Nunca percebi muito bem que raio de mal te fizemos, futebol português. Sinceramente. Não sei se foi por usarmos Portugal a seguir ao Sporting Clube, mas não acredito que seja por aí, pois basta atentar no nosso palmarés para percebermos o que temos feito pelo nome deste país nas mais diversas modalidades. Não sei se é por termos escolhido a cor verde, o que também seria estranho dadas as cores da nossa bandeira. Não sei se é por termos formado dois jogadores eleitos «melhor do mundo», que te servem de bandeira quando te dá jeito. Não sei se é por, com a nossa constante aposta na formação, evitarmos que a nossa selecção esteja ao nível de uma Finlândia. Não sei, não sei mesmo. Mas que me faz muita confusão, lá isso faz.

Sabes, na minha ingenuidade de criança, estava tudo bem. Fazia das derrotas um drama pessoal, tentando recuperar das mesmas no alcatrão da minha rua. O ser melhor do que os outros em campos onde as balizas eram cubos de pedra e fazê-lo dizendo ser os jogadores do meu clube, com a verde e branca vestida, amenizava a dor. Foi, por isso, chocante, passar a perceber algumas coisas. Cresci na década de 80, estás a ver, aquela onde se abriu caminho à afirmação de um clube do norte que trouxe um novo paradigma: para se ganhar, vale tudo. Do mais rasteiro e nojento, leia-se. O que ia vendo, à medida que crescia, atraiçoava o meu conceito de futebol. E obrigava-me a fazer um esforço, para acreditar que esse mesmo futebol pode ser aquele que se nos cola à pele em férias de verão passadas aos pontapés na bola. Em domingos de manhã em que se jogavam dérbis entre pracetas. Em horas passadas a uma máquina de escrever, transportando para o papel de um arcaico jornal de rua as emoções que vivia com os meus amigos.

Sei que isto vai parecer-te estranho, mas, por mais que tentes e continues a tentar, esse continua a ser o meu conceito de futebol. Sem fruta, sem túneis, sem um patético árbitro de bigode a fugir de uma equipa inteira, sem a complacência de uma federação que permite a não convocatória para o mundial daquele que era o nosso capitão para, logo a seguir, lhe abrir as portas de um rival, sem respeito pelos jogadores made in Portugal, sem paineleiros escolhidos a dedo, sem capas de jornais nojentas, ofensivas e mentirosas, sempre com o mesmo alvo. Acredito que, a esta altura do texto, já consigas antecipar o que vou dizer-te, certo? Isso mesmo, não podia ter escolhido melhor clube do que o Sporting Clube de Portugal! O tal que, nos últimos trinta anos, tem sido tão mal tratado e tão desrespeitado pelo país que, orgulhosamente, carrega no nome.

«E porque razão decidiste escrever-me?», perguntas tu, com essa hipocrisia tão tua. Olha, meu triste futebol português, decidi escrever-te porque, no sábado à noite, assisti a mais um episódio que, ao contrário do que defende uma determinada personagem do teu elenco, te torna sujinho, sujinho. Mas o pior estava reservado para os dias seguintes. Então não é que se dá um verdadeiro levantamento nacional, apontando-nos o dedo por estarmos indignados? Então não é que nos dizem para ficarmos calados, porque foi um grande jogo e até fica mal falar de arbitragem (custa-vos pensar no 5-3 e não ver o campo inclinado por terceiros, não custa?). Sim, a hipocrisia atingiu o seu ponto de rebuçado. O problema é que o recheio tem um sabor tão bafiento, que qualquer Leão que se preze o cospe imediatamente.

Tudo isto tem uma explicação, obviamente que tem: o objectivo de transformar-te num futebol disputado a dois. Um azul e um vermelho. E, face a esse objectivo, é um tremendo aborrecimento ter os gajos de verde vivos, entusiasmados e com uma perspectiva de futuro que, para gáudio das gentes que chafurdam na merda que és, ó futebol português, andava arredada do universo leonino. Pior, é um aborrecimento os gajos de verde terem percebido, de uma vez por todas, que estar próximo dos azuis é viver com uma faca espetada nas costas. Estratégia seguinte? Alimentar a ideia de que, nesta nova era, seria fantástica uma reaproximação entre Sporting e Benfica e que dessa reaproximação ficaria o futebol português a ganhar.

Lá está. Ficaria o futebol português a ganhar. Como ficou, no sábado, onde passou quem se queria que passasse. É assim que funcionas, triste futebol português. Importa lá que o árbitro, adepto confesso dos vermelhos, tenha sido uma terceira e forçada escolha. Importa lá que tenham existido dos penaltis, claros, por marcar. Importa lá crucificar o guarda-redes da selecção, a quatro dias de um jogo decisivo, para encapotar a vergonha que se viu (já agora, esse lance nasce de um lançamento mal executado. Sim, sei, tenho que calar-me e dizer «que grande jogo que foi!»). Importa lá que o tal treinador do «limpinho, limpinho», tenha voltado a tentar arranjar merda no final do jogo, procurando pegar-se com o médico do Sporting. Tal como não importou, por exemplo, que esse mesmo clube, a quem, supostamente, devemos juntar-nos, tenha tido o orgulho de exibir uma tacinha de cerveja conquistada da forma que todos sabemos.
Como facilmente perceberás, futebol português, não há margem para reaproximações, muito menos quando isso apenas vem potenciar a vontade dos que vestem de vermelho: conseguir ocupar o lugar nos bastidores que, na maioria das vezes, continua a ser ocupado pelos que vestem de azul.

A tudo isto, meu pestilento futebol português, respondo-te com as imagens dos milhares de Leões que, nesta mesma noite inclinada de sábado, deram uma prova inequívoca da sua força. Para mal dos teus pecados, meu merdas, o chavão «o Sporting está de volta!», deixou de ser claim de uma direcção sem rumo para o clube. Nós estamos mesmo de volta, futebol português! E, imagina tu, o espírito que se vive entre nós, Leões, do presidente ao adepto em missão na Gronelândia, como que nos transporta para aquela década em que cresci. Para aquela década em que, enquanto tu ias ficando cada vez mais nojento, o nosso presidente, João Rocha, comprava, do seu bolso, pitons para as chuteiras dos jogadores e, ele mesmo, ajudava a apertá-las na sola das chuteiras. É, futebol português, voltámos a ter pitons próprios para jogar no lodaçal em que te transformaste. E isso está a deixar-te doente, não está?