos e pelos resultados desportivos a roçar a mediocridade com que temos que conviver, semana após semana, no que ao futebol diz respeito.

Já os outros, os que não me conhecem e que se dedicam exclusivamente a julgar caracteres que ignoram e a comentar a espuma dos dias, vão, muito provavelmente, ficar surpreendidos com esta reflexão. Ou porque preferiam que eu alinhasse com a turba que, diariamente, defenestra o Presidente do Sporting por todo o lado, ou, com a outra turba, que dirá qualquer coisa do género “Hum! A conversa deste gajo traz água no bico, só pode”.

Mas enfim, agora que o Dr. Rogério Alves já foi juiz em causa própria, um contrassenso abençoado pelos Estatutos, vamos lá falar de coisa séria e que, quero acreditar, nos apaixona a todos, que é o nosso Sporting Clube de Portugal.

Em primeiro lugar, devo dizer que me assusta a forma fácil e leviana como falamos de destituições, exclusivamente em função de estados de alma. O que está em cima da mesa, e no debate público, não é se o atual Presidente do Clube e restante Direção cometeram algum ato que seja violador dos Estatutos do Sporting ou se atentaram contra a legalidade lesando a Instituição, de modo a terem que ser afastados compulsivamente dos cargos que ocupam. Não, o que estamos a discutir é uma eventual destituição tendo por justa causa, exclusivamente, a incompetência para o exercício da função.

Avançar por este caminho é um precedente perigosíssimo, na medida em que, de futuro, qualquer Presidente que, por exemplo, não ganhe um campeonato, arrisca-se a ser destituído. Como é óbvio, a incompetência nunca pode ser justa causa para destituição. Se o aceitarmos, estamos a dizer que, na nossa história que caminha para os 114 anos, 80% das direções deviam ter sido destituídas por indecente e má figura desportiva no que ao futebol profissional diz respeito.

A avaliação da competência é, numa Instituição como a nossa, naturalmente, política. E, em democracia, as avaliações políticas da competência fazem-se, desejavelmente, em eleições. Naturalmente que pode questionar-se, considerando o atual contexto de profunda divisão e fratura e um certo ambiente de “guerra civil”, para citar palavras de Frederico Varandas na entrevista televisiva desta semana, se deveria ou não o atual Presidente atender ao descontentamento e procurar uma legitimação eleitoral. Mas isso é coisa diferente de destituir porque sim, porque é incompetente ou porque tem dificuldades óbvias em comunicar, só para dar alguns exemplos.

Esta questão conduz-me a uma reflexão mais profunda sobre os atuais Estatutos do Sporting Clube de Portugal e à jurisprudência, fixada em janeiro de 2013, após deliberação por um tribunal sobre a providência cautelar interposta por Godinho Lopes para tentar impedir uma Assembleia Geral com vista à sua destituição, e que entrega nas mãos dos Sócios o poder de deliberar, em Assembleia Geral, sobre a justa causa de uma destituição.

Desenganem-se os que, de forma superficial, desonesta ou ignorante, virão dizer que esta reflexão é uma defesa de Frederico Varandas. Nada disso! Este texto é, tão só, uma contribuição modesta para o que julgo ser a defesa institucional do Sporting Clube de Portugal.

Dito isto, julgo ser urgente uma revisão estatutária que nos garanta que nenhum Presidente do Clube esteja refém ou à mercê de mil votos, o que pode, por exemplo, significar que uma Assembleia Geral destitutiva possa ser convocada por “apenas” 100 Sócios, desde que cada um deles tenha a habilitação eleitoral de 10 votos.

Dir-me-ão alguns “é a democracia a funcionar”. Não é, digo eu. É até uma perversão se, como no passado ou no presente, a motivação maior for emocional ou condicionada por maus resultados desportivos. É por isso que não pode, de maneira nenhuma, a bem do Sporting Clube de Portugal, ser tão fácil desencadear o impeachment de um Presidente ou de uma Direção. Tal como não pode ser tão simples a propositura de um candidato à Presidência do Clube. Se não aumentarmos a exigência do número de votos para que o processo se formalize, continuaremos a ter candidatos que proliferam como cogumelos a cada ato eleitoral.

Por outro lado, a mesma revisão estatutária, deverá, na minha opinião, contemplar a tipificação das circunstâncias – necessariamente graves, lesivas da honra e do bom nome do Clube e que ponham em causa o regular funcionamento da Instituição, desde que devidamente comprovadas – em que a justa causa para a destituição se inscreve, como aliás consta de vários pareceres assinados por especialistas em direito administrativo e direito societário e acontece em instituições e associações que funcionam e se regem de forma idêntica ao Sporting Clube de Portugal

Ao mesmo tempo, a apreciação e validação dos pressupostos de realização de uma Assembleia Geral, com estas características ou motivações, deve ser feita por um órgão especialmente vocacionado para análise das questões de natureza disciplinar, e com independência face aos demais órgãos sociais respeitando assim o princípio sagrado da separação de poderes.

E, portanto, de duas, uma: ou reabilitamos um Conselho Leonino que atue, verdadeiramente, como “Parlamento” do Clube e órgão máximo entre AG’s, habilitado a tomar decisões e eleito pelo método D’Hondt, e não sirva apenas de poleiro para que os seus membros possam, de 15 em 15 dias, ir comer croquetes para a Tribuna e camarotes de Alvalade. Ou, o que sinceramente prefiro, regressamos ao modelo de um Conselho Fiscal e Disciplinar, eleito de forma proporcional e independente dos restantes órgãos sociais, que se pronuncie, de forma vinculativa, sobre estas matérias.

Este modelo impediria, inclusive, a aberração que é termos um Presidente da Mesa da Assembleia Geral a analisar e decidir sobre um pedido de destituição de si próprio e restante Mesa, como aconteceu por estes dias.

Em paralelo, deveria estar contemplada nos estatutos a possibilidade de recurso à ferramenta da moção de censura ou moção de desconfiança, a apresentar, discutir e votar em Assembleia Geral, dependendo a sua aprovação de uma maioria de dois terços dos Sócios credenciados para votar, isto é, do universo total dos Associados presentes até ao fecho das acreditações.

Por fim, nesta revisão dos Estatutos deveria ser inscrita a realização de uma segunda volta eleitoral, com possibilidade de recomposição das listas concorrentes, de modo a assegurar bases de apoio mais amplas e consensos mais alargados. Um Clube como o nosso não pode continuar a ter presidentes eleitos com pouco mais de 30% ou 40% dos votos, o que contamina a viabilidade de um mandato inteiro e fomenta, ainda mais, a divisão entre Sportinguistas.

Alguns perguntarão porque não opino sobre o que se passou em 2018 e que culminou na Assembleia Geral Extraordinária de 23 de junho. Como é evidente, como compreenderão e por imperativos éticos e dever de confidencialidade, jamais farei, a menos que tenha que defender a minha honra, quaisquer comentários públicos sobre esta ou outras matérias do foro interno do Clube e da SAD a que tenha tido acesso por via do cargo que exerci.

Em conclusão, e sem falsas modéstias, este parece-me ser um bom princípio de conversa para, de forma séria e racional, tratarmos do futuro e da governabilidade do Sporting Clube de Portugal.

*“outros rugidos” é a forma da Tasca destacar o que de bom ou de polémico se vai escrevendo na internet verde e branca