Não é sobre o Sporting, nem sei se Vasco Seabra será Sportinguistas. Mas sei que esta entrevista que o treinador do Mafra concedeu à “nossa” Mariana Cabral e à Tribuna Expresso, merece ser lida por todos os que gostam de futebol.

Como é o teu dia-a-dia enquanto treinador do Mafra, agora em casa?
Atualmente, de férias [risos]. Estamos de férias de 10 a 27 de abril, foi o que acordámos com o clube para esta altura, para depois estarmos disponíveis para jogar num período mais à frente. O clube definiu isso e definiu também que, apesar de ser de forma mais faseada, vai pagar tudo aquilo que estava estipulado nos contratos, portanto vamos tentar que as coisas vão andando para a frente. De resto, estou em casa, naturalmente. Tem sido útil para rever muitos jogos nossos, para rever alguns adversários, principalmente os dois ou três primeiros que vamos encontrar, para estarmos um bocadinho mais adiantados em termos de processo. Rever os jogos que ficaram mais para trás tem a ver com o acrescento de determinados pormenores que são sempre importantes de acrescentar no nosso modelo de jogo, coisas que às vezes vão falhando, coisas que eventualmente não estão tão bem e queremos corrigir. E depois também temos visto ainda mais jogadores, para procurar estar por dentro de tudo aquilo que são os jogadores do Campeonato de Portugal, da 2ª Liga, da 1ª Liga, alguns até de ligas estrangeiras, jogadores que não conhecemos mas que procuramos através de filtros, de acordo com aquilo que é o nosso jogar. Podemos identificar jogadores que podem estar próximos do nosso jogar, mas alguns deles depois custam €40 milhões, por isso a gente percebe que ficam logo fora de questão [risos].

O Mafra pode contratar um jogador que valha quanto?
[risos] Normalmente, em termos de orçamento, o jogador predileto para o Mafra é o do Campeonato de Portugal, que tem um salário baixo. Os jogadores que estão na 2ª Liga e que nós conseguimos recrutar serão jogadores que realmente queiram uma oportunidade e que vejam o clube como uma rampa de lançamento. Centrando-nos, por exemplo, no nosso início de época, quando estivemos a ver jogadores: estipulámos os nossos padrões, em função da nossa ideia de jogo, e essa foi a grande vantagem que tivemos. O presidente deu-nos abertura para que nós pudéssemos escolher, não tendo um orçamento grande, mas sabendo o que tínhamos. Tivemos a possibilidade de sermos nós a recrutar de acordo com aquilo que são as nossas ideias. Ainda precisávamos de contratar 12 jogadores, salvo erro.

Essa situação acaba por ser ideal para um treinador, porque pode escolher jogadores que se adequam ao seu modelo.
É aquela parte que cada vez nos foge mais das mãos e é porventura a que acho que deveria estar melhor conjugada, para que tanto o departamento de scouting, como o treinador, como o clube, como os jogadores possam todos ter sucesso. Porque quando o scout quer ter muito sucesso, mas contrata um jogador que não tem nada a ver com aquilo que é a ideia de jogo do treinador, acaba por entrar em confronto. A ideia de jogo do treinador fica manca, a valorização do jogador não é a ideal, a valorização do clube também não é a ideal, porque não vai conseguir vender da mesma forma… Acho que podemos adaptar diferentes características ao nosso modelo, mas acho difícil que um treinador tenha uma ideia muito clara em termos de modelo – não em termos de sistema – e que mude radicalmente para um modelo oposto. Por isso é que acho que é muito importante os clubes conseguirem identificar o perfil adequado, para se enquadrar no objetivo comum.

O Mafra tem departamento de scouting?
Não. O Mafra tem o diretor desportivo e tem a equipa técnica. E depois tem o departamento médico, que tem dois fisioterapeutas e um médico, o roupeiro e os jogadores. E está tudo [risos].

Mas o Mafra é a equipa revelação da 2ª Liga, a lutar pela subida, depois de em 2018/19 ter acabado em 14º lugar.
Nós gostamos de acreditar que é uma coisa fantástica, que é um trabalho fantástico dos jogadores, juntamente com a equipa técnica e com a estrutura do clube, mesmo sendo uma estrutura muito pequena. Sentimos que isto dá um gozo muito grande, dá-nos felicidade e sentimos que lutamos com as nossas armas e com uma ambição muito grande. Tem sido uma luta gira.

Recentemente ouvi uma conversa do Nuno Campos, treinador adjunto do Paulo Fonseca na Roma, que apontou “um treinador com um futuro brilhante pela frente”, que iria chegar “ao mais alto nível nas grandes equipas”: Vasco Seabra. Viste?
Mandaram-me isso e vi, claro. Antes de mais, é sempre um grande orgulho sentir que alguém com o conhecimento dele diz uma coisa dessas. Ainda por cima quando temos tantas discussões [risos], entre aspas, conversas positivas em relação ao jogo e ao jogar. Isso dá-nos mais força para continuar, mais entusiasmo e mais paixão por aquilo que fazemos. Obriga-nos a ser ainda mais exigentes com o propósito do nosso jogar, com o pormenor que buscamos a cada semana que vai passando. E depois com a forma como conseguimos que os nossos jogadores se envolvam, porque isso também é um desafio, eles comprometerem-se com a ideia. Porque nós podemos ter uma ideia espetacular, fantástica, mas a forma como a operacionalizamos e a forma como conseguimos que os nossos jogadores vão connosco para a luta e criem exigência neles mesmos todos os dias, para que essa ideia possa acontecer, é essencial. Isso é o que nos tem dado gozo em Mafra. Tenho a certeza que o Nuno diz isso por aquilo que nós discutimos e as conversas que temos, mas também por aquilo que ele vai vendo que a nossa equipa consegue fazer, como ele sabe aquilo que nós pretendemos e vê a execução da coisa a acontecer.

O Nuno disse também que este ano cresceste imenso “em termos de modelo de jogo e de experiência”, por isso estás “muito mais preparado”. Que diferenças são estas que há agora no modelo?
O modelo agora tem mais pormenores, não nego isso. Acredito que daqui a cinco anos olhemos para trás e consigamos ver que o nosso modelo ainda estava inacabado, porque será assim que o modelo acabará sempre por estar. De qualquer forma, sinto que na primeira experiência que tive em Paços, naturalmente, acreditava que estava preparado, e acho que as coisas até correram bem, nós na altura conseguimos a manutenção e a equipa conseguiu produzir algumas coisas que identificaram a nossa ideia. De qualquer forma, sinto que cada vez que tivemos um momento negativo, como a saída do Paços, dói muito, é natural, mas depois faz-nos crescer, olhar para trás e perceber as coisas em que errámos. Todo este processo provoca crescimento. Por exemplo, eu tinha uma equipa técnica muito competente, mas, por via das incidências, dois deles passaram para treinadores principais, portanto a equipa acabou por se desfazer. Depois acabo por ir para o Estoril, acabo por conhecer o Cláudio [Martins], que agora é meu adjunto e que me acrescentou muito, parece que treinamos juntos há 20 anos e que temos uma ideia de jogo comum há 20 anos [risos]. É um elemento que acrescenta muito ao nível da discussão do jogo e do pormenor ao nível daquilo que procuramos fazer. Houve também um acrescento de uma parte importante que fui sentindo ser necessária ao longo do tempo, para ter uma visão ligeiramente diferente da nossa: o Nuno Diogo, que foi meu jogador em Famalicão e que jogou no alto nível vários anos, jogou na 1ª Liga, foi campeão na Roménia, tem um passado de formação no Sporting… Tem uma vivência de jogo que também se integrou por completo na nossa forma de jogar, mas também tem a sensibilidade do jogador, de quem esteve lá dentro mesmo, e isso ajuda-nos em determinados momentos, mesmo na questão da liderança, do chegar a determinados jogadores em determinadas formas. E depois também tivemos a entrada do Bruno [Pereira], preparador físico, e portanto fizemos uma equipa técnica quase nova e esse trabalho acabou por permitir que nos ajudássemos uns aos outros. Todo esse acrescento de equipa técnica acaba por dar ainda mais pormenor em termos de modelo de jogo, acaba por dar ainda mais preparação, para mim enquanto treinador principal, porque também me dá uma maior bagagem no lidar com os jogadores, no olhar para o processo… Acho que nos sentimos todos mais preparados e com mais experiência, particularmente naquilo que é a passagem da mensagem e da informação para os jogadores. De Paços até aqui, penso que foi toda uma maturação em termos individuais, como treinador principal, e em termos grupais também, como equipa técnica, na forma como nos ligamos e como trabalhamos.

Uma vez que já tiveste equipas técnicas diferentes, e que também já foste adjunto, consideras importante que a equipa técnica com que trabalhas partilhe a mesma ideia de jogo e a mesma metodologia de treino?
Acho que é decisivo, primeiramente, termos uma equipa técnica muito competente e termos bons treinadores. Felizmente, a nossa equipa técnica é composta por bons treinadores, todos eles em funções diferentes, com tarefas identificadas e diferenciadas, mas todos eles com personalidade e capacidade para olhar para o jogo e discutir o jogo. Respondendo diretamente à tua pergunta, sim, acho muito importante que, na ideia, todos acreditem claramente. Depois, nós podemos discutir – e fazemo-lo quase diariamente, sobre se devemos acrescentar mais este ou aquele pormenor, se devemos mudar isto ou aquilo, se podemos ser mais incisivos em termos de treino nisto ou naquilo… Mas em termos globais, é importante que todos estejam claramente identificados e tenham uma crença muito grande na ideia. Porque acho que a nossa genuinidade, como treinadores e como líderes, é importante. Porque não sou só eu o líder da equipa, há vários momentos em que são os treinadores assistentes a liderar a equipa, seja quando estão mais ligados à linha defensiva, ou mais ligados aos alas e aos apoios para poder receber e enquadrar… Todos eles são líderes em determinados momentos e a forma como os jogadores têm de nos ver, enquanto líderes, é como crentes naquilo que é a nossa mensagem. Nós podemos criar uma figura, mas com tantos treinos, com tantas horas juntos, com tantos momentos adversos que a época acaba por trazer, a tua genuinidade e a forma como realmente acreditas na ideia é o que leva a que os teus jogadores acreditem mais ainda. Por isso os assistentes têm de acreditar claramente nesta ideia. Se não acreditarem, não quer dizer que estejam errados, mas, na minha ótica, têm de optar por outro tipo de equipa técnica para estarem mais confortáveis e para se sentirem mais identificados, para poderem ser mais felizes, para poderem debater aquilo que são as crenças deles.

Consegues apontar um exemplo? Se alguém tivesse a crença X ou Y, não entrava na tua equipa técnica.
Se acreditasse que um jogo de central para ponta de lança, como primeira ideia de jogo, com ganho de segunda bola, fosse o melhor para marcarmos mais golos. Aí estaria imediatamente no processo errado. Em termos de metodologia de treino, se achasse que tínhamos de treinar de forma isolada. Não poderia estar na nossa equipa técnica, porque iríamos estar sempre a discutir coisas que seriam imediatamente opostas, nunca iríamos chegar a consenso e não quer dizer que ele esteja errado, mas pensamos de formas diferentes. Na globalidade, as ideias têm de ser semelhantes, mas depois podemos discordar: 5+4 dá nove, mas 7+2 também. Agora, a forma como nós queremos chegar ao nove tem de ter um critério, não pode ser só porque aconteceu, e é esse critério que tem de estar baseado na nossa crença.

Quando começaste a ser treinador, no Lixa, imagino que a base das ideias fosse a mesma. Mas, com o passar dos anos e com a evolução própria, há coisas que mudam. Há algo para o qual agora olhes e penses “nem acredito que fazia isto”?
[risos] É verdade, é verdade. Quando treinei o Lixa, estávamos na distrital e queríamos subir ao Campeonato Nacional de Seniores [agora Campeonato de Portugal]. Nós jogávamos com dois avançados e tínhamos uma coisa que deixei de fazer no ano imediatamente a seguir: as combinações ofensivas. Por exemplo, “combinação um” e a bola entrava aqui e ali, e o movimento aqui e acolá [risos]. Às vezes dava por mim no treino a pensar: “Eh pá, nós fazemos isto tão bem no treino, mas chega ao jogo e não acontece nem uma vez” [risos]. Obviamente depois vamos aprimorando o que fazemos e vamos procurando acrescentar, para que haja oposição e seja implicada uma decisão. Em termos de ideia de jogo, recordo-me que já queríamos jogar e sair a jogar, mas, por exemplo, lembro-me que no pontapé de baliza não tínhamos tanto essa preocupação. Lembro-me que não dava muita importância ao momento de saída logo a partir de trás, mas, por exemplo, se a bola estivesse nos centrais, não queria que a bola fosse jogada de imediato na frente, já queríamos atrair de alguma forma os adversários. Tínhamos naquela altura mais movimentos de profundidade, de procura das costas, mas depois começámos a valorizar mais a construção, para chegarmos ao último terço de forma mais limpa. Já dávamos ênfase à organização defensiva, porque acreditávamos que tínhamos de defender bem para conseguirmos ser mais marcadores de golos, para conseguirmos recuperar mais a bola e tê-la mais tempo, mas lembro-me que era um jogo que tinha muito mais perdas do que agora. Não nos importávamos tanto de perder a bola, também porque tínhamos menos chegada na frente em termos de número de jogadores, porque era um jogo, muitas vezes, com mais perda por ser mais vertical.

Quando é que isso começa a mudar?
A maior envolvência no jogo surge no ano seguinte, quando vou para os juniores do Paços: aí pensávamos que queríamos chegar mais limpos às oportunidades de golo.

É certo que juniores já é um patamar muito próximo dos seniores, mas, sendo ainda formação, havia diferenças na forma como abordavas o treino ou os jogos?
Em termos de metodologia de treino, foi porventura o que menos mudámos. Havia naturalmente algumas diferenças, por exemplo, não metíamos naquela altura tanta gente entre linhas como metemos agora, havia menos um jogador lá, isto em termos de ideia global. Também não tínhamos ainda tanto pormenor como temos agora, mas acredito que a cada ano que passa esse pormenor vai sendo acrescentado.

E esse pormenor na formação já é semelhante ao do futebol de rendimento?
Acredito que sim, mas… Para te dar um exemplo muito claro: o nosso trabalho com a linha defensiva já existia, logo no primeiro ano em que chegámos à formação. A forma como queríamos que ficassem curtos, que preparassem os apoios para a profundidade, isso já existia. Contudo, neste momento, acho que esse pormenor é mais preenchido agora, no Mafra. Os nossos jogadores estão muito mais preparados para o encurtamento ser feito com muito mais rigor, a forma como controlamos o cruzamento é melhor e com mais pormenor do que na formação. Ou seja, nós tínhamos um claro comportamento de controlo de profundidade e controlo de basculação para chegada à pressão, assim como tínhamos de pressão e coberturas. Por exemplo, no controlo de cruzamento não tínhamos tanto pormenor. A forma como a equipa sabia encurtar até um determinado momento e depois parar ou manter o controlo de profundidade, mesmo sob ameaça, modificou em relação ao que era antes na formação. Antes, sob ameaça, a nossa equipa retirava de imediato profundidade; neste momento, já depende do tipo de ameaça. Isso são tudo pormenores que vamos acrescentando e sobre os quais vamos crescendo, primeiro por acrescento nosso, depois também pela forma como conseguimos passar a mensagem aos nossos jogadores e treinar isso de forma a que eles sejam mais competentes a fazê-lo. Depois também temos momentos de trabalho mais individual, mas isso também já fazíamos nos juniores: o tipo de receção que queríamos, a forma como queríamos que se posicionassem para bater a pressão para não terem que receber de costas e poderem orientar para a frente… Já tínhamos esse trabalho dentro do nosso contexto de jogo, que queríamos que fizessem em termos individuais.

vasco seabra

Pegando nos comportamentos que identificaste, seja ao nível da receção enquadrada, ou do controlo de profundidade, por exemplo, quando há um jogador que, já depois de algum tempo de aprendizagem, mesmo assim não cumpre com o desejado, passas-te?
[risos] Depende do tipo de comportamento. O nosso hábito inicial é procurar passar a mensagem aos jogadores. Depois, como filmamos os treinos, procuramos ir tirando diversos momentos em que isso acontece, em que eles fazem bem ou fazem mal, mesmo que só tenham uma vez bem, procuramos que pelo menos tenham uma vez bem feita, para que depois possamos mostrar a diferença de uma coisa para a outra. Se ainda assim o jogador continua com dificuldades, procuramos juntar os clipes e treiná-lo, nem que seja do ponto de vista individual, para procurar esse acrescento. Há determinados momentos em que não nego que, quando uma coisa é repetida diversas vezes, acontece e há correção, e o jogador continua com dificuldades em assumir, por vezes a nossa assertividade sobre o erro acaba por disparar um pouco mais [risos]. E depois temos de ver a forma como esse jogador recebe a nossa informação. Desde início, logo na primeira palestra no balneário – quer dizer, quando temos o balneário mais completo, porque este ano só começámos com 12 jogadores, portanto só quando tínhamos 22 ou 23 é que tivemos esta conversa [risos] -, dizemos isto: os jogadores vão ter todos uma base pela qual se vão reger, ou seja, há regras para todos e todos levam por igual quando pisam o risco em função dessas regras. Mas isso são regras. Tudo aquilo que tem a ver com a forma como eu ajo perante os jogadores vai ser sempre diferente. Faço questão de lhes dizer isto para eles perceberem que vou tentar ser sempre coerente, frontal, genuíno e direto com eles. Pelas regras de regulamento interno, todos levam da mesma forma e nem sequer há intervenção do treinador, está estipulado e ponto final.

Mas no treino e no jogo é diferente.
Quando há intervenção do treinador, um jogador vai precisar que lhe dê três berros em frente aos outros para ele conseguir responder de forma positiva e para isso o estimular a corrigir o que queremos. Porventura outro jogador vai precisar que fale com ele de forma individual, calma e serena, para ele perceber o intuito da correção. Porventura outro ainda vai ter de ver as imagens, eu vou ter de falar com ele, mas ele só vai responder quando eu tiver uma intervenção mais séria, seja em contexto de jogo, por exemplo, se cometeu esse erro e tenho de tirá-lo do jogo, para que isso fique marcado, para que mexa mais com ele. Não sei se respondi ao que perguntaste, mas, no fundo, são diferentes formas de intervenção para diferentes perceções daquilo que é o jogador. Mesmo nós em termos de equipa técnica vamos sempre falando sobre os nossos jogadores, muito regularmente, para que todos possamos partilhar a opinião que temos sobre eles, sobre a forma como achamos que eles vão receber as nossas informações, sobre a forma como são mais ou menos estimulados. Porquê? Para chegarmos a todos da melhor forma possível, porque todos têm personalidades diferentes. Se eu acreditar que eles todos é que têm de se adaptar a mim, acho que só estarei a perder tempo, porque eles não se vão adaptar todos a mim e eu vou tirar menos rendimento deles.

Já tiveste jogadores cujos comportamentos anteriores eram tão vincados que tiveste muita dificuldade em mudá-los? Ou, se calhar, conseguiam ter novos comportamentos, mas depois aos 80 minutos, com o jogo empatado, já não conseguiam?
Isso, isso, isso. Acho que tens toda a razão. Isso acontece, sim, e acontece mais num nível profissional mais alto. Por vezes, nós sentimos que treinamos e o jogador até acredita, porque nós procuramos que a ideia de jogo seja compreendida, com o porquê de determinadas coisas acontecerem, mas uma coisa é tu treinares e perceberes as coisas, outra coisa é tu chegares ao jogo e sob a pressão do jogo – a envolvência da bancada, a forma como o adversário te pressiona… -, ficares sem coragem.

Por exemplo?
Por exemplo, eu tinha um jogador – não te vou dizer quem, naturalmente [risos] – que quando estávamos a jogar e fazíamos 1-0, ele vinha ao banco ter comigo e dizia-me: “Ó mister, agora já não é para jogar, agora é para ganhar” [risos]. Isso são tudo situações em que tens de perceber o lado deles, porque também é importante que eles percebam que tu os percebes, mas vais ter de conseguir, o mais depressa possível, passar esse jogador para ele acreditar que essa é a forma como vais ganhar, estando a ganhar 1-0, estando empatado 0-0 ou estando a perder 1-0. A forma como nós queremos que eles se comprometam tem de ser percebida. Agora, vai ser difícil em alguns momentos, é claro que vai. Para te dar um exemplo de forma mais prática: se tens um ponta de lança que tem 30 anos e teve uma carreira toda a fazer golos habituado a jogar colado nos centrais, claramente de costas para a baliza, a servir de apoio frontal para a bola ir fora para depois haver cruzamentos e ele é muito forte no ataque aos cruzamentos na área… Tudo o que seja jogar descolado da linha defensiva, vir tocar, atrair entre linhas, no momento em que alguém se enquadra, pedir na profundidade, porque se nós queremos atrair com jogo interior, provavelmente ele terá de fazer mais ruturas em espaços de buracos mais fechados, e não na solicitação exterior para ele depois ir para a área… Com isto, ele vai retrair-se. Ainda por cima se ele começar a não marcar tantos golos como era habitual, vai ser difícil convencê-lo de que aquele é o melhor jogo para a equipa, independentemente de estar a fazer mais ou menos golos.

Como se lida com isso, então?
Acredito que, mesmo dentro do modelo, podes ter uma ou outra nuance em que podes aproveitar este jogador que é mais forte entre linhas, por exemplo, com a equipa a sentir que com este jogador entre linhas podemos combinar aqui mais dentro. Se é um outro que está ali, então se calhar é o ’10’ que fica ali e os teus alas se calhar é que vão penetrar em termos de profundidade. Procuramos que haja esta gestão interna mas também não te nego que vai haver uma altura em que provavelmente esse jogador vai acabar por perder espaço na equipa e vai ser ele a acabar por sair, porque o modelo vai sobrepor-se.

Estarás a desvirtuar o teu modelo, se começas a deixar que o modelo se adapte às características dos jogadores que tens momentaneamente?
Acho que o modelo pode ter versatilidade suficiente para acrescentarmos uma ou outra nuance. Deixa-me dar-te um exemplo mais claro: imagina que queres sair a partir de trás, mas o teu central da direita não é tão hábil com a bola, não se sente tão confortável. Mas, do ponto de vista defensivo, da agressividade, ele até joga, mas sabes que com bola não vai arriscar aquele passe a queimar linhas. Então se calhar vais criar um refúgio a esse jogador, nem que seja um médio a poder entrar mais vezes naquele espaço, se calhar dá-te uma linha mais próxima. Assim as tuas saídas podem continuar a ser do lado direito e do lado esquerdo, mas se calhar de um lado sabes que tens mais linhas de passe mais curtas, para que esse jogador se sinta mais confortável no processo. Ou seja, acredito que podemos acrescentar uma ou outra coisa, sem desvirtuar o modelo, mas a ir ajudar esse jogador. Agora, não te nego também que se depois o jogador com um, dois, três, quatro ou dez jogos passados continua sem conseguir acrescentar nada ao modelo, então é muito provável que esse jogador vá começar a ter menos minutos do que os outros. Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas. O modelo tem de se sobrepor porque o que acreditamos é que o nosso jogar é competente, tem de ser competente para ganhares, se não acreditares nisso… Mesmo que esse jogar seja jogo direto, seja o que for: à partida, se acreditas num modelo, é porque acreditas que com aquele modelo vais ganhar mais vezes. Então não podes ficar desconfortável com o teu modelo, porque se calhar vais estar a retrair a força toda do modelo.

Pegando então neste exemplo que deste: é por isso que o Mafra constrói com três jogadores?
[risos] O Mafra constrói a três por diferentes razões… Essa é uma pergunta difícil, mas é boa.

E, já agora, por que razão constrói a três mesmo quando só há um avançado adversário a pressionar.
Isto que me estás a dizer é sinal que conheces o jogo e que viste o Mafra. Saímos a três, tanto com o médio centro no meio dos centrais, habitualmente é mais isso, mas também alternamos, às vezes à largura, entra o médio no corredor, mas também há vezes em que estamos sem o médio a baixar, em 2+2, para conseguirmos atrair pressão. O que nós procuramos com o nosso modelo, e não tenho problema nenhum em explicar-te isso e em falar sobre isso, é que haja versatilidade nas nossas ações. Procuramos que os nossos jogadores identifiquem que é importante a equipa sentir-se confortável na forma como transporta para a frente, mas também é importante olhar para aquilo que está a acontecer e sentir que os espaços são aquilo que nós mais valorizamos no jogo. Não te nego que digo habitualmente aos nossos jogadores: se está um ponta de lança, provavelmente não vamos ter necessidade de entrar a três. Mas, se vocês sentirem que esse é um caminho em que estão a sentir conforto para conseguirem progredir mais, não há problema de entrar a três, seja com o médio no corredor ou a meio dos centrais. Aquilo que procuramos é que haja identificação dos espaços e que os espaços não sejam absolutamente fechados: há referências de espaço, por exemplo, nós gostamos que os nossos alas joguem por dentro, mas, em que espaço dentro? Não sei. Digo-lhes sempre isto: os nossos laterais jogam altos e projetados, mas quão altos? Não sei. Isto é aquilo que procuro que os jogadores identifiquem, que é: tenho de estar tão alto e tão dentro possível – ou tão fora possível, no caso dos laterais -, de forma a que continue a ser linha de passe. O que quero é que eles percebam o que se passa: se só está um adversário a pressionar, ok, é só um como? É um que me vem pressionar, mas se jogam em 4-3-3, salta sempre um interior ao outro central. Então isto é um “um a pressionar” disfarçado, que vai criar algum desconforto.

Daí a construção a três?
Têm de identificar os espaços. Se há um ponta que nos está a cortar a linha, está a obrigar a jogar para o outro central, e este central está a sentir uma pressão vinda de frente do interior adversário, então na segunda vez o que temos de ver? Temos de olhar para o espaço por fora do lateral, se bem que muitas das vezes o ala adversário até vai ser atraído nele, então temos de olhar para o nosso médio que vai estar diagonal, ou para o nosso ala que está à frente dele entre linhas, e temos de olhar para o nosso ’10’, que está numa diagonal diferente. Mas, se vocês sentirem que essa é uma pressão que vos perturba, então chamem o médio, porque o médio dá-nos conforto para poder rodar e criar uma clara superioridade numérica. E então podemos passar a ter linha de passe diagonal do médio contrário que não entrou a três, e podemos ter também a linha por dentro do ’10’, porque entretanto criou-se uma nova zona de espaço, com o ala contrário a vir fechar mais dentro e a vir buscar o outro espaço que foi deixado pelo ’10’. Aquilo que nós às vezes identificamos é: tudo bem, eles estão em 4-3-3, só com um na frente, mas o espaço não é exatamente esse de apenas um homem a pressionar, então, procuramos dar conforto aos jogadores, se eles assim o necessitarem, mas, dentro dessa panóplia de opções, temos de criar. Nós treinamos alguns exercícios setorais, com oposição, em que umas vezes está um só a pressionar e eles habitualmente estão a construir em 2+2, mas se estiverem dois a pressionar, ou 1+1 a pressionar, habitualmente entramos a três, ou com médio no meio, ou com médio no corredor, assim como, uma ou outra vez, entramos até com o ’10’ no nosso corredor e o nosso ’10’ tem muita variabilidade de espaços para acrescentos de superioridade numérica. O que procuramos quando treinamos é o seguinte: não estamos a passar-vos comportamentos automáticos, não queremos que o nosso jogo seja de Playstation, de quando este vai para aqui, o outro vai para ali e outro para acolá. Porque às vezes o jogo não te permite isso. Queremos que eles joguem o jogo e passamos muito essa mensagem aos jogadores: vocês tem de estar a olhar para o jogo e vivê-lo, porque isto é um jogo do gato e do rato, nós olhamos para o adversário e passamos aos jogadores as análises do adversário, mas nada nos garante que o adversário vai chegar ao jogo e não vai fazer uma coisa completamente diferente. E se ele fizer uma coisa completamente diferente, ficamos bloqueados? Não podemos. Temos de ter alternativas suficientes, dentro do nosso modelo, para que a nossa equipa perceba que se eu sou um jogador marcado, então eu estou mal posicionado. Isto na nossa ótica, obviamente. Se estou marcado, estou mal posicionado. Então tenho de criar outro espaço. E se eu criar outro espaço, tenho de dar uma solução de passe ao portador. Como? Depende. No meio dos centrais é uma forma de saída com a qual nos identificamos muito pela forma como criamos espaço ali, como procuramos atrair e como criamos superioridade na 1ª fase. Também é por isso que, por exemplo, numa forma inicial, nós jogamos com dois médios, e depois com um ’10’. Porque sentimos a necessidade de ter um acrescento de dois médios ali para criar superioridade, porque queremos sair de forma limpa a partir de trás, então criamos mais superioridade para que exista esse conforto, para podermos então depois entrar nas costas da pressão adversária e aí depois podemos acelerar e chegar com mais gente na profundidade. Respondi-te? [risos]

Respondeste. Agora pergunto-te se não te faz falta – até porque colocas os alas por dentro – quando queres solicitar apoios frontais e criar situações de “terceiro homem”, aquele médio ali dentro da pressão para receber de frente, em vez de estar ao pé dos centrais.
Não sentimos isso, vou explicar porquê: como nós mandamos muito os laterais para a frente, aquilo que acabamos por fazer é, já que o nosso ’10’ habitualmente baixa ligeiramente, ficamos em 3+2, e temos os laterais a garantir largura e profundidade nos corredores. Então, no mínimo dos mínimos, passamos a ter o ponta e os dois alas a jogar entre linhas, e o ’10’ que fica ali num espaço média linha, digamos assim. Ou seja, está tão perto da linha média, do médio centro que não entrou a três, como está perto do ponta e dos alas que estão numa linha mais à frente. Nesse apoio frontal, o que nós normalmente procuramos é que o jogador que é solicitado tenha de imediato um jogador de frente para poder jogar, mas não queremos que fiquem todos. Imagina que jogamos no ponta, nós não queremos que os dois alas venham abaixo, se o nosso ponta já está a jogar entre linhas e veio tocar em apoio frontal, deixando no ’10’ ou deixando no ala mais perto dele. Esse momento depois tem de permitir que o ala que não veio para apoio frontal faça outra coisa.

Que ataque a profundidade?
Sim, que vá para a profundidade, assim como o lateral desse lado também deve provocar profundidade. Isto para obrigar a equipa adversária a alongar, em termos de profundidade, porque está a haver ameaças constantes. Assim o ponta passa a ter o ’10’ de frente mais o ala desse lado, portanto algum deles pode ser deixado enquadrado. O que nós sentimos então é que o tal médio acaba por atrair mais gente na construção, para depois libertar mais gente a seguir, mais à frente. E esse médio permite-nos outra coisa: a nossa preparação da perda, porque vamos perder a bola algumas vezes. Traz coragem à nossa equipa para não ter medo de assumir passes verticais para apoios frontais, para atrair, porque isso é difícil de controlar. Se nos fizerem isso, sabemos que isso é difícil de controlar. Mas nós sentimos que temos de criar determinadas condições à nossa equipa, porque nós não queremos perder a bola, mas se a perdermos não há problema nenhum, estamos aqui, posicionados, claramente preparados para reagir e para que a nossa transição defensiva seja pressionante o suficiente para não estarmos expostos no momento de perda. Com uma equipa que nos pressione com dois na frente, ou em 1+1, ou deixe lá o extremo e o ponta para sair em transição, nós por vezes abdicamos do nosso lateral na preparação para a perda, porque preferimos ter o nosso médio ali. Porque não temos médios que tenham assim tanta chegada de golo na frente. Sentimos que os nossos laterais se sentem mais confortáveis à largura, que são jogadores de jogar mais por fora, que têm capacidade para chegar na frente, mas se lhes pedirmos para virem mais baixos, por exemplo para fazer uma saída a três com o lateral por dentro, isso vai ser difícil para eles, não se vão sentir tão confortáveis. E os nossos alas, por outro lado, são jogadores que se sentem à vontade a jogar dentro, tanto em receções orientadas como quando o ponta deixa em apoio frontal para eles poderem enquadrar e poderem ou provocar em último passe ou em condução de bola para depois definir. Por isso, não sentimos essa questão do médio que está mais longe causar falta de apoio à frente, porque sentimos que o nosso ’10’ e o nosso outro médio têm essa capacidade, juntamente com os alas.

Por regularidade, na preparação para a perda, o Mafra coloca os dois médios e os dois centrais…
[interrompe] Sim.

Com os laterais sempre muito profundos – sendo curioso que eles têm nove golos e seis assistências. Este é um daqueles casos em que é um 5+4=9 mas poderia ser 7+2=9, ou seja, poderiam ser os laterais a estar no lugar dos médios e vice-versa?
Sim. Primeiro, mentir-te-ia se achava à partida que podíamos ter nesta altura os nossos laterais com nove golos e mais seis assistências. [risos]. Queríamos efetivamente que eles fossem profundamente desequilibradores. Agora, não te nego: imagina que temos uma equipa qualquer em que chegámos e um jogador que tem contrato, que é um ativo claro do clube, é um extremo que é tremendamente eficaz no um contra um externo, de fora para dentro, de desequilíbrio individual fortíssimo, altamente letal. Mas se nós o colocarmos dentro, ele vai ter dificuldades em receber orientado, em enquadrar-se e vai perder as características que tem. Porventura, o nosso modelo pode ter um apetrecho, pode ter um veículo que permita que as coisas possam continuar a ser as mesmas, sendo que este é o jogador que fica aberto e depois há outro que fica fechado. Agora, em termos genéricos, de modelo, o que acaba por ser importante para nós é algo que costumo dizer: nós jogamos com dois por fora e oito por dentro. Isto é do modelo. Ou seja, independentemente se são laterais, se são extremos, o que quer que seja, desde que consigamos dar variabilidade suficiente ao jogo para termos largura máxima, seja ela dada pelo lateral ou pelo extremo… Em termos ideais, prefiro que seja pelo lateral, gosto mais assim, mas não nego que podemos ter de fazer adaptação para que dentro do modelo existam jogadores que estão a fazer outra posição, mas que mesmo assim consigamos garantir a largura máxima, a profundidade máxima, e ter linhas de passe por dentro suficientes para que possamos atrair ao corredor central. Permite-me só desviar um pouco da pergunta: eu não quero ter 80% de posse de bola e ter um remate à baliza. Não é esse o objetivo, o nosso objetivo é marcar golos na baliza do adversário. Agora, queremos é criar oportunidades de golo limpas. Se me perguntares se me dá um certo gozo que a bola entre por dentro e que consigamos jogar por dentro e se possível que ataquemos a baliza de imediato por dentro, sim, tanto melhor. Mas tenho de criar condições aos jogadores para que eles, dentro daquilo tudo que é o modelo, sentirem conforto, mas não posso deixar que o modelo não tenha a exponente máxima que pode ter só por causa de um jogador. Acho que podemos encontrar soluções dentro do modelo para que ele mantenha todas as características, mas também podemos acrescentar o máximo das qualidades dos jogadores a esse modelo.

Há muitas vezes o atrair por dentro e ganhar espaço por fora, tornando-se assim preponderantes os laterais, como se vê por esses números. Se ali estivessem, por exemplo, médios, não seriam mais preponderantes ainda?
Vejo com mais naturalidade que pudessem ser extremos e os laterais eventualmente por dentro. Mas é como te disse, num modelo conceptual ideal, sinto que as relações podem ser mais intuitivas entre eles com o lateral. Por outro lado, imagina que tenho um lateral que do ponto de vista da qualidade das ligações por dentro é fortíssimo e o extremo é fortíssimo por fora. Não vejo problemas em que troquem e que essas dinâmicas sejam criadas do ponto de vista da atração e criação de dificuldades ao adversário. Não posso é abdicar disto: porque um jogador só é bom ali, que o modelo que valia 100 passe a valer só 80. Isso é que eu não posso permitir. Não posso permitir que, por causa de um jogador, tenhamos de abdicar do jogo de uma determinada forma, com esse jogo a valer menos do que antes. Ou seja, ou conseguimos criar dentro da nossa dinâmica uma forma de que existam linhas de passe e alternativas suficientes, ou então esse jogador tem de se adaptar ao modelo e ponto final. Na minha ótica, temos de garantir que o modelo tenha apetrechos suficientes para superar os adversários e que não fique obsoleto ou retraído porque temos de nos adaptar a uma ou outra característica de um jogador. Isso não. Nós podemos adaptar uma ou outra característica de um jogador, se o modelo continuar a respeitar tudo aquilo que são os princípios e alcance máximo de dificuldades que queremos impor aos adversários.

Quando chegaste ao Mafra já tinhas então grande parte do modelo de jogo pensado.
Tivemos essa felicidade. Como te disse, acho que só tínhamos 11 jogadores com contrato. Vimos as características deles e achámos que se identificavam com aquilo que era o nosso modelo ideal, em termos genéricos. Todos aqueles jogadores que fomos contratar tivemos a felicidade de poder verificar que tinham as características adequadas para o nosso jogar e eram corajosos. Por isso, aquilo que houve no modelo foram acrescentos de pormenor. Mesmo durante a época fomos aumentando ligações e diferentes complexidades. Por exemplo, aquilo que te dizia de sairmos a três com um médio no meio, com um médio no corredor, com 2+2, com o ’10’ no corredor… Isso foram tudo acrescentos que foram sendo feitos, de forma a criar complexidade e dificuldade a quem nos defende. Digo isto muito aos nossos jogadores: sei que é natural que eles, por tendência, façam mais vezes algo em que se sentem mais confortáveis. Mas o que lhes digo é para se colocarem do outro lado. Se o adversário vier e nós fazemos uma vez assim, outra vez de outra maneira, outra vez de outra maneira, e por aí fora, então estamos a criar dificuldades a quem nos defende. Nós quando partimos para a contratação dos jogadores tínhamos o modelo claro na nossa cabeça. Queríamos laterais altos e profundos, em termos ofensivos, alas que tivessem discernimento e qualidade para jogar por dentro, fosse só para pedir entre linhas e atacar a profundidade, como para poderem solicitar a 1ª fase de construção se o central estivesse a ser pressionado, por exemplo. Por vezes, quando o central está a conduzir sob pressão, o nosso ala solta-se e vem dar um apoio à frente da pressão, e deixa o espaço entre linhas, e passa ser, por exemplo, o ’10’ a ir buscar esse espaço nas costas do ala. Queríamos jogadores que não perdessem bola nesses momentos, para criarem conforto à equipa. Por exemplo, o Rúben Freitas, o lateral direito, já estava, e o Gui Ferreira já estava também, e eram jogadores com dimensão de profundidade. O Joel e o Hélio foram jogadores que fomos buscar porque tinham claramente estas características que nós pretendíamos. Por exemplo, do ponto de vista defensivo, também já queríamos ser capazes de pressionar com linhas curtas, com pouco espaço entre linhas e com a linha defensiva a ser capaz de encurtar e não baixar apenas sob ameaça. Tivemos a possibilidade de ir contratar o João Miguel, que é um jogador que, externamente, até parece que não é muito rápido, mas é extremamente rápido e tem capacidade de leitura em termos de linha. Portanto, tínhamos o modelo claro na nossa cabeça antes de irmos contratar. Por exemplo, em termos de um projeto futuro onde possamos entrar, este é o modelo que está claro para nós. Só admito que possam existir diferenças em relação aos posicionamentos, em função de uma ou outra característica. Mas não admito e não me revejo em mudar o modelo, porque aí estamos a falar de traços generalizados dos princípios que queremos. Os princípios de sair a construir, procurar atrair pressão, procurar entrar para criar oportunidades de golo limpas, defender de forma agressiva e pressionante e sermos capazes de aguentar as linhas curtas e coesas… São bases do nosso modelo que vamos continuar a querer ter, independentemente do projeto em que possamos entrar.

Perante isso, que importância dás ao sistema dentro do teu modelo? Olhamos para o Mafra e supostamente joga em 4-2-3-1, mas depois quando está em construir se calhar está em 3-4-3 e a defender está em 4-4-2…
Isso, isso [risos]. Tu és treinadora [risos]… Esta conversa assim é muito mais gira. Eu revejo-me completamente nas palavras que, nas entrelinhas, foste dizendo. O sistema é, de facto, um ponto de partida. Mas eu até acho que nós nunca dissemos aos nossos jogadores que jogávamos em 4-2-3-1 [risos]. Acho que nunca foi uma conversa que tivéssemos…

Quando metes os nomes no quadro tático…
[risos] É isso mesmo, só aí, nas folhas da equipa inicial e das bolas paradas [risos]. Quer dizer, para te dizer a verdade até acho que não estão em 4-2-3-1, acho que estão em 2-2-6 ou qualquer coisa do género, porque metemos logo os laterais mais altos. Mesmo aí a coisa fica baralhada [risos]. Mas é uma base. Por exemplo, se partíssemos de um 4-3-3, com um médio e dois interiores – isto também para te justificar o porquê do 4-2-3-1 inicial, na nossa cabeça… Se nós estamos no [Manchester] City e temos o Fernandinho, se calhar ele não precisa de ninguém à beira dele, porque ele é um jogador que, sob pressão, consegue na mesma sair, acrescentar e criar linhas e espaços. Mas, no habitual, eu gosto que esta variabilidade em termos de entrada e saída em primeira fase de construção aconteça de diferentes formas, daí sentir a necessidade de ter os nossos médios como acrescento de gente, seja em 2+2, seja com um no corredor. Acredito que se tivermos os dois médios mais preparados, do ponto de vista inicial, para que possamos estar identificados logo no acrescento de jogadores à primeira fase… Às vezes digo isto aos jogadores: eles vêm pressionar-nos com cinco, não tem problema nenhum nós estarmos aqui com seis ou até com sete. Não tenho problemas em que venham jogadores a mais à primeira fase de construção, desde que tenhamos capacidade, depois, quando sairmos dessa pressão, sermos agressivos o suficiente para aproveitar e a seguir sermos ameaçadores para chegar à baliza adversária. A colocação dos dois médios tem mais a ver com isto, com nós sentirmos que queremos ter ainda mais a bola, para sairmos e acrescentarmos mais capacidade de chegada à frente, com jogadores que te atraem mais pressão e trazem mais soluções de construção.

Falaste no City e pegando no que disseste sobre a construção, consideras que o terceiro elemento junto aos centrais, na construção, poderia ser o guarda-redes?
Porventura. Não acho que seja demasiado arriscado. Um Ederson desta vida tem diferentes variabilidades no jogo dele: joga muito bem curto, joga muito bem entre linhas no chão e tem uma capacidade de lançamento na profundidade inacreditável. Ou seja, aí haveria diferentes soluções e ainda temos os centrais que são jogadores que dificilmente iriam perder bola sob pressão. Depois, quem te vem pressionar, alonga a equipa e a bola entra por dentro, ou, se não te quiser pressionar e ficar baixo, deixa-te abrir a primeira fase e sais à vontade, ou, se subirem e estiverem demasiado curtos, com jogadores tão rápidos na frente como tem o City e com o passe do Ederson para a profundidade… Acho que isto são acrescentos de modelo. Por exemplo, os nossos guarda-redes têm à-vontade para jogar, muito mais agora do que no início, o que é natural, porque agora começam a perceber muito melhor as linhas de passe que têm à volta deles quando nós jogamos para eles. Ainda assim, em alguns momentos, ou porque a relva está com mais dificuldades ou porque o jogo está mais difícil, eu percebo que guarda-redes é uma posição muito específica para que os obrigues a que efetivamente corram esse risco. Mas, por exemplo, quando estamos a construir mais baixo, já não é o nosso médio que entra a três, porque o nosso próprio guarda-redes diz-lhe: “Sai daqui que aqui jogo eu”. Precisamente porque, ali, mais baixo, os guarda-redes ainda se sentem mais confortáveis, porque se perdermos a bola ele ainda consegue defender a baliza. Não tenho problemas nenhuns em que seja ele o terceiro elemento por trás. Mas se tiver de puxá-lo mais para a frente sei que ele se vai sentir desconfortável. Mesmo quando nós defendemos com a linha defensiva curta, e esse é um momento já estável, os guarda-redes têm sempre algum receio de estarem mais um passo à frente para controlarem as costas e a profundidade, por isso, se os obrigarmos a estarem tão altos, num situação que lhes cria desconforto, acho que prejudicamos o guarda-redes. Prefiro que, aí, haja soluções de conforto para todos os jogadores, para que se sintam ainda mais corajosos. Porque, se preciso que os nossos jogadores tenham coragem, então preciso que eles sintam que vão para cada batalha com munições suficientes para acharem que são capazes de vencer, independentemente de quem está do outro lado.

Numa semana padrão, que peso é que tem a estratégia no vosso trabalho?
Acho que a definição de estratégia não está propriamente comum a todos os treinadores e acho que esse é um problema em termos do que estamos a falar. Se nós temos estratégia para cada jogo? Temos. Como é que isso acontece? Vou começar pelo início. Temos jogo num domingo e depois temos jogo no domingo seguinte. Na segunda-feira, que normalmente é dia de folga, porque folgamos no dia seguinte ao jogo, revejo o jogo da nossa equipa, fazemos análise da nossa equipa e fazemos os cortes de vídeo. Nesse dia também, recebo do treinador adjunto responsável por ver o adversário o relatório do próximo adversário, discriminando os pontos essenciais que podemos explorar, na nossa organização ofensiva, assim como o que temos de ter em consideração em transição, etc. Nesse momento, o que procuramos é juntar as coisas que não fizemos tão bem no jogo anterior… Ah, por isso é que gosto que quem faz a análise do adversário seja treinador e seja um dos elementos claros da equipa técnica: porque ele sabe que não vamos mudar só porque o adversário é isto ou aquilo. Não vamos começar a solicitar bola longa só porque o adversário é não sei quê. Os pontos que são assinalados são pontos que têm a ver com o nosso jogar e que nós podemos reforçar para que possam acontecer mais vezes. Então, nessa segunda-feira, tendo em conta o que foi o nosso jogo e tendo em conta o relatório sobre o adversário, procuro criar uma proposta de semana de trabalho: primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto treinos. E procuro que exista sequência na semana. Ou seja, na terça queremos fazer isto, na quarta aquilo e a escolha dos exercícios normalmente tem a ver com aquilo que nós queremos atingir no final dessa semana. Se nós queremos sair mais a três, por exemplo, provavelmente os setoriais que vamos fazer durante essa semana terão mais vínculo a saídas a três com o médio no meio dos centrais. Se nós queremos variar mais as saídas, então se calhar vamos ver outras soluções. Por exemplo, queremos pôr o ala mais entre linhas, então se calhar vamos criar ali uma caixa no exercício para que a bola entre mais ali no espaço que queremos, para podermos acelerar ou aclarar o espaço. Isto para te dizer que se me perguntas que percentagem de espaço é que a estratégia tem durante a semana, não te sei responder bem, porque está presente, mas sei que o tem realmente peso para nós é o nosso jogar. Agora, dentro do nosso jogar, tentamos sempre dar soluções aos nossos jogadores para que eles, quase no inconsciente deles, estejam a ver soluções para as coisas que estão a acontecer e que naquele jogo provavelmente vão acontecer mais vezes. Mas muitas vezes isto é sem lhes estar a dizer: “Olhem que neste jogo vai acontecer isto e aquilo, e aquele espaço”.

Mas chegam a dizer isso?
Normalmente deixamos isso para o dia -2 [dois dias antes do dia do jogo], num espaço de 10 minutos. Nós normalmente mostramos o vídeo dos quatro momentos do adversário no dia grande, no dia -3. O Cláudio fala com os jogadores, mostra o vídeo e a seguir treinamos e os jogadores já identificam que se calhar estamos a fazer mais isto, por causa daquilo, assim já há um paralelismo entre o que eles veem e o que depois acontece em treino. No dia -2, mostramos as bolas paradas, porque já fazemos algumas bolas paradas no -2, e temos ali, 10, 12 minutos onde dizemos alguma coisas… Imagina: em termos de pressão, o central deles da direita gosta de conduzir e é forte a meter a bola entre linhas, já o central da esquerda, destro, vem para dentro e se for pressionado desta forma vai ter mais dificuldades. Então nós podemos, dentro da nossa pressão, ter uma nuance: no da direita pressiono na cara e condiciono que o jogo vá para o da esquerda e no da esquerda se calhar pressiono de forma circular porque é destro e vai ter dificuldades, porque não gosta de conduzir a bola. Assim como lhes dizemos que aquela equipa pressiona com um, ou com 1+1, ou com dois, e recordamos esta ou aquela solução. Mas é uma coisa quase parada, só de identificação, para já terem uma imagem. Não acredito que nós consigamos reproduzir o que o adversário vai fazer, por isso é que perco pouco tempo com o facto do adversário estar aqui ou estar ali. Mas o que procuramos no treino é procurar criar contextos competitivos, seja com mais superioridade de uma equipa ou menos superioridade de outra, seja com um a pressionar, dois a pressionar, para que os jogadores olhem para os diferentes cenários e saibam identificá-los e saibam quais as zonas em que podem aproveitar os espaços. Os exercícios vão sendo escolhidos em função daquilo que queres corrigir, em função de coisas que queres, dentro da panóplia de opções do teu modelo de jogo, reforçar mais naquela semana, para refrescar, e depois no dia -2 dás uma espécie de visão de cima sobre o adversário, só para terem uma ideia, e passamos outra vez para o nosso jogar. Portanto, se calhar, isoladamente, a estratégia vale 5% da nossa semana. Mas em termos estratégicos estamos a falar apenas de nuances, como o exemplo que te dei da pressão… Acho que isso nem é uma estratégia. Se tu eventualmente dizes aos teus jogadores: se nós pressionarmos o adversário, ele vai bater para a profundidade, mas se não o pressionarmos em cima, ele vai bater na mesma. Então para que te vais expor à frente? Se calhar podes dar um cheirinho com o teu ponta e abres espaço entre linhas mas eles não vão querer explorar isso. Então, se calhar, estrategicamente, neste jogo vais só dar um cheiro à frente e a tua linha defensiva em vez de ficar a encurtar e a não permitir espaço entre linhas, se calhar até vai abrir um pouco mais de espaço entre linhas, porque sabe que esse espaço não vai ser explorado. Mas isso é uma nuance. Não estamos a falar de coisas do género: o adversário joga em 4-4-2 losango, então eu agora vou defender em 3-5-2.

Desde o início do teu percurso até agora, quem foram e quem são as tuas referências?
Olha, começo como treinador quando entro na faculdade e no primeiro ano estive com o Rui Quinta, que era coordenador técnico do Paços, e ele permitiu-me que ficasse como treinador adjunto dos sub-12 e dos sub-17. É aí que surge claramente a minha paixão pelo treino e o Rui foi das pessoas que mais me ajudou em termos de perceber que nós temos a capacidade de fazer as coisas acontecerem, para pensarmos num treino que não seja castrador e que permita que os teus jogadores se desenvolvam e se valorizem perante um jogar. Acho que quando iniciamos a carreira tudo nos faz confusão: como é que vou treinar, o que é que vou fazer? [risos] Esse foi o primeiro momento em que tive uma pessoa que me marcou muito, porque me fez entender que nós somos capazes de mexer no treino sempre num contexto de competitividade uns contra os outros. Depois, posso dizer que assisti a muitas aulas do professor Vítor Frade e os professores da minha faculdade, o ISMAI, sempre nos estimularam. Mas, em termos de treinadores, o Rui Quinta, por toda esta fase em que me permitiu experimentar muita coisa, foi importante. Depois, naturalmente, houve treinadores que me marcaram externamente. Eu entro na faculdade em 2003 e o Mourinho em 2004 desponta para o mundo como uma coisa absolutamente diferente de tudo aquilo que havia. Isso marca quem está a iniciar, por isso o Mourinho marcou-me muito naquela fase da carreira. Depois houve treinadores que foram acrescentando: o Jorge Jesus, por tudo aquilo que dá ao jogo em todas as épocas, o Guardiola, que é, é… é um êxtase [risos], para todos os que gostamos do jogo. E depois outra referência muito importante para mim, que é o Paulo Fonseca, e também o Nuno Campos, já que ambos trabalham juntos e partilham uma ideia muito clara. Falo regularmente com eles e o Nuno é um treinador que me inspira muito, pela forma como discute o jogo e pela paixão que tem pelo jogo, assim como o Paulo, alguém que também me estimulou muito. Eu era treinador dos juniores do Paços e ele era o treinador da equipa profissional e a forma como conseguíamos debater todas as questões do jogo e do jogar, e a forma como ele conseguia fazer-nos pensar ainda mais, era marcante. O Paulo foi um treinador que me marcou muito e que me continua a marcar. Estas são mesmos as minhas referências major, mas claro que se me perguntares se gosto do Sarri, gosto muito, mais ainda do tempo do Nápoles e do Empoli, porque agora, na Juventus [risos]… Faz parte.

Lá está, é a relação entre o peso do modelo e a adaptação às características dos jogadores. É uma questão complexa.
É de facto complexo. E eu quero muito que a gente consiga chegar a esse nível para poder acreditar que vamos conseguir resolver isso, independentemente de tudo o resto [risos].

Falaste no Paulo Fonseca e, como se sabe, ele deu aquele passo atrás na carreira, depois de sair do FC Porto, indo para o Paços. Depois de teres estado no Paços, na 1ª Liga, e no Famalicão, na 2ª Liga, a tua ida para os sub-23 do Estoril também foi um passo atrás consciente?
Esse foi um momento muito difícil para mim. Estou de acordo com o que disseste, para quem vê de fora e para quem dá o passo sente que é… Pode não ser atrás, para não ferir suscetibilidades, pode ser ao lado, mas de qualquer forma é um passo diferente em relação ao que são as ligas profissionais. Tinha estado na 1ª Liga com 33 anos e achava, e continuo a achar, que as coisas no Paços foram positivas, porque nós conseguimos a manutenção e na época seguinte saímos em 12º lugar, com três pontos de avanço sobre a linha de água e com muitas equipas abaixo de nós, que acabaram por fazer campeonatos extraordinários, como o Portimonense e o Chaves. Depois, no Famalicão, apesar de não ser um contexto ideal, acabámos por conseguir o objetivo, que era a manutenção. De repente, a Liga Revelação, uma prova nova, uma última etapa do período de formação. Nesse momento, quando surge o convite do Pedro Alves [diretor desportivo da SAD do Estoril], demorei penso que dois dias a responder. Foi um momento difícil, porque foi o pensar, na minha cabeça: “O que é que vais fazer? Vais abdicar das ligas profissionais e vais para ali e aceitas? Ou…” O que realmente me entusiasmou foi poder ter alegria e paixão a treinar. Estava numa fase em que sentia que precisava muito de ser feliz. De ter felicidade com o jogo, de ter felicidade a passar o jogo através do treino e de ter felicidade a ver as coisas acontecerem em jogo depois de as treinares, porque acho isso é o grande êxtase para os treinadores. É quando consegues ver que o treinas aparece em jogo, que o teu modelo está a ajudar os jogadores a terem sucesso. Sentia falta disso. Quando estive fora, sem treinar, fui fazer um estágio com o Quique Setién, de quem há bocado não falei, mas é outro treinador de quem gosto muito. Vi uma série de jogos de 1ª e 2ª Liga, para conhecer mais contextos de treinadores e jogadores, mas sempre senti essa falta. Aquela necessidade de… eh pá, andei aqui tão preocupado com a questão externa das coisas e quero é ser feliz outra vez. Nesse momento, o Nuno [Campos] influenciou-me, porque na altura falei com ele, também falei com o Paulo [Fonseca], sobre esse passo que eles deram e que acabou por lhes correr bem, mas houve algo que me tocou, porque eles perguntaram-me: “Mas tu acreditas em ti?” E esse é o momento. É olhares para o espelho e pensares se acreditas em ti. Nesse momento disse que acreditava. Tinha 35 anos e tinha a necessidade de provar a mim mesmo que era capaz, que independentemente do contexto em que estivesse, iria ser capaz de envolver os jogadores, de sentir outra vez aquela paixão do treino e do jogo, de mostrar que as coisas não tinham surgido por acaso. A experiência Estoril deu-me várias coisas que não posso deixar de referir: trouxe-me outra vez essa paixão e essa alegria, trouxe-me amigos que vão ficar para a vida e trouxe-me, como já te disse, o Cláudio, que agora é da minha equipa técnica e que é um elemento extraordinariamente competente. E o Bruno, que também entrou como nosso preparador físico no Mafra. Diz-se que às vezes se fecha uma porta e abre-se uma janela, e pensei: “Será que quero entrar nesta janela, que é tão pequenina?” Neste momento olho para trás e digo que valeu a pena. Aquela janela foi afinal uma porta muito grande de entrada, para a minha felicidade e para a minha crença no que estava a trabalhar.

Depois disto tudo, já ligaste ao Pedro Alves e já lhe disseste: “Olha, se me tivesses subido para a equipa A do Estoril…”
[risos] Tenho uma boa relação com o Pedro. Quando ele me ligou para me convidar para os sub-23, achei muito engraçado, porque ele na altura disse-me assim: “Vasco, é o Pedro Alves, só nos conhecemos de nome. Vais ouvir-me até ao fim, depois não me vais responder, vais ouvir e ligo-te mais tarde, daqui a umas horas”. Achei que isso foi uma forma extraordinária de comunicar nesse momento. Ele explicou-me por que razão me estava a convidar, algumas das coisas que ele disse fizeram todo o sentido na minha cabeça e depois ele também me forçou a ir lá para conhecer as instalações, porque ele tem este poder de persuasão [risos]. Fui ao Estoril para estar com ele, para conhecer as pessoas. No final da época, o clube fez uma remodelação total e acabou por me surgir o convite do Mafra e o Estoril acabou por querer seguir outro caminho. Mas tenho a certeza que o Pedro conhece o nosso trabalho e sei que se identifica com o nosso jogo. Não digo que ele esteja arrependido, porque de certeza que confia nas pessoas que tem com ele e tenho a certeza que ele fica feliz por as coisas nos estarem a correr bem no Mafra.

Tens contrato só até ao final desta época?
Sim. Agora até 7 de julho [risos]. Mas supostamente era até 30 de junho, era até ao final da época.

E depois?
Não sei. Para já as coisas estão muito em aberto, não sabemos ainda o que vai acontecer. Acreditamos que aquilo que temos feito tem chamado a atenção de algumas pessoas, mas também definimos algo em termos de equipa técnica: que não nos íamos desfocar com o que pudesse aparecer, por respeito ao clube e por respeito com o nosso trabalho no momento. Tínhamos mandado as coisas para maio como a altura em que poderíamos começar a pensar em alguma coisa. Neste momento, obviamente as coisas ficaram paradas, mas é preferível ficarem para o final. Não queríamos que alguém se interessasse em nós só pelos resultados que tivemos. Eu sei que treinadores têm de ter resultados, sei que toda a gente pensa isso, mas nós ainda queremos acreditar que quem nos convidar para um próximo projeto, independentemente de ser o Mafra ou o Real Madrid ou o Bayern de Munique, perceba que este perfil de treinador é um determinado perfil. Não tem problema nenhum gostarem ou não gostarem, desde que percebam o perfil que é, para que todos possamos ter sucesso. Não queremos que as pessoas olhem para nós como algo que agora correu bem, então é agora o momento de ter este treinador. Não, é uma época inteira a correr bem e mesmo que os últimos jogos não corressem bem, nós teríamos um processo feito. As pessoas têm de perceber isto e nós não somos lunáticos. Sabemos que se jogarmos como nunca e perdermos como sempre, ninguém nos vai contratar. Mas acreditamos no nosso trabalho e acreditamos que vamos terminar bem. Temos de ter essa serenidade, nós e os clubes que queiram falar connosco, para perceberem que ideias temos e o que querem fazer, para percebermos também que projeto desportivo temos pela frente, para que possamos ter uma perspetiva de sucesso de acordo com as expetativas de todos.

Mas em Portugal há clubes que começam a época com um treinador com determinado perfil e a meio da época mudam para um perfil distinto. Como é que um treinador pode evitar este tipo de situações?
É verdade. Aquilo que tenho procurado fazer, com as pessoas com quem, por vezes, temos conversas, é explicar que, obviamente, o treinador não vai mandar na gestão de um clube. Não deve e não pode fazê-lo. Mas há uma coisa que nós, treinadores, na minha ótica, podemos fazer: é sermos frontais logo no primeiro momento em que estamos com os dirigentes dos clubes. O que não faço é vender algo que não vou fazer, porque senão as pessoas pensam: “Este treinador é espetacular, vai fazer mesmo aquilo que eu quero que ele faça”. E assim vou comprar uma guerra mais à frente. A nossa forma de estar no processo, no futebol e na vida é esta: não sermos mentirosos. Posso perder oportunidades, mas acredito que as oportunidades somos nós que as criamos, mediante aquilo que vamos fazendo. Acho que é uma falsa oportunidade quando alguém te quer contratar e te diz assim: “Mister, gosto muito de si, acho que você é um treinador espetacular, mas na nossa equipa, olhe, vamos contratar gajos de 39 anos, com pouca velocidade, que jogaram sempre de forma direta e a nossa massa associativa não admite um passe para trás ou para o guarda-redes e nós só queremos jogar em transição.” Não vou dizer: “Presidente, eu sempre me identifiquei com esse tipo de jogo”. Mesmo podendo esse ser um projeto de nível superior, com todo o respeito que tenho pelos dirigentes, nesse momento teria de dizer: “Presidente, está a falar com a pessoa errada, não sou o treinador que está à procura”. Não posso controlar o que vão contratar a seguir a mim, mas posso, quando me querem contratar, explicar-lhes o que vão contratar.

E explicas?
De cada vez que temos reuniões com dirigentes, estamos sempre disponíveis para mostrar a nossa forma de jogar e a nossa forma de treinar, porque temos vídeos feitos para mostrar a nossa forma de jogar e a nossa forma de treinar. Ou seja, se as pessoas têm dúvidas, que as tenham só à partida. Nas reuniões perguntamos se querem ou não ver. Se não querem ver, eu tenho necessidade de explicar, em traços gerais, aquilo que é a nossa forma de jogar, e aquilo que é a nossa forma de ver o jogo, para procurarmos valorizar os jogadores. Digo sempre isto: “Presidente, não quero que daqui a três meses, porque a equipa está a empatar um jogo e fez três passes para o guarda-redes, que o presidente me venha chamar e me venha dizer que não quer este jogo e quer meter a bola na frente”. Quero queimar essas etapas logo no início, mesmo que isto às vezes nos custe o posto de trabalho logo à partida [risos]. É só antecipar dificuldades. Eu até podia pensar: “Eh pá, ele diz isto mas depois a gente chega lá, mete o nosso jogo e ganha, e ele nunca mais diz nada”. Mas isto é uma falsa questão, porque há momentos difíceis em todas as épocas, seja no FC Porto, no Benfica, no Sporting, onde for. O FC Porto teve uma fase com o Vítor Pereira que em 60 jogos perdeu um e mesmo nessa fase era criticado. Por isso, fases negativas há sempre. E se o presidente me chamar para falar, não me vai apontar à cara que fui mentiroso. Vai apontar-me à cara que sou teimoso, mas isso é diferente. Não tenho problemas nenhuns em falar com os dirigentes, contrariamente ao que alguns colegas, que dizem que não falam com presidentes. Não tenho problema nenhum e gosto de explicar por que razão fazemos as coisas. Eles depois podem compreender e aceitar ou não aceitar. Mas é assim que tentamos fazer sempre.

Para terminar: que objetivos tens para o futuro?
No curto prazo, aquilo que queremos é acabar da melhor forma possível no Mafra, por diferentes situações. Primeiro, porque é importante a forma como terminamos, para valorização dos nossos jogadores, para valorização do clube e para valorização do presidente, que tem uma paixão muito grande e faz com que o clube ande para a frente e também merece terminar o melhor possível, porque traz sustentabilidade ao Mafra. Foi um clube que nos abriu uma oportunidade e gostávamos de poder retribuir em termos desportivos.

Tens um prémio de subida?
[risos] Não. Aquilo que queremos mesmo é receber o nosso salário até ao fim. É pequenino, mas é o que interessa [risos]. As pessoas são cumpridoras e isso é muito importante.

E a longo prazo?
A longo prazo, o sonho é podermos estar com a nossa equipa a ouvir o hino da Champions e podermos treinar para isso. É um objetivo muito nosso, tanto para mim, pessoalmente, como para a restante equipa técnica. Queremos chegar com a nossa ideia a um palco de Champions. Sei que estamos sempre vinculados aos resultados, mas, associado a isso, que possamos também transformar os nossos jogadores e que eles possam valorizar-se, ganhar mais dinheiro e melhorar a vida deles. É um desafio que nos dá gozo.