O futebol caminha sobre terreno minado. Desigual como nunca, preocupa-se mais em aumentar esse fosso, ajudando e cedendo aos caprichos dos mais fortes, ricos e poderosos – a remodelação prevista na Liga dos Campeões é o último exemplo dessa forma de estar e atuar – ao mesmo tempo que ignora as necessidades, as dificuldades e o futuro dos mais pequenos, cada vez mais desfavorecidos e limitados. Esta é, aliás, uma tendência aparentemente concertada entre as mais altas instâncias e os clubes maiores, ignorando algo que me parece tão claro quanto evidente: é a força da base que sustenta a pirâmide.

Esta realidade tem-se acentuado e evidenciado de diversas formas e em vários aspetos, mas é na formação, concretamente naquilo que ela representa ao nível das coletividades, das ligações que cria e até na importância que tem no desenvolvimento do gosto pelo futebol, que esta visão limitada e limitadora me parece mais preocupante e com o potencial mais nocivo para o futuro do futebol. Quem sabe se não ao ponto de colocar a sua sobrevivência em risco.

Quando se fala da formação em Portugal, há algo curioso e contraditório. A aposta nos jovens que é tão elogiada, embora não seja tão significativa quanto isso (clica aqui para veres os dados que confirmam), é a mesma que deixa a nu outra coisa que me parece bem mais relevante: só Benfica, Sporting, F. C. Porto, Sp. Braga e V. Guimarães (uns mais do que outros, obviamente) lançam jogadores da formação e lhes dão (algum) tempo de jogo e continuidade competitiva. De resto, e falando em concreto I Liga, apenas o Belenenses SAD (Tomás Ribeiro) e o Nacional (João Camacho) têm um titular habitual que seja da sua formação. Nas divisões mais baixas, o panorama não é melhor e tentar encontrar explicações para isto implica perceber algo básico e decisivo: é que, ao longo dos anos, e de forma reiterada, descontrolada e desregulada, a maioria desses clubes vai perdendo os melhores jogadores que tem nas camadas jovens para os clubes mais fortes.

Como Renato Paiva disse no excelente webinar que a Liga de Clubes promoveu há umas semanas, “hoje em dia, os clubes grandes sentem necessidade de não se enganarem no scouting e decidem agregar o maior número de jogadores possível para minimizar os erros e para eles não irem para a concorrência”. Por isso, “chegam a ter quatro equipas de infantis ou quatro equipas de sub-12”. Mas esses clubes grandes também têm escolas de futebol espalhadas por todo o país, protocolos com vários clubes e um sem fim de estratégias com o fim de controlarem o máximo de jovens jogadores que conseguirem. Com que custos?

(Um aparte para se ter uma dimensão mais precisa desta realidade: o City Group, que detém o Manchester City, controla cerca de 1500 jogadores. Isto no início de 2000. – clica aqui para mais pormenores)

Hoje, é normal ver miúdos de 8, 9 ou 10 anos deixarem a infância para trás, a família e os amigos para se juntarem a clubes grandes, às academias, etc. Mesmo sabendo que é impossível prever se chegarão a um patamar alto (as estatísticas são avassaladoras a este nível e dizem que não), os clubes fazem-no e insistem nisto. Uma das consequências diretas desta forma de atuar é que desde muito cedo, os clubes pequenos perdem qualidade na formação e jogadores que, no fundo, também são estímulos mobilizadores para se acreditar e investir em algo. E essa perda de qualidade acentua-se à medida que o escalão formativo é mais velho.

A esta ‘caça’ desenfreada dos mais poderosos aos mais pequenos, há que juntar a crença de muitos pais de que o melhor para os filhos é estar num clube grande, com supostas melhores condições e supostos melhores treinadores, do que num mais pequeno, sem que essa ideia tenha qualquer sustentação científica e real.

Já para não falar sobre as consequências desta mercantilização juvenil nos jovens. Quantos se perdem, futebolisticamente e não só, por irem para os grandes, onde vão ter menos tempo de jogo, menos competição, menos motivação e, ao fim e ao cabo, menos condições para atingir o profissionalismo? Quantos não são dispensados, ao fim de um ou dois anos, sofrendo com isso danos psicológicos, muitos vezes profundos e irreversíveis? Não seria melhor, deixá-los no clube de origem, mais modesto, mas onde jogariam mais, viveriam mais e seriam mais felizes?

Chegado a este ponto, é difícil encontrar razões para um clube de recursos limitados investir dinheiro, tempo, reflexão e em pessoas, sabendo que nunca ficará com os melhores jogadores, que nunca tirará os maiores proveitos desse processo/investimento e que está constantemente ameaçado pelos caprichos dos mais fortes. A motivação intrínseca de estar a contribuir para algo maior e com resultados a médio e a longo-prazo não é alimentada com resultados palpáveis, visíveis e moralizadores, logo é complicado haver melhorias nos processos e quem paga são os outros milhares de jovens que ficam entregues a clubes, pessoas e organizações desmotivadas, resignadas e fechadas.

Se os mais poderosos e mais ricos persistirem nesta procura desenfreada, quase doentia, de talento, neste efeito eucalipto, que seca tudo à volta, mais os clubes pequenos se afundarão no comodismo, na inação; mais as pessoas se afastarão e o provável é que a formação nos contextos mais desfavorecidos continue a perder importância (há muito que já não é uma prioridade). Contribuir só para mostrar aos grandes aquilo que eles podem ter, praticamente sem contrapartidas, não é grande estímulo.

Então, a formação nos clubes pequenos – que são a grande maioria, em Portugal e no Mundo – está ameaçada? É difícil não pensar nisso, nem que seja como uma possibilidade. Ainda que (e nunca é demais repeti-lo), a formação deva guiar-se por valores e objetivos maiores do que simplesmente formar grandes jogadores de futebol, é essa perspetiva de estar a contribuir para a evolução de um futuro futebolista que dá impulso aos processos e aos investimentos. Sem ela, é pedir muito que tudo o resto também não perca importância e significado.

De realidades que conheço e de conversas que vou tendo com treinadores ou coordenadores, há a convicção grande de que mesmo os clubes que competem no Campeonato de Portugal já não conseguem formar e aproveitar jogadores da formação com a qualidade suficiente para garantirem rendimento a esse nível. Claro, também podemos salientar, e com alguma razão, que há pouca vontade nisso. No entanto, o ponto, aqui e agora, é outro: se os jogadores formados internamente não chegam nem para jogarem no terceiro escalão do futebol português, então qual é a vantagem em ter formação?

Insiste-se muito na ideia de que a formação é o caminho a seguir para conciliar o sucesso desportivo com a estabilidade financeira. Mas é o caminho para quem se, logo desde as mais precoces idades, meia-dúzia de clubes, entre milhares, açambarcam os melhores e deixam a maioria com as sobras? Como é que um clube compete com a formação se provavelmente não consegue manter até à idade sénior nenhum dos melhores que vai tendo ao longo dos anos? É bem conhecido o caso do Brentford, que decidiu acabar com a formação por entender que, devido à concorrência de grandes clubes de Londres, não era capaz de juntar nas camadas jovens jogadores com qualidade suficiente para a equipa principal. Tendo em conta todo este contexto, não me espantaria que outros, até em Portugal, tomassem a mesma decisão. Teria lógica.

A formação em Portugal tem problemas sistémicos que, acredito, vão ter mais desvantagens do que vantagens no futuro, se não forem resolvidos ou, pelo menos, minimizados. Os grandes compram tudo, e cada vez mais cedo, têm escolas de formação em todo o lado, equipas que nunca mais acabam. E assim, a este ritmo de soberba, os clubes pequenos estão condenados. Muitos destes problemas são sistémicos, mas também são de origem moral e ética. Numa altura em que se pedem apoios estatais para os muitos clubes que passam dificuldades devido à pandemia, também cabe a quem manda, a quem tem poder, força e influência, olhar para trás e perceber que os problemas são mais profundos e que as soluções para eles vão muito para lá de subsídios e de alguns milhares de euros.

este belíssimo mote para discussão foi sacado do site do Vasco Samouco