Porque hoje é dia do Sporting jogar, porque puxa por aquele lado que nos apaixonou pelo futebol, porque fala de formação e de futebol feminino e porque creio que fará falta a qualquer um de nós ler a entrevista que Hugo Tavares da Silva fez a um “desconhecido” Darío Fernández, no Expresso, e que é uma espécie de ode à gambeta e à liberdade.

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Como tantos outros, foi tido como uma futura estrela que chegaria ao Boca ou ao River, mas quase desapareceu. Uma subida de divisão permitiu a “Firulete” arrancar com a carreira, que se desenrolou sobretudo por Grécia, Israel e Chipre, com alguns portugueses pelo meio. Esteve perto de Bundesliga e La Liga, mas acabou por seguir outras rotas. Agora está em Dallas, nos Estados Unidos, a ensinar meninas a jogar à bola. Só depois é que vem o futebol.

Recentemente recebeste muitas mensagens porque a televisão argentina estava a passar o jogo de ascenso [subida de divisão] de 2003. De que te lembras?
Desse jogo… eiiiiish… muitíssimas coisas. Essa equipa onde estava a jogar, o Quilmes, fazia quase 12 anos que não jogava na Primeira Divisão. Perdeu cinco finais consecutivas. Foi duro. Não jogavam há muitos anos na Primeira. Foi uma experiência impressionante porque, bueno, a subida foi quase histórica. Quilmes tem um campo de Primeira Divisão. Foi uma alegria enorme ficar na história do clube e poder dar à equipa a possibilidade de jogar na Primeira Divisão. E à cidade, a Quilmes.

Vi um pouco do jogo e, depois de conhecer-te um pouco pelo que publicas no Twitter, não me surpreendeu nada que fosses o 10 e canhoto…
[Risos] Toda a minha vida joguei a número 10 na Argentina, é o típico enganche argentino. Como Aimar, Riquelme, Bochini… Na Argentina sempre tivemos números 10 muito bons. Nunca estive ao nível deles, eh! Só te estou a dizer nomes [risos]. Mas, bom, os números 10 sempre gostaram de jogar bem futebol, é um jogador diferente. É o que faz jogar a equipa. O gambeteador [driblador]. Eu gostava muito de um jogador que tinha essa qualidade, da gambeta, de fintar. Sempre recorri a isso. Nessas duas finais, graças a Deus, pude fazer uma campanha muito boa, joguei muito bem nesses dois jogos. As pessoas, os fanáticos, recordam-me sempre exatamente por essas duas finais, pela importância da subida e do título e porque a mim correu muito bem.

Falaremos mais à frente da gambeta, mas antes diz-me: estás em Dallas, certo?
Estou cá há quase quatro anos e estou a trabalhar no futebol de formação do FC Dallas. Estou com as categorias de 2009 e 2006, neste momento no futebol feminino. Quando cheguei cá, encontrei-me com pessoas e falámos de futebol. Há diferentes mentalidades, diferentes visões do futebol que joguei e vejo. Trato de mudar um pouco a mentalidade que há nos Estados Unidos e tento criar novos hábitos e conceitos que não se usam muito por cá. Estou contente, posso trabalhar livremente, posso usar a minha metodologia, dão-me liberdade absoluta.

O que encontraste? Uma mentalidade demasiado resultadista?
Sim, mas resultadista como em todo o mundo. Aqui, na Argentina, em Portugal, em Espanha, em todo o lado.

Mas quando falamos de miúdos é complicado, não?
É complicado. Estão habituados ao futebol americano… se um miúdo bate a bola longe e forte, os pais à volta começam a aplaudi-lo, entendes? Para a minha filosofia, a maneira como joguei futebol, o conceito e esses hábitos estão completamente errados. Então, há que tentar mudar essa mentalidade: que a bola se joga no chão, no relvado, que não se atira para longe, que se joga curto, que se finta, que sejam criativos, que têm de ser valentes para jogar, bom… custou-me muito no princípio, mas pouco a pouco estão a agarrar [as ideias] e estão a entender. Mas é muito difícil, porque é algo que têm implementado há muitos anos. É difícil mudar a mentalidade.

Há coisas simples: por alguma razão eu e mais dez (ou seis) temos a mesma camisola…
Sim! [risos] O mais fácil é dar a bola ao companheiro… ou atirá-la para longe? Sempre ao companheiro.

Como deve ser um treinador de miúdos?
Eu treino os miúdos como gostava que me treinassem quando era un niño. É o mesmo. Trato-os como gostaria que os meus treinadores me tivessem tratado. Sou um treinador que dá muita liberdade, creio que o treinador de formação deve dar completa liberdade ao menino. Sem liberdade não há criatividade. Têm de criar, inventar e ser livres, têm de expressar-se. Há que deixá-los expressarem-se. Estou muito contra, e luto contra isso, os treinadores que gritam, que dizem em todos os momentos o que se deve fazer, jogar rápido aqui, mete a bola na frente… Quando começámos a jogar futebol, quando éramos pequenos, porque o começámos a jogar no bairro? Porque amávamos jogar com a bola. Sim ou não?

Sim, claro.
Amávamos jogar com a bola. É isso que trato de inculcar: que amem jogar com a bola, que a respeitem, que não a atirem para longe, que se associem, que a passem a um companheiro, mas que sejam felizes. Não impor, mas ajudar o miúdo a crescer, desenvolver e aprender com liberdade plena e desfrutando. Agora temos um problema grave no futebol: parece que os jogadores não se podem divertir num campo. Se há um jogador de futebol chateado, com cara de mau, que luta com o mundo todo, parece que os fanáticos ficam todos contentes. Não vejo o futebol dessa maneira, vejo como algo para nos divertirmos, onde pode haver um sorriso, onde se pode falar ou divertir. Estamos numa sociedade que a única coisa que importa é ganhar, não nos podemos divertir. São coisas que, cada um com o seu grãozito de areia, tentamos mudar. Mas é muito difícil.

Lembro-me de um vídeo em que Gabriel Heinze dizia a miúdos que acabavam de perder supostamente uma final que estava tudo bem, que têm de ser amigos, divertir-se e que no futuro terão tempo para se preocuparem e ficarem angustiados.
Isso mesmo. Haverá tempo para as pressões de ter de ganhar, porque no futebol profissional tens de ganhar, isso é óbvio. Aí pode jogar-se de qualquer maneira e ganhar de qualquer maneira, mas no futebol de formação há que competir para poder aprender e poder melhorar. Esse é o objetivo da competição. Não se joga um campeonato, no futebol formativo, para ganhar exclusivamente. Esse não é o objetivo, ganhar… O objetivo é que compitam e que, dando-lhes ferramentas, possam aprender e possam melhorar. Se ganharem, melhor, porque todos jogamos para ganhar, claro. Nenhum jogador de formação quer entrar em campo para perder. Tratamos de ganhar, mas quero que primeiro desfrutem. Não quero miúdos que queiram mais ganhar do que jogar. Quero que tenham mais ganas de jogar e de desfrutar do que de ganhar.

Que ganhar seja uma consequência.
Que ganhar seja uma consequência. Primeiro, jogar. Quando eu jogava na rua com os meus amigos, na Argentina, não íamos jogar e eu dizia “vamos jogar porque quero ganhar”. Não. Íamos jogar para a rua porque queríamos jogar e divertir-nos, era o objetivo. Depois, claro, queríamos ganhar. Quero meninos e jogadores que queiram jogar e desfrutar, e que depois queiram ganhar. Se chegarem um dia a jogadores profissionais, que queiram ganhar e que seja o objetivo, mas que não seja ganhar de qualquer maneira [ganar como sea]. Ganhar de qualquer maneira não existe, isso não existe. Se me puderem explicar o que é ganhar de qualquer maneira, que o expliquem. Para mim, não existe.

Numa entrevista à Tribuna Expresso, Ángel Cappa disse que essa história de ganhar de qualquer maneira é o verdadeiro vende humo [vender fumo, charlatanice].
[Risos] É esse o problema. Pessoas como Ángel Cappa e César Luis Menotti falam e têm conceitos espetaculares, mas gente que fala de dar porrada, atirar para o chão, que fala de futebol combativo, esses é que estão bem. Sou completamente de outra filosofia, sou da filosofia de Ángel Cappa e César Luis Menotti. Há que ganhar? Sim, há que ganhar. Isso é óbvio. As pessoas pensam que se prefere jogar bem e perder. Não, eu quero jogar bem e quero ganhar. Não quero jogar bem e perder. Quero ganhar jogando bem, quando jogas bem tens mais possibilidades. Depois há um monte de métodos. Isto é futebol, é uma incerteza constantemente. O que joga mal pode ganhar, o que joga bem também. Há muitíssimas maneiras, mas eu escolho a maneira de jogar bem futebol. É a minha maneira. Quero que os jogadores desfrutem e que a partir desse gozo possam ganhar. É uma batalha que há que continuar a combater.

Recentemente partilhaste a carta de Diego Placente sobre a infância dele. O que sentiste quando a leste?
Prazer. Senti-me muito identificado porque também me aconteceu a mim e a todos os que jogaram em divisões inferiores, principalmente na Argentina e na América do Sul, porque essas coisas acontecem muito na América do Sul. Na Europa não acontecem tantas coisas assim. Aconteceu-me também. Jogadores que parecia que iam ser fenómenos e que não conseguiram chegar à elite, jogadores que se perderam pelo caminho e pensas: “Como é que este rapaz não chegou à elite? Como é que não chegou à Primeira Divisão?”. E, bom, são essas coisas que têm a vida e o futebol, que não conseguimos encontrar explicação.
Lamentavelmente no meu país há muitos problemas sociais, de educação, de emprego, política, por isso é muito difícil desenvolver uma atividade nesse contexto. Há miúdos que vão jogar em divisões inferiores sem poder comer, e com muitos outros problemas. Apesar desses problemas, desses inconvenientes, conseguem chegar a futebolistas profissionais. Creio que isso tem contras e um lado bom também: o menino, tendo isso contra ele, forja uma personalidade muito forte, muito, muito forte. Por isso o jogador argentino é muito desejado. Em todos os lugares do mundo há jogadores argentinos. Quando o jogador argentino vai para a Europa, as condições são muito diferentes e sai potenciado. Tem todas as comodidades que não tem no seu país, creio que é uma das causas para o jogador argentino, ou brasileiro, ou uruguaio, ou chileno, se potenciar na Europa. Vêm de uma realidade distinta nos seus países, depois têm tudo de forma conveniente para serem jogadores de elite.

Falaste do teu início de carreira, de como as pessoas às vezes olham para os miúdos. Olhavam-te como um futuro ídolo, como alguém que chegaria a um River ou Boca?
Sim, quando eu estava na formação do Unión de Santa Fe, foi aí que comecei, estava catalogado como uma das figuras das camadas jovens. Mas fiz todos os patamares da formação e não pude estrear-me na Primeira Divisão. Não me fizeram estrear, e eu era uma das grandes promessas do clube. Bom, depois disso, não cheguei a assinar contrato profissional com eles e, como todos esses miúdos que eram promessas, estive quase a desaparecer. Estive muito perto, mas tive sorte porque, nos últimos cinco meses que fiquei livre, fui para o Olimpo de Bahia Blanca, a jogar na Segunda Divisão argentina. Fiz uma muito boa temporada e fomos campeões, subimos à Primeira Divisão. A partir daí a minha carreira arrancou. Estive muito, muito perto, com todas as condições que tinha, impressionante, de desaparecer, como aconteceu a muitos miúdos no meu país e no mundo.

Agora, ao ouvir-te falar na Segunda Divisão, lembrei-me da história de ‘El Trinche’…
Exatamente. Na Argentina há muitíssimos jogadores desse calibre, desse talento, mas há muitos que se perdem no caminho. Muitíssimos. Agora há um problema grave na formação porque procuram jogadores grandes, fortes, rápidos, com uma condição física boa… Aconteceu ao Riquelme, que não jogava no Argentinos Juniors porque tinha um físico muito pequeno, não o metiam a jogar. Estamos a falar de Román Riquelme, um dos melhores jogadores da história do futebol argentino. Foi isso que aconteceu no mundo e especialmente no meu país. Um formador prefere um jogador grande, que bate na bola com força, que corre rápido, em vez de preferir um jogador com muito boa técnica, inteligente, habilidoso. No meu país estamos a perder a essência, a nossa essência, o bom jogo, esse driblador, estamos a perdê-lo. Querem distanciar-se na formação a ganhar. Não é esse o caminho. A maioria dos formadores, não são todos, a única coisa em que pensa é em ganhar. Estamos a perder esse grande jogador que nos pode dar muitíssimas alegrias e que tem um futuro impressionante porque preferimos um jogador com menos técnica, mais forte e mais rápido do que esse menino, porque queremos ganhar nas divisões inferiores. Estamos a enganar-nos no caminho.

Tinha aqui para te perguntar se a técnica ainda era o centro do universo, se a gambeta está em vias de extinção e se o futebol argentino mudou muito nas últimas décadas… mas já respondeste.
Sim. O que acontece agora é que os miúdos jogam menos do que antes. Antes jogávamos nove horas na rua. Os miúdos agora não jogam, praticamente, por causa da segurança, porque os pais não os deixam sair para a rua, ou devido ao desenvolvimento cada vez maior das cidades. Enfim, é um problema. Depois, para além de não jogarem, quando vão a um treino de camadas jovens não os fazem jogar. Dou-te um exemplo: há um miúdo que sabe fintar, que tem um grande drible, e o treinador começa a dizer “não fintes, joga rápido, joga a dois toques, não faças isto”, então esse miúdo driblador que tem essa gambeta única vai perdendo-a. Por culpa dos treinadores, não os deixam desenvolver. Se o menino não desenvolve a gambeta aos oito, nove, dez anos, quando é que a vai desenvolver? Quando tiver 21? Não! O chico tem de a desenvolver quando é pequeno.
Até aos 12, 13 e 14 anos têm de aprender a jogar à bola, depois dessa idade têm que começar a jogar futebol. O que é jogar à bola? Dar-lhe conceitos, ajudar a desenvolver, mas que joguem, joguem, joguem. Depois, aos 13 e 14 anos, começa [o futebol] e há que ajudá-lo. “Tens uma ótima gambeta? Escuta, aqui podes fintar, cuidado que aqui é difícil, mas a melhor gambeta, a mais produtiva para ti e para a equipa, vai ser nos últimos 3/4 da cancha. Aí faz o que quiseres, finta até à baliza, ao árbitro, faz o que quiseres. No nosso meio-campo e na nossa área atenção, que aí é muito perigoso”. Mas ensina-o onde deve fazê-lo, não o limites. Se o treinador diz “não, não, não fintes mais”, o que faz o miúdo? Não finta mais. Tem medo que o treinador lhe grite, e ele deixa de desenvolver-se. Deixem-no! Deixem que eles fintem. Quando crescer podes orientar, mas nunca proibir, nunca lhe digas “não”. A partir do momento que o proíbes, o menino bloqueia-se e deixa de ter essa liberdade e criatividade. Sem liberdade não há criatividade. Precisamos desses jogadores, do jogador criativo, como precisamos de defesas e guarda-redes, mas não podemos perder essa classe de jogador.

Com tanta tática imposta, com tanto físico, veem-se jogadores como Thiago Alcântara que, com uma receção ou drible, partem a pressão do adversário. O drible também como resolução de problemas, não?
A gambeta pode romper qualquer disposição tática. Rompe tudo. Já o disse Marcelo Bielsa: a gambeta é o gesto técnico mais difícil e não se pode aprender. Não te posso ensinar a fintar. Não posso! A gambeta consiste num engano e eu não te posso ensinar a enganar. Agora metem cones [sinalizadores] e dizem aos miúdos para fintarem os cones, e pensam que estão a desenvolver o drible, mas isso não se faz a driblar cones. Faz-se driblando rivais, companheiros e amigos.

Parecias Rubén Rossi a falar…
Foi meu mentor no Unión de Santa Fe! É muito meu amigo, foi meu treinador. Aprendi todos os conceitos com o Rubén. Amo-o. Em tudo o que diz tem razão. É a verdade. Não te posso fazer enganar um cone, como o vou fazer!? Seguramente que o vais driblar, é um cone. Fácil. Depois meto à tua frente uma pessoa e não será o mesmo. Vai mexer-se, não é o mesmo. Estamos a errar na metodologia e método para ensinar o menino a jogar. Se me disseres que vamos usar os conezitos para a coordenação, perfeito. Mas não metas cones e digas que estás a desenvolver o drible porque é mentira. Desenvolvi a minha gambeta na rua, ao lado de minha casa, a driblar os meus amigos. Agora nas academias metem miúdos a fintar cones e dizem que estão a desenvolver o drible. É mentira, não estão a desenvolver nada. É um grande problema. Já viste algum jogo com cones e as escadas que usam?

No.
No. Não existe isso. O jogo tem de ser livre. “Agora vamos trabalhar a coordenação sem bola”: não, na coordenação também tem de estar a bola porque se joga com a bola. Se o elemento principal deste jogo é a bola e a bola não está, não existe, não existe futebol. Tem de estar a bola. O menino tem de coordenar-se com a bola. Como aprendi a driblar? Tinha a bola e tinha de driblar os meus companheiros, os buracos que havia nos campos em que jogávamos, as pedras, as árvores. Tinha de driblar tudo. Agora jogam em relvado sintético e a bola vem sempre boa, vem direitinha ao pé deles. Quando jogávamos no potrero não se sabia para que lado ia saltar a bola. Não sabias! Batia-te num buraco e saltava para cima, batia-te numa pedra e saía por outro lado. Tínhamos de estar preparados para qualquer coisa, se sai para aqui ou para ali. Tínhamos de ser rápidos e aprendíamos a controlar a bola de diferentes maneiras. Agora jogam em sintéticos e a bola vem sempre para o pé, direitinha, por isso controlam-na sempre da mesma maneira. Quando jogávamos no bairro a bola saltava e ressaltava para todos os lados. Aí aprendíamos a coordenar e a controlar a bola.

Vê-se que te preocupas muito com a formação e a felicidade dos miúdos. Estiveste com Freddy Adu, no Aris da Grécia, e é todo um exemplo de um futebolista criado para ser uma super estrela mundial, mesmo que não chegue a sê-lo…
Porque vem de um país como os Estados Unidos, que tem muito marketing, foi tudo muito mais marketing.

Era futebolista da Nike com 14 anos, julgo…
Imagina, assinou um contrato vitalício. Ele é que me contou, quando fomos companheiros, que assinou com a Nike para a vida toda.

Fazia anúncios publicitários com Pelé.
E comparavam-no com Pelé. Bom, é esse o problema de etiquetar os meninos quando são pequenos e dizer que, com 14, 15 anos, este jogador vai ser craque, vai ser um fenómeno. Mas aí estamos a errar no caminho, porque lhe estamos a dar uma responsabilidade e uma pressão constantes. Imagina que ao Adu, desde os 14 anos, e ele contou-me isso, disseram-lhe que podia ser melhor do que o Pelé. Com 14 anos! Imagina que responsabilidade e pressão sentia esse menino de 14 anos. Como é que ia jogar livremente? Como é que se ia divertir? Não podia. Ele disse-me que não se podia divertir, estava muito pressionado, tinha de cumprir as expectativas de toda a gente à volta dele. “Como diziam que ia ser melhor que o Pelé, agora tenho de ser melhor do que o Pelé. E eu não era o Pelé”, dizia-me ele. “Eu era Adu, um miúdo normal que jogava bem futebol mas que não era Pelé”. É esse o problema de etiquetar os meninos quando são pequenos. Foi mais ou menos o que disse o Placente [na carta], isso de etiquetar os meninos com 14, 15 anos como craques. Não, não são craques. São meninos amadores que estão a jogar à bola. Nada mais. Não etiquetemos, eles estão a jogar. Estão a jogar! Querem ser profissionais? Sim, mas neste momento são meninos que estão a jogar, a divertir-se. Não os comparemos. Temos esse problema na sociedade e no mundo, comparamos e etiquetamos todos. “Quem é melhor? Messi ou Maradona? Michael Jordan ou LeBron James?”. Estamos sempre assim. “Quem é melhor? Eusébio ou Cristiano Ronaldo”?


Estamos todo o tempo a comparar e não há que o fazer. Cada pessoa é diferente. Deixem-nos viver, deixem-nos desfrutar. Tanto ao jogador amador como ao profissional. Luto por isso, que o jogador profissional nunca se esqueça de esse amadorismo de quando jogava em divisões inferiores, que não se esqueça desse menino que jogava na rua. Falo muito disso, tenho muitos amigos que ainda jogam e trato de falar desse tema: não se esqueçam do miúdo que jogava na rua. “Vocês jogam futebol por causa desse menino, desfrutavam aí por isso tratem de desfrutar agora, por mais que seja difícil”. É verdade, é muito difícil. Há muita pressão, jornalistas, fanáticos, família. Tratem de o encontrar, em algum lugar do coração, e não se esqueçam desse menino. Quando eu jogava, tratava de me divertir. Agora, por exemplo, passaram essas duas finais [no Quilmes, 2003] e disseram-me: “Jogaste como se não fossem finais”. E eu disse, em muitas entrevistas, que naquele momento estava a jogar como jogava com os meus amigos no campito, na rua. O contexto era diferente, havia 30 mil pessoas, sim!, mas eu estava a jogar à bola, estava a jogar futebol. Não deixa de ser um jogo. É um jogo. Por mais que as pessoas o queiram transformar num negócio ou no que for, é um jogo. Em todos os jogos que jogamos, tratamos de divertir-nos. Quando vejo um filme, quero divertir-me. Não vejo um jogo ou um filme para me aborrecer ou para me chatear com alguém. É isso que tento passar aos jogadores e na formação.

Às vezes os pais fazem ao filho algo ao estilo Freddy Adu e há demasiadas expectativas.
Isso é um problema grave. Os pais procuram no seu filho a salvação. Pensam “o meu filho vai salvar-me economicamente”, “este vai ser o novo Messi”. Sabes qual é o problema? Há muitos pais que pensam que têm o novo Messi, mas Messi só há um. Maradona só há um. Cristiano Ronaldo só há um. Não haverá mais. Há muitos pais que pensam isso, mas não. Têm é de deixar o filho desfrutar. Deixam-no desfrutar. Deixem-no desfrutar! Depois, no momento que esteja perto de ser profissional, aí é outro tema, há mais pressões e terá de lidar com isso. Mas, nesta etapa, deixem-no desfrutar, porque quando nos tornamos profissionais é difícil fazê-lo. É por isso que luto, que tratem de desfrutar. É uma batalha quase impossível de ganhar.

Estiveste muito tempo fora da Argentina. Estiveste no Chile, Grécia, Israel e Chipre. Porquê? Foi um plano? Não querias estar na Argentina? Chegaste a jogar na Primeira Divisão, certo?
Sim, sim, sim. Joguei na Primeira Divisão com o Quilmes. Houve a oportunidade de ir para a Grécia e decidi ir, para experimentar algo novo. Nesse momento, a Grécia acabava de ser campeã europeia, em 2004…

Eu lembro-me, han…
Claro! Ganharam a Portugal [risos]. Bom, a liga estava a crescer, havia muitos bons jogadores. Gostei da ideia. Acabei por ficar muitíssimos anos. Fiz muitas boas campanhas, fiz bons campeonatos e compraram-me para ir para Israel. Assim se deu a minha carreira, fiquei fora até ao fim.

Foste ídolo no Panionios, certo? Creio que li algo sobre isso…
Sim, sim. No Panionios, sim. Estou no melhor XI de toda a história do clube. Graças a Deus, correu-me bem. Deram-me muito carinho. Agora também elegeram, no Beitar e em Israel, os melhores jogadores da última década e também me escolheram a mim. Estou muito agradecido. Não foi algo que procurei. Sempre que faço entrevistas digo que fui um jogador que sempre jogou à bola, nunca joguei futebol. Eu jogava à bola. É verdade. Divertia-me quando podia, mesmo sabendo que era difícil. Fintava. Por exemplo, a minha equipa ganhava e, se eu não tinha feito nenhuma gambeta no jogo ou nenhum desequilíbrio, ou não tinha feito um caño [cueca] ou um sombrero [cabrito], ia para casa triste. Era o que eu procurava. Queria ganhar, mas queria divertir-me também. Jogava para isso. Tive a sorte de nunca ter perdido esse amadorismo. Perdi alguns anos, porque o perdes, com toda a pressão e, com tudo o que tens à tua volta, às vezes podes perder, mas sempre tratei de o recuperar. Tive muitíssimos problemas com treinadores por isso. Mas nunca mudei a minha essência, sempre joguei da maneira que sentia. O futebol tem de ser jogado como se sente, não da maneira que exigem ou impõe. Não posso mudar a minha essência porque um treinador não gosta que eu drible. Sou esse jogador. Se não gostas de um jogador que dribla, para que me trouxeste para jogar para a tua equipa? Traz outro, com outras características. Não me limites a mim, não digas o que não posso fazer. É uma das minhas virtudes, não o vou deixar de fazer. Não se deve sacar a natureza do jogador. Não te posso dizer, se fores um grande escritor ou jornalista, “Hugo, deixa de escrever, não escrevas mais, faz outra coisa”. Não posso! Se é o melhor que fazes, se é a tua natureza… És tu, é a tua essência. Escreve, faz o que melhor fazes. Quanto à minha gambeta, tenho de a colocar à disposição da equipa, estou de acordo. Jogamos numa equipa e é um jogo coletivo, e eu jogava à bola e tratava de colocar a minha gambeta e virtudes à disposição da equipa. Não me digas para não fazer o que me fez jogar tantos anos e na elite. Não me proíbas, é o que faço.

Estiveste com Gustavo Alfaro [ex-treinador do Boca Juniors], no Quilmes e no Olimpo, e Mazinho e Héctor Cúper na Grécia. Algum te marcou?
O problema… não é que tenha tido problemas, mas era um jogador que às vezes driblava muito, é verdade. Driblava muito e às vezes sem necessidade, não tinha que o fazer em algumas zonas do campo. Não tive problemas graves. Com quem tive mais problemas foi com Ewald Lienen, um treinador alemão que tinha estado no Borussia Mönchengladbach, [e depois no] Olympiakos, Panionios e AEK da Grécia. Esteve em muitos lugares. Tive bastantes problemas, choquei muito. Era alemão. A disciplina alemã e o jogo prático e rápido do jogo alemão chocavam um pouco com o meu jogo argentino da gambeta, desequilibrar…

A pausa.
A paaausa. Choquei muito com ele, mas aprendi muito. Com o tempo, ele aprendeu e compreendeu que não me podia tirar a essência de jogar e de driblar, era o que melhor eu fazia. Ele aprendeu e permitiu e, quando o permitiu, foi quando joguei melhor. Classificámo-nos para a Taça UEFA duas vezes consecutivas, jogámos na UEFA, fiz golos. Depois venderam-me, fiz uma temporada fantástica. Foram três [épocas no Panionios]. Porquê? Ele entendeu que tinha de me deixar jogar. Seguramente que tinha de obeceder taticamente, quando não tinha a bola, mas depois, quando a tinha, liberdade completa para jogar e decidir.

Nessa Taça UEFA jogaste contra gente como Henrik Larsson, Cavenaghi, Hakan Sukur, Arda Turan, Hasan Sas… Não tinhas condições para chegar a uma liga mais competitiva?
Não cheguei a uma liga mais competitiva porque não quis. No Panionios tinha quase tudo assinado com o Borussia Mönchengladbach para ir para a Bundesliga. Mas apareceu um multimilionário russo, do Beitar Jerusalém, que me queria sim ou sim, e que não queria que fosse para outro lado. Meteu o dinheiro e comprou-me. Tive de ir para o Beitar de Jerusalém. Mas eu queria ir para a Bundesliga. Depois, em 2009, tive a possibilidade de ir para o Valladolid, de Espanha, para jogar na La Liga, mas decidi ir para o Aris Salonika, da Grécia, porque teria um contrato maior do que em Valladolid. Era muito mais dinheiro, eu já tinha 30 anos, sabia que não me faltavam muitos anos de carreira e decidi ir. No Aris estava Mazinho e Donato como treinadores e havia muitos jogadores argentinos. Fiquei sempre com essa espinha. Pergunto-me sempre se teria jogado bem se tivesse ido [para Alemanha ou Espanha]. São decisões que tomamos. Fui para o Aris e joguei muito bem, classificámo-nos para a Taça UEFA, tive bons treinadores. Não me arrependo de nada.

Por lá jogaste com um uruguaio…
Com Sebastián Abreu!? El Loco Abreu? Era um fenómeno. Muito bom tipo, muito boa pessoa. Continua a jogar, está como treinador-jogador no Uruguai. O Loco era uma personagem, muito bom jogador, que jogou Mundiais, jogou por todo o mundo, tem muita experiência. Aprendi muito com ele. Continuamos em contacto, outro dia falei com ele. Aprende-se muito com essa gente.

Também jogaste com alguns portugueses. Lembras-te de algum?
Joguei com portugueses no Chipre… na verdade, não me lembro dos nomes, havia muitíssimos jogadores portugueses na liga. Gostam muito de ir para o Chipre [gargalhada]. Eu fui lá mais de férias do que para jogar futebol. Ilhas, praia, é um lugar muito bonito para se viver, e ainda fazes o que gostas: jogar futebol. Foi a combinação perfeita. Mas, sim, joguei com um ou dois portugueses. Não me lembro. No Panionios joguei com um rapaz português que tinha jogado… não me lembro da equipa… um avançado, com o cabelo grande, não me lembro do nome…

Carlos Carneiro?
Carlos Carneiro! Carlos Carneiro! Exatamente. Espera! Joguei com outro… Um negro que jogou no Sporting com o Cristiano Ronaldo, nas divisões inferiores.

Lourenço?
Lourenço, Lourenço. Aí está! Eram muito bons jogadores e boa gente.

Digo-te mais: Semedo, Barge…
Semedo! Tu sabes mais que eu! [gargalhada]

Carlos Marques e Vasconcelos.
Sim. Eu lembro-me mas o que acontece é que joguei com tantos jogadores que os nomes se perdem…

Lembras-te de Santamaria?
Santamaria, sim! Era defesa.

Jogaram dois anos no Alki Larnada, do Chipre. Creio que é ainda o mais jovem a estrear-se no Sporting e esta época, com 38 anos, ainda jogava…
Uau!! Uff…

Na quarta divisão. É paixão, não?
Sim. Era muito bom jogador, tinha muitas condições. Não era um jogador para a liga do Chipre, podia ter jogado noutra liga tranquilamente. Era muito bom jogador. Vivíamos no mesmo lugar, as casas estavam muito juntas. É muito boa gente, muito boa pessoa.

Que erros cometeste como futebolista? Falaste na tal mudança para a Bundesliga…
Isso não foi uma decisão minha, decidiram os diretores do Panionios. O magnata russo, o dono do Beitar, chegou com mais dinheiro e aí nem pude decidir. Lamentavelmente, decidiram eles. Quanto a erros, era um jogador que tinha e tenho muita personalidade, por isso uma das minhas alcunhas é loco. Loco Darío. Faltou paciência e tranquilidade. Às vezes perdia muito rápido a paciência e as estribeiras. Muito rápido. Isso, sim, foi um dos erros que cometi. Mas, bom, aprendes com a experiência. Quando somos jovens e queremos jogar, nada importa. Depois, há um treinador que há que respeitar e é ele quem decide. Quando nos convertimos em treinadores, vemos muitas coisas do outro lado e dizemos “porque não tive mais paciência?”. Às vezes os treinadores também têm razão e os jogadores equivocam-se. Por essa vontade de querer jogar, às vezes equivocam-se, dizem-se coisas que não se deviam dizer. Isso aconteceu-me com alguns treinadores. Não tens a tranquilidade que devias ter. É muito difícil quando és jovem e não tens a experiência suficiente.

Quer-se tudo para ontem.
Quer-se tudo rápido. Quando és jovem, a única coisa que queremos é jogar e passar bem. Por mais que sejas profissional e te paguem para fazeres o que gostas, só queres é jogar. O jogador quer jogar sempre. Há um treinador que toma decisões, há 30 jogadores, tem de decidir. Eu não gostava de ir para o banco de suplentes, não gostava de sentar-me. Tinha muitos problemas com isso. Foi um erro da minha parte não ter a paciência suficiente. Afinal, depois acabava por jogar. Não faz mal sentar no banco um ou dois jogos. Vejo-o agora de fora, na altura não o entendia. Depois aprendes, interiorizas e é o lado bom de te tornares treinador: podes transmitir isso ao jogador.

Muitas vezes ouvimos que os jogadores sofrem. Foste feliz como futebolista?
Siiiiim, sim, sim. Claro que fui feliz. Siiiim. Amei e amo. Continuo a ser futebolista. Até que morra, serei futebolista. Deixei de jogar porque fiquei velho, e não porque quis deixar de jogar. Agora posso ser treinador mas continuo a ser futebolista. Se estudas para advogado e jornalista, quando te reformas não deixas de o ser. Se és jornalista, vais ser jornalista a vida toda. Tens esse título, o médico, o doutor, continua com esse título. Pode ter 80 anos, não exercer, e continua a ser doutor. Retirei-me mas serei futebolista até aos 80 anos. É assim. Não jogo porque ninguém me liga, se alguém ligar eu vou e jogo [risos]. Quando te transformas em treinador continuas a pensar muito como futebolista e podes transmitir muitíssimas vivências ao jogador de futebol. “Isto aconteceu-me”, “cuidado com isto e aquilo”, depois decidem eles. Podes transmitir o que viveste. Isso é muito, muito importante.

Vês-te como treinador de futebol profissional?
Penso que sim. No futuro, sim. Antes de retirar-me queria ser treinador de formação, porque via muitas coisas que não gostava e havia coisas para mudar e para os miúdos aprenderem. Não que eu lhes ensine mas que eles aprendam. Por isso vim para a formação. Depois, sim, mais à frente, vejo-me como treinador profissional. Agora, não. O jogador que foi profissional chega a um momento que quer essa adrenalina e essa pressão do futebol profissional. Sentimos muito a falta disso. Por mais que como jogador não gostasse disso, quando abandonas sentes muita falta. Mas agora não, estou muito envolvido e entusiasmado com o futebol de formação. Gosto muito.

Porquê a alcunha Firulete?
Porque fintava muito. És português mas, na Argentina, chamamos firulete a quem faz muitas simulações [de drible], gambetas, como Ariel Ortega. Lembras-te? El burrito Ortega. Ele era um jogador assim, de muito firulete. Chamavam-me firulete por isso: fintava muito, fazia muitas simulações, cuecas, cabritos, gostava de esconder a bola. Era jogador de bairro. Na Argentina diz-se que esses jogadores têm terra nos bolsos por terem jogado na terra. Foi um jornalista, quando eu estava no Quilmes, que me apelidou Firulete e ficou.