Não me recordo da primeira vez que vi uma bola. Ou do primeiro chuto numa. Mas lembro-me, com pormenor, da forma como a bola era companheira inseparável da maioria dos putos da minha idade. Fosse na escola, na praceta ou no terraço onde cada bomba não defendida acabava a acertar num dos carros que passava lá em baixo, o que importava era jogar à bola. Se fosse de “catchú”, como um gajo dizia com a sapiência dos sete ou oito anos, fosse de borracha com o penteado duvidoso do He-Man a justificar o porquê de só se dever jogar com ela na praia em vez de rebentá-la contra um portão de garagem (e havia lá melhores balizas do que essas?!?), qualquer redonda justificava as joelheiras de napa a tapar buracos nas calças ou os joelhos com feridas sobre feridas ainda em tratamento. «Vizinha, o xxx pode vir para a rua?», berrava um gajo com a boca colada ao interlocutor das campainhas, fosse a que horas fosse. Não importava de que clube éramos, queríamos era jogar à bola! Sonhávamos era em repetir, com a camisola do nosso clube, aquilo que o Maradona tinha feito no México. Ser jogador de futebol era isso: festejar num relvado como fazíamos na rua. E, vá lá, ser conhecido na escola e, mesmo usando penteados manhosos para imitar os ídolos, sacar as miúdas mais giras.

Quando, hoje, me lembro disto e de outros pormenores, sinto uma epécie de aperto no estômago. Quando me lembro do meu ar, ao longo dos primeiros jogos em que fui a Alvalade e a outros estádios, ver o Sporting, a olhar incrédulo para quem chamava nomes ao árbitro… aquilo era futebol. Eu queria era ver os rapazes de verde e branco a marcar mais do que os outros. Eu queria era aprender fintas. Eu queria era ficar com ainda mais vontade de jogar à bola. A forma como tudo isto mudou, entristece-me. E moldou a minha personalidade futebolística, não sei se para bem ou se para mal. Sei que, hoje, eu não olho para um jornal como olhava há 25 ou 30 anos. E as saudades que eu já tenho de, em plenas férias de verão, dizer aos meus amigos lampiões que um qualquer dos nossos reforços tinha marcado meia dúzia de golos nos treinos e, depois, ficar a sonhar com o que ia acontecer quando a época começasse. Tantos barretes que levei e que levámos, mas isso pouco importava. Eu queria lá saber se, no dia em que o Sporting foi ao Barreiro, para a Taça, defrontar o Barreirense no velhinho Estádio D. Manuel de Melo (o que eu fiquei contente de, depois, me equipar nos mesmos balneários onde tinham estado o Bala, o Cherba, o Figo, o Valckx…), que a nossa arma secreta fosse um tal de Amaral. Eram todos bons! Eram todos do Sporting (até isso mudou, vendo-se a facilidade com que assobiamos quem veste a camisola Rampante)!

A última semana, então, tem-me obrigado a viver com demasiada intensidade este novo futebol que, constantemente, tenta sobrepor-se ao verdadeiro. Aquele último lance, na Alemanha, é o exemplo máximo daquilo em que o meu desporto preferido se tornou, com a agravante de ser um ex-jogador de futebol que faz parte da história dos craques, a promover o verdadeiro lodaçal de interesses e de segmentação de forças, de equipas e de países com base no poderio financeiro. Cá dentro, completa-se o ramalhete.

Veja-se a forma como a comunicação social, de forma transversal, empolou as palavras de Bruno de Carvalho, antes da visita ao dragão, para, no rescaldo, ignorar ostensivamente o facto dos quatro mil adeptos do Sporting terem sido encafuados numa zona onde cabem cerca de 2200 (situação que se repetiu com os adeptos do Bilbao, mas, neste caso, já alguns órgãos de comunicação acharam que valia a pena dizer algo).
Veja-se a forma, como essa mesma comunicação social utiliza qualquer erro de um central do Sporting para meia semana de manchetes ou chamadas, tentando descredibilizar os jogadores e quem os escolheu ou, bem vistas as coisas, para camuflar os milhões gastos pelos outros em centrais patéticos que acumulam mais erros do que “os nossos patinhos feios”.
Veja-se a forma como o chico esperto do Jorge Jesus, de forma a justificar a miserável saga europeia (não era ele que queria limpar a Champs?) que vai fazendo, termina o jogo no Mónaco, onde apresentou uma equipa totalmente descansada por ter folgado na visita à Covilhã, a contornar as suas responsabilidades falando do Sporting e de como os clubes portugueses são prejudicados. E, obviamente, foi isso que se tornou no mais importante.
Veja-se o joguinho de bastidores que pode conduzir Luís Duque à presidência da Liga. Já nem vou falar da falta de carácter do boneco da Michelin, que tão gordo e dobrando-se tanto acabará feito numa bola. Vou antes, sublinhar o que estava bem preparado: o Sporting era eliminado no dragão e, logo a seguir, saltava o Duque do meio das nádegas azul e vermelha. Sim, porque a verdade desportiva desta gente apregoa-se com apertos de mão e parcerias quando isso se torna conveniente.

Ora inconveniente, mesmo, é este Sporting. O Sporting que, há coisa de dois ou três anos, fazia falta ao futebol português. O Sporting que, agora, ameaça fazer abanar, em demasia, as estacas podres e bafientas em que esse mesmo futebol assenta. O Sporting que tem ideias e que as defende, que quer estar à margem dos compadrios, que coloca em risco as políticas despesistas dos outros dois clubes grandes (onde já se viu adeptos do fcp questionarem o relatório e contas apresentado pelo bufas?). O Sporting que promove o fazer mais com menos, deixando muito empresário e dirigente desportivo com os tomates enlatados. E, caraças, o Sporting que joga à bola! Espera, eu corrijo. O Sporting que joga à bola como nenhum outro grande joga, neste momento.

É isto que todos nós devíamos perceber: que o puto ou a catraia que ainda vive dentro de nós, deve continuar a ir ao estádio cheio de vontade de ir ver a bola, mas deve fazer-se acompanhar pelo adulto que percebeu que essa mesma bola rola num emaranhado de interesses. Pelo adulto que percebeu que é adepto e apaixonado por um clube que surge como empecilho no caminho desses interesses. Pelo adulto que, mesmo a contragosto, tem que assumir o seu papel de Leão de batalha numa defesa acérrima do seu Sporting. Afinal, isto já não é um jogo que se disputa, unicamente, sobre a relva dos estádios. E, também por isso, é tão importante que, amanhã, sejamos capazes de encher o nosso e agradecer aos nossos tudo o que vão fazendo para não perdermos aquele ar fascinado, quando olhamos para uma bola.