Merecias sair de outra forma, aplaudido por um João Rocha lotado e, se possível, com a conquista do título. Nada disso acontecerá e resta-nos, portanto, as memórias de um enorme atleta e de um profissional que sempre honrou a nossa camisola, com o extra de, no regresso daquela épica vitória na Roménia, ver o pessoal apontar para ti enquanto exibia aquela adaptação do Dragonball que pedi ao Jusko para fazer, contigo e com o Ruesga.

Enquanto procurava fotos para ilustrar este post, deparei-me com uma entrevista que te fizeram no início de 2018 e que partilho mais abaixo. Antes, permite-me dizer-te «obrigado, Nikcevic! Até sempre, Krilin!»

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Chegou ao Sporting na temporada passada, cedo ‘pegou de estaca’ num plantel que recebeu vários reforços. Muitas novidades, muitos nomes para memorizar, mas o de Ivan Nikcevic caiu nas graças da plateia leonina. No primeiro ano com a camisola verde e branca ao peito, conquistou o campeonato nacional, interrompendo um jejum que já durava há 16 anos. Mas não se ficou por aqui. Ajudou também a conquistar a Taça Challenge.

Nasceu na antiga Jugoslávia, mais precisamente, no Montenegro. Cedo se rendeu ao andebol, mas o futebol esteve sempre presente, que o diga Andrija Delibašić, amigo e antigo jogador do Benfica, que privou de perto com o ponta-esquerda.

Este poliglota (conhecedor de sete línguas), que não morre de amores pela gastronomia portuguesa, começou por competir na Sérvia, onde representou o Estrela Vermelha. Viveu de perto uma rivalidade “brutal” com o Partizan. Com algumas semelhanças, e outras diferenças, Nikcevic comparou-a à que existe entre Sporting e Benfica. Numa conversa sem barreiras, confessou-nos o motivo que o levou a assinar pelo Sporting, assumindo quem foi o pior adversário na época de estreia, fazendo ainda o retrato atual da Liga portuguesa no panorama europeu.

Quando é que tudo começou?
O andebol começou aos 12 anos, ainda estava na escola. O meu primeiro contacto com a modalidade foi no clube do meu povo (em Nikšić, no Montenegro).

Num país com fortes raízes no futebol nunca surgiu a hipótese de seguires esse caminho?
À margem do voleibol e do judo, também pratiquei futebol. Cheguei, em pequeno, a jogar com o Andrija Delibašić, que depois representou o Benfica. Mas depois começaram os torneios de andebol, as viagens, … Este é um desporto com muito contacto, onde os jogadores têm de participar e, por isso, acabei por gostar mais.

À margem do desporto tinhas outros sonhos a nível profissional?
Como pessoa, sempre gostei de fazer as coisas bem. Quando comecei a jogar andebol só me dedicava a isso e nada mais. Não perdia nenhum treino, nenhum jogo, queria estar presente, o meu foco era o andebol.

E quem eram as tuas referências quando entraste na modalidade?
Foi outro tempo em que tu não tinhas internet, não davam tantos jogos na televisão, podias ler alguma coisa pelo jornal, mas para ver algum jogo tinha de ser presencialmente. Nunca tive um jogador para o qual olhasse e dissesse: ‘quero ser como este’. Tentava sempre ‘roubar’ alguma coisa do que via, mas sempre a partir dos exemplos que tinha no balneário e depois através dos adversários que defrontava.

Tens algum ritual que cumpras antes dos jogos se iniciarem?
Sim, claro. Todos os jogadores o têm. E os que dizem que não têm, mentem! Cada ano, cada época, isso muda, a cada êxito que tens. Cumprimos um ritual até fazermos alguma coisa mal, ou quando os jogos passam a não correr assim tão bem. Durante a minha carreira tive muitos, mas ultimamente faço sempre o mesmo aquecimento. Cumprindo os mesmos exercícios, antes dos jogos começarem, acabo por não me distrair com outras coisas.

Acreditas que o Sporting ganhou graças a algum ritual teu?
Não, de todo (risos). A equipa do Sporting está por cima de qualquer individualidade. O Sporting pode ganhar independentemente de qualquer jogador, porque o coletivo funcionava bem e cada um fez o seu trabalho. No final não se pode se dizer que por causa de um ganhámos. Ganhámos porque o grupo estava bem e queria ganhar.

Qual foi o melhor momento da tua carreira?
Há muitos momentos bons, mas acredito que num passado próximo foram os Jogos Olímpicos (Londres, em 2012), porque é um sonho para todos os desportistas. Tive a sorte de ir e participar neste grande evento. Para destacar um momento tinha de ser este.

E o mais caricato?
Uma pergunta difícil, provavelmente aquele que vivi este ano, depois do Sporting conquistar a Taça Challenge na Roménia. Estávamos completamente eufóricos com essa conquista e no meio dos festejos acabei por perder a minha medalha. Felizmente consegui recuperá-la depois (risos). Mas o pior aconteceu depois, quando um dos jogadores deixou cair a Taça ao chão e acabou por partir a parte superior do troféu …

E quem foi?
Algo que eu não posso revelar (risos).

E qual foi o pior momento da tua carreira?
Tive sorte que ao longo da minha carreira nunca tive muitas lesões, apenas uma que aconteceu no Montenegro, em 2009, na segunda partida do Mundial, na Croácia, frente à Dinamarca, em que rompi o tendão de Aquiles. Tinha 27 anos e acabava de ter sido contratado pelo campeão europeu, o Portland San Antonio (Espanha). Estava a cumprir o meu sonho e tudo parecia estar a arruinar-se devido a uma lesão, mas consegui recuperar e voltar a jogar novamente ao mesmo nível.

Se não existisse andebol, que modalidade praticarias?
Provavelmente futebol ou então basquetebol. As pessoas gozam comigo, porque dizem não ter altura suficiente, mas eu jogava bem e continuo a jogar bem e, sempre que tenho tempo, organizo umas partidas, no Montenegro, com os meus amigos.

Em Espanha cruzaste-te com Ricardo Andorinho, uma das tuas referências, e mais tarde com Tiago Rocha, no Wisla Plock (Polónia). Qual era a tua opinião do andebolista português antes de chegares a Portugal?
Jogar contra o Ricardo Andorinho foi uma honra para mim. É um dos pontas-esquerdas mais completos que conheci na minha carreira. Podia jogar em várias posições e conseguia fazê-lo ao mesmo nível. Sempre vi o jogador português muito evoluído técnica e taticamente. Da Liga portuguesa sabia pouca coisa, mas quando cheguei aqui tive uma agradável surpresa com o andebol que se praticava.

Em que nível colocas a Liga portuguesa?
É difícil dizê-lo. O mundo do andebol é pequeno e às vezes as Ligas são de moda. Quando fui para a Polónia ninguém falava da Polónia, mas passado quatro anos já tens um campeão europeu polaco, tens uma seleção que já ganhou duas ou três medalhas e agora é muito competitiva. Acredito que a Liga portuguesa vai crescer bastante. Afinal, a cada ano que passa temos mais jogadores que querem vir competir em Portugal, e isso é muito bom para os jovens portugueses que estão aqui. Não para os ver jogar, mas para saberem que podem chegar ao mesmo nível. Se não competes com os grandes, não podes melhorar. Esta Liga está a melhorar a cada ano que passa.

O que te levou a aceitar o convite do Sporting?
Joguei sete anos em Espanha e sempre me gostou o estilo de vida na Península Ibérica. Depois começaram a surgir alguns problemas na Liga ASOBAL (Liga espanhola de andebol), o que me fez partir para a Polónia durante quatro anos. Depois disso, tive ofertas para rumar à Alemanha, porém nunca me agradou viver lá. Foi nessa altura que surgiu a oferta do Sporting e pareceu-me interessante, porque havia um projeto para ser campeão. Vir para Portugal, fazer parte de uma família, em que todo o mundo conhece Sporting e todo o mundo sabe quem são os jogadores que atuam nas diversas modalidades, tudo isto ajudou. Algo que contribui bastante para a minha vinda foi o facto de poder jogar novamente ao lado de Carlos Ruesga. Estivemos dois anos juntos no Portland San Antonio, somos muito amigos. Sabendo que ele estava aqui, sabia que íamos fazer coisas bonitas.

E o que mais te surpreendeu na tua chegada a Alvalade?
Sabia que era um grande clube, mas quando cheguei aqui, na primeira vez que entrei nas instalações do Sporting e estive diante da equipa de futebol, de futsal, de hóquei ou de atletismo, sabia que não fazia parte de um clube, mas de uma grande família. Vais a um jogo de futebol e vês todos os jogadores de hóquei, de futsal, de voleibol, de atletismo. Vais a um jogo de futsal e vês outra vez todos os jogadores reunidos aí. Quando ouves que alguém da tua família, começas a festejar como se fosses tu, e isso é algo que desconhecia totalmente quando vim para o Sporting. Já tive a sorte de, no passado, fazer parte de outras famílias, mas não tão grande como esta.

Qual foi o adversário mais difícil que defrontaste em Portugal?
Na época passada foi o FC Porto. Começamos bem, mas depois tivemos alguns problemas quando jogámos contra eles. Não acredito que tenham melhor equipa que nós, mas durante uma partida há várias alíneas que podem decidir o vencedor de um encontro. Contudo, acredito que no ano passado o adversário mais difícil que tivemos… fomos nós mesmos. Tivemos um grupo de muitos jogadores novos e tinhas o trabalho de introduzir uma mentalidade vencedora neste grupo. Convencê-los que ninguém lhes podia ganhar. No final, conseguimos, mas ao inicio tínhamos problemas, porque cada um estava à procura do seu lugar e a lutar por si mesmo. Mas os jogadores entenderam que tínhamos todos de empurrar para a mesma direção.

Na época passada o principal adversário foram vocês próprios. E esta temporada?
És sempre tu mesmo. Gosto sempre de pensar que a primeira pessoa com quem tens de lutar é contra ti mesmo. Se tu fazes isso, o adversário tem muito menos hipóteses de te ganhar. Dizem sempre que ganhar é fácil, difícil é manter. Este ano temos outro problema, diferente do que encontrámos no ano passado. Este ano tivemos uma Liga dos Campeões que nos exigiu muito a nível físico e mental. Temos de aprender a mudar o chip, porque uma coisa é jogar frente ao Montpellier, outra é jogar para o campeonato frente a clubes de menor dimensão. Não quero dizer nomes para que ninguém se chateie. Falamos de níveis de competição completamente distintos. É preciso adaptar jogadores a competir a este nível – altíssimo – e aprender a despir camisolas, não olhar para o escudo, e tentar competir de igual para igual.

Por ser o atual campeão e, agora, líder do campeonato, assumes o Sporting como principal favorito na corrida ao título?
O Sporting já não é campeão, foi na época passada. Este ano ainda não fomos campeões. Este ano estamos no bom caminho para ser campeões outra vez. Se tivesse uma bola de cristal, aqui e agora, gostaria de te poder dizer que sim, que vamos ser campeões, mas isto é fruto de um trabalho diário. Uma lesão, uma derrota, pode mudar mentalidades. Temos de ir jogo a jogo e pensar no nosso caminho.

Competiste alguns anos no Estrela Vermelha que tem uma forte rivalidade com o Partizan. Que diferenças e semelhanças encontras entre este confronto e o que existe em Portugal entre Sporting e Benfica?
Pela maneira fervorosa como defendem as suas cores, não há diferenças. É o dérbi mais importante para as duas equipas, não existe oponente maior para o Sporting. No caso do Estrela Vermelha é igual. Há diferenças a nível cultural. Dentro e fora de campo, a rivalidade sérvia é mais violenta e veem-se muitas coisas que não se deviam ver no desporto. Mas, efetivamente, são dois dos dérbis mais apaixonantes que vivi até hoje.

Quais são os teus objetivos a nível pessoal e profissional para esta temporada?
Ser útil à equipa, conseguir que o Sporting saia sempre vencedor dos seus encontros. Nada do que tu consegues a nível individual se compara a um sucesso coletivo. De que vale marcares 15 golos, se tiveres 16 jogadores que não vão estar contentes. O teu repto individual pode ser muito bom, mas se o grupo não estiver bem, o resto pouco conta. Sou assim como desportista, sou assim como pessoa.

O Sporting tem uma casa nova. Como é jogar no Pavilhão João Rocha?
Ainda nos estamos a acostumar a esta nova casa. O ano passado foi muito complicado. Em jeito de brincadeira, dizíamos que estávamos sempre a jogar fora de casa. O que temos aqui é algo enorme, é especial. Não há muitas equipas no mundo que possam dizer que têm uma casa de todos os desportistas e não estou apenas a falar do Pavilhão João Rocha, mas também do Estádio de Alvalade, e de tudo o que está aqui. Isto revela o quão grande é o Sporting, porque nos outros clubes vemos fortes divisões. Por exemplo, no Estrela Vermelha há muitos desportos, mas não é tão unido e não estamos a jogar todos no mesmo sítio. Quando perguntas onde o Sporting vai jogar? Todos sabemos qual é a resposta. Quando perguntas onde vai jogar o Estrela Vermelha, vão perguntar-te: voleibol, futebol, andebol, qual delas? O que temos aqui não se vê em muitos lugares. E quando o Pavilhão está cheio, é difícil ganharem-te. Pode acontecer, mas também tens de perder. Se estou louco por dizer isto? Quando perdes um jogo em casa e vês as pessoas a olharem para ti com cabeça baixa, isso permite gravares essa sensação e colocares dentro da tua cabeça a ideia de não quereres repetir esses momentos.

E costumas ir a Alvalade?
Sim. Todos os domingos que consigo vou a Alvalade ver os jogos ou então ao pavilhão assistir às outras modalidades. Aproveito para vir com o meu filho para ver o que é desporto. Ele vai escolher o seu caminho na vida: não sei qual será a modalidade que irá escolher, mas eu quero que ele aprenda qual é o sentido de pertencer a um clube, de ter uma família, perceber o significado de ter um pavilhão cheio.

E tens algum jogador no plantel principal que gostes particularmente?
Não vejo individualidades, gosto de ver uma equipa que joga muito bem. Ver um jogador que se destaca e nem saber o nome dos restantes isso não me apaixona. Gosto de ir a Alvalade e ver o ambiente, sentir a energia do estádio. Isto dá-te um doping de energia.

Até quando vamos ter o gosto de ver jogar Ivan Nikecevic?
Sinceramente, não ponho limites, será até onde o meu corpo aguentar o ritmo profissional. Enquanto eu conseguir ajudar a minha equipa, vou continuar a lutar. O meu passado não permite baixar um degrau sequer, por isso, quando perceber que estou a reduzir o meu nível, não acredito que vá ter problemas em parar. Se vai ser daqui a um ano, dois ou três? Não sei. Eu estou a praticar este desporto diariamente, dando o meu máximo. Todos os dias a 100 por cento, seja nos treinos, seja nos jogos.

E quando saíres do terreno de jogo, o que acontecerá?
Sinceramente, não sei, porque sou uma pessoa que me interesso por tudo. Ser treinador de andebol pode ser um caminho, porque é a minha vida. Se queres ser profissional e fazer as coisas bem, tens de te dedicar 24 horas por dia e não apenas duas. Se fizeres apenas duas horas tornas-te num simples empregado. Se quiseres ser o melhor, tens de viver um dia completo e encontrar a melhor forma para melhorar. O que eu aprendi e me deixou o andebol, os valores que tenho, como solucionar os problemas, acredito que devo a este trabalho e por isso sinto-me no dever de retribuir a esta modalidade.