Voltámos a ter vários candidatos a ocuparem a cozinha, o que é óptimo sinal. O primeiro a avançar, até por ser o que há mais tempo estava em fila de espera, é o Liedhold, trazendo uma belíssima receita que, acredito, mexerá com muitos estados de alma (até porque recupera a questão: devemos, ou não, venerar os nossos jogadores  e criar os nossos ídolos?)

OS MEUS HERÓIS, by Liedhold
No dia 1 de Junho de 2006 o Sporting completou o seu primeiro centenário. Nesse dia, à falta de uma grande festa popular para celebração desse dia histórico, decidi ir ali para os lados da Póvoa de St. Adrião a um evento de stock-off do fornecedor de equipamentos desportivos do clube àquela data.  Lá chegados, deparei-me com uma autêntica feira a verde-e-branco onde podia encontrar tudo o que tivesse os símbolos do SCP e da Reebok. Quando fui para comprar o principal artigo do merchandising do clube, já os outros fanáticos tinham surripiado todos os tamanhos L. Naquela temporada de 2005/2006 a camisola comemorativa do centenário procurava replicar o formato da camisola usada pelos Heróis de Antuérpia de 1964. Para meu descontentamento, tive que comprar uma camisola XL e, daí em diante, poucas vezes lhe dei uso.

Quando era miúdo, os meus heróis não eram de Antuérpia. Nem tão pouco eram heróis do futebol sequer. No meu imaginário de criança, o meu herói era de Los Angeles e chama-se Carlos Lopes, o Carlocas, como eu lhe chamava. Nunca consegui levar a sério aqueles que nasceram nos primórdios da década de 80 e dizem que começaram a ver futebol com 4 e 5 anos e que se lembram do Mundial de 86 e 90. Não consigo conceber que uma criança com 5 ou 6 anos me consiga explicar o que é um fora-de-jogo, mas enfim… O Atletismo, isso sim, parecia-me fácil de perceber: ganha aquele que for mais rápido. E o Carlocas – aquele da camisola verde-e-branca – era sempre o mais rápido! Tal como eu, que corria sozinho à volta da mesa da sala com uma camisola verde-e-branca e dizia que era o Carlocas, do Sporting, dando uma prova insofismável que se pode fazer uma escolha clubística na mais tenra idade com base na paixão.

O tempo passou e, como qualquer outra criança, passei a gostar de futebol. Naqueles anos de 1991, 1992, poucas referências tínhamos para amostra. O meu pai dizia-me que o Sporting tinha jogado e ganho 3-0 e eu perguntava-lhe: “quantos marcou o Cadete?”. Lembro-me dos cromos Marlon Brandão e Douglas com as meias pelos tornozelos, aquelas vitórias na Taça de Honra que se jogavam em jogos de 45 minutos no Restelo com o Estoril e com o Estrela, dos jogos dos juniores no velho Alvalade, e da minha primeira bandeira, claro! Os heróis passaram a ser de Alvalade. Obviamente que a primeira vez que o meu pai me disse que iria conhecer um jogador do Sporting nem dormi! Quando cheguei ao pé dele, disse-lhe “Olá!” e fugi cheio de vergonha. O jogador chama-se Marinho e era defesa-direito naquela época. Mas fosse o Marinho ou qualquer outro, provavelmente a reação teria sido a mesma. Bastava ser jogador do Sporting.

O meu primeiro herói que venerei no futebol chama-se Luís Figo. Acompanhei a ascensão dele desde o Mundial de juniores em Lisboa, a transição dos juniores para a equipa principal, o “cai-e-puxa-a-meia” quando ainda não tinha cabedal para passar pelos laterais, e a conquista da taça em 1995 no primeiro troféu que me lembro de assistir ao vivo o meu clube vencer, já eu era um adolescente. Sempre acalentei a esperança de ele terminar a carreira em Alvalade, como se de uma história de amor interrompida se tratasse mas que teria um final feliz. Ao Figo seguiu-se um prodígio chamado Simão Sabrosa, que contrariamente ao Pastilhas, não sentiu dores de crescimento a entrar na equipa principal e jogava sozinho no Sporting de Jozic. Depois veio um Ricardo Quaresma que fazia sonhar e passado dois anos já o Barça o tinha levado, conforme tinha feito com os dois anteriores.

O dia em que o Simão assinou pelo Benfica foi o dia em que deixei de venerar os heróis. Quando o Quaresma veio para o Porto já não me sentia inconformado. Mais recentemente senti-me enganado pelo maçã podre, mas com Izmailov e Liedson já não senti tanto o peso da faca nas costas. Antes, o Figo já acabara a carreira no Inter e hoje a minha esperança em que o Cristiano volte a casa para vestir a verde-e-branca de novo não passa de uma pequena utopia. 

Dito isto, e uma vez que um adepto precisa de ter heróis, não me restou senão olhar para a história.

Ontem o presidente decidiu reunir os jogadores vencedores da Taça dos Vencedores das Taças. Uma pequena tertúlia para que os jogadores revivessem a epopeia da conquista, que juntou 8 dos jogadores ainda vivos. E eu fui. Sozinho. Poucas pessoas da minha geração assistiam às tiradas de um grupo de velhotes que parecia que a seguir iam jogar à sueca em dois grupos. Um Ribeiro Cristóvão a contas histórias da bomba de gasolina da Shell na 2ª circular onde um presidente do Sporting dos anos 60 não deixava os funcionários do clube por gasoil, um Figueiredo que é teimoso e ainda circula com o seu táxi aí pelas ruas da capital, um Pérides a falar a medo e que ainda parecia estar cheio de medo de apanhar do Carvalho e do José Carlos por ter driblado dentro da nossa área e perdido a bola, ou um Pedro Gomes que dizia que “já os mamámos” no final de cada eliminatória.

Enquanto assistia ao relato das desventuras que os obrigaram a disputar por três vezes jogos de desempate de eliminatória em campo neutro, pensava nos Wolfswinkel’s desta vida que trocaram um SCP por um Norwich (!!). Eu sei que o verde do dinheiro puxa hoje mais pelos jogadores do que o verde por trás do Rampante. Mas ainda assim, olho à minha volta e ainda vejo um Giggs no United, um Puyol no Barça, um Gerrard no Liverpool e um Totti na  Roma. Será que os jogadores hoje não percebem que a sua carreira se torna tanto maior quão se permanecerem fiéis a um clube?

No fim da tertúlia peguei naquela camisola do centenário e cheguei ao pé do Mário Lino e pedi-lhe que a autografasse. Este ritual seguiu curso entre os seus companheiros de jornada, enquanto o presidente olhava para a cena. Todos eles me pareceram surpreendidos mas acederam ao meu pedido com um sorriso. Depois, dobrei a camisola, guardei-a e fugi quase tão rapidamente como daquela vez com o Marinho.

No caminho para o metro dei por mim a pensar: “Porra pah! Faltou-me o José Carlos”. Não sei se voltarei a cruzar-me com ele. Pode ser que o apanhe numa qualquer cerimónia de entrega dos leões de prata. Mas depois de ontem, dei por mim a descobrir os meus heróis e que prazer teria tido em ouvir as histórias dos Violinos ou do seu quinteto percussor (Mourão, Pireza, Peyroteo, Soeiro e Cruz) nos tempos do futebol a preto-a-branco! 

 

*às quartas, a cozinha da Tasca abre-se a todos os que a frequentam. Para te candidatares a servir estes Leões, basta estares preparado para as palmas ou para as cuspidelas. E enviares um e-mail com o teu texto para [email protected]