A noite vai longa. Na Tasca já se vai esgotando o tilintar dos copos de tinto e dos cálices de mil-nove-e-vinte. A inevitabilidade dos próximos movimentos, já mecanizados pelo hábito — pegar no chapéu, colocar na cabeça, pegar no copo, emborcar, levantar da cadeira, nota para cima da mesa, toque no chapéu na direcção do balcão, sair para a rua — provocam em mim uma inusitada preguiça. Há dias que queremos que acabem depressa. Mas este, estranhamente, não é um desses dias.

Coloco a mão sobre o chapéu pousado em cima da mesa. Este patético protelar do inevitável dá-me para procurar os melhores eufemismos para “velho” e “gasto”. Não encontro grandes tiradas cheias de lirismo, não estou suficientemente sóbrio ou embriagado. Encontro apenas recordações de tardes magníficas sob o sol de Alvalade, com as ideias à sombra deste mesmo chapéu. Ele que tantas vezes, nessas tardes, subiu pelo ar, impulsionado pelo entusiasmo de toda uma multidão cheia de orgulho e de esperança. Pego no chapéu e coloco-o sobre a cabeça enquanto, lá por dentro dela, vou desembrulhando de um qualquer recanto da memória a sensação reconfortante do sol de Alvalade a aquecer-me a face. Em certas noites de frio, a memória desse calor de antigamente é a única coisa que me aquece a alma. Era suposto sentir saudades desse calor. Mas esta, estranhamente, não é uma dessas noites. Olho para o copo à minha frente. Ainda está a meio… Já está a meio… Raios partam a melancolia! Isto não pode acabar assim! Levanto-me e dirijo-me, alto e bom som, aos que por cá, como eu, ainda resistem ao fim do dia:

«Meus caros, mas que imenso privilégio podermos contar com dois jogadores de nível mundial como são Nani e Rui Patrício, num dos melhores momentos das suas carreiras. E que orgulho por terem sido formados no nosso Sporting! Quem encheu hoje o campo foi um jogador do Sporting, de seu nome João Mário. Segurança, confiança e força desconcertantes para um jogador daquela idade. Mais do que ser uma grande promessa, é cada vez mais uma certeza e uma garantia nesta equipa de Marco Silva. Jonathan é sem dúvida um reforço de grande qualidade. Mas o reforço cujas exibições mais me têm fascinado é alguém que até já cá estava. André Carrillo. Que diferença desde que o treinador do ano passado o retirou de campo, bruscamente e ingloriamente… Se o Rui é o capitão e o Nani a figura, o Adrien é o líder incontestável desta equipa. Que bom que é vê-lo de Leão Rampante ao peito, personificando o exemplo máximo dos nossos lemas — Esforço, Dedicação, Devoção — postos em prática. E o Paulo Oliveira. Foi apenas um vislumbre, mas vimos já a solidez que poderá ter a nossa defesa, talvez na segunda volta do campeonato. Será a base estável para partirmos rumo à conquista da Glória que tanto desejamos e merecemos. Com tudo isto, ainda há quem queira que não festejemos?!?»

Pego no copo, apresento-o ao auditório…
«Tu tens mas é o copo meio cheio…», ironiza com ar de gozo um sujeito sentado na mesa do canto.
Sorrio.
«Pois é, tem toda a razão, amigo! Obrigado. …Oh Cherba, atesta aí faz’favor, para o caminho…»

Texto escrito por Leão de Trafalgar 

*às quartas, a cozinha da Tasca abre-se a todos os que a frequentam. Para te candidatares a servir estes Leões, basta estares preparado para as palmas ou para as cuspidelas. E enviares um e-mail com o teu texto para [email protected] (este texto é publicado hoje para que não perca actualidade)