Quando era puto, mesmo puto, o meu pai levava-me à bola. Por mais que isso lhe custasse ver mal e porcamente o jogo, ele fazia-o. Ir a Alvalade nesse tempo era outra coisa, pelo menos para mim era. Nos anos 80, ir à bola era especial. E não vos conto as horas que perdia nos dias anteriores a sonhar com o estádio cheio, os golos dos meus ídolos, as massas a vibrar naquele estádio. Passados mais de 30 anos, devolvi parte do que me deram. Levei eu o meu pai à bola.

Com quase 80 anos, o meu pai é dos tais que foram uma vez ao novo estádio para ver como era e não mais regressou. Embora nunca o confesse, o Alvalade dele será sempre o outro e não consegue ver neste, apesar de toda a modernidade e conforto, a “casa” do Sportinguismo. “É igual ao outros todos” diz-me ele… “não tem cheiro a história, nem a sócios”. Eu entendo o que diz, mas ao contrário dele eu quero apaixonar-me por este estádio….e fazer dele a minha “casa”.

Uma segunda-feira à noite pode ser muito complicada para um adulto com filhos, mas é igual ao litro para um reformado. Aos incessantes desafios para ir ver um jogo comigo durante anos, o meu pai aceitou vir ao Sporting-Penafiel, disse ele “não quero confusões…farto de disso estou eu”…e o jogo prometia uma noite calma e sobretudo uma partida previsível. 8 minutos e já nos tínhamos levantado duas vezes. Devo dizer que o meu pai é um fã incondicional do Slimani, “avançados destes são raros filho” e o Argelino retribui a admiração in loco, deu um sorriso ao meu pai.

Depois da alegria e promessa de goleada futura, a expulsão. Eu protesto, insulto o árbitro, o meu pai manda-me sentar “não sejas parvo pá! Foi expulso e bem expulso”. Sentei-me e expliquei-lhe que me pareceu que o Tobias ainda tinha tocado na bola, ele riu-se e disse-me que devia usar os óculos que comprei e nunca ponho. Golo do Penafiel…”pois…” disse ele. “A ganhar 2-0 para que é que o puto arriscou tanto?!” foi a reacção do meu pai e devo dizer que nos momentos a seguir debatemos taco-a-taco se o Tobias era inexperiente ou será sempre impetuoso neste tipo de lances. O meu pai defende que o Pepe no final da carreira e mesmo no Real Madrid nunca ficou “experiente”…eu defendo que até o maior caceteiro, com os anos, refina a porrada e evita estas expulsões. Concordámos em encerrar a discussão até porque o Penafiel acabava de empatar o jogo.

Por mim, o Marco já devia ter mexido na equipa, o meu pai foi aos arames comigo. “F&da-se, o que queres que o homem faça?! Que defenda o resultado de 2-1 com 1 a menos aos 15 minutos?! Tu vês o Penafiel a atacar? Então porque tem de meter um central?” O sentido táctico do meu pai foi sempre muito prático e muito ofensivo, ele nunca se rendeu às lógicas Mourinhianas que imperam no futebol moderno…aquilo a que nós chamamos de risco, o meu pai diz que é “tomates”….”quem tem medo de jogar desenha tácticas”…eu entendo o que ele diz, mas confesso que duvido do sucesso da sua visão, tal como adoraria ter Bielsa no meu banco, mas desconfio que durasse seis meses no Sporting.

Intervalo. Vamos para os túneis…”um café para arrebitar, tu não queres um?”  Eu olho para ele e por momentos recuei três décadas e à volta de uma roulote a mesma frase mas com uma sandes de courato na oferta. Ele sabia que eu odiava, mas ver a minha resposta divertia-o…a sorte é que com a idade dele a sandes de orelha já não consta da lista de coisas saudáveis que pode comer…mas o sacana do velho trocou uma piada pela outra, ele sabe que eu não bebo café…

De volta ao jogo, eu entro desconfiado e o meu pai pergunta-me “tás nervoso?” Eu digo-lhe “É importante pá…o Braga perdeu…” ele respondeu-me “tu és como aqueles” apontou para o relvado “…enervam-se com pouco, estamos a lutar pelo 3º certo?” Eu encaixei aquela com dificuldade, mas o jogo tratou de me livrar de maiores apuros emocionais. Golo de Nani. O meu pai desta vez levanta-se também. “Sabes qual é a diferença entre um bom jogador e um mau?” Eu sei a resposta, já ouvi aquela durante o tempo em que eu jogava umas 100 vezes…mas deixei-o falar “Um bom jogador sente o jogo e sai da posição, vai defender ou atacar onde é preciso e não onde o treinador meteu o pino.” Nani tinha marcado o golo, fora de posição, o que leva o meu pai sempre ao nirvana absoluto…eu lembrei-me do André Martins e pensei que alguém devia juntar o meu pai com o jogador do Sporting para uma conversa e uns calduços como eu levei.

O árbitro deu show no final da partida. Eu regozijei com as expulsões e lances de golo finais, o “senhor desporto” meu pai ficou sentado, para ele o jogo já tinha acabado…dizia-me depois da segunda expulsão “estes gajos não têm sequer classe para serem corruptos, são é mesmo uma grande merda”. Na noite inteira concordámos nesse ponto. O jogo terminava mesmo e fico a ver as pessoas a abandonar o estádio, o meu pai também, faço-o da mesma maneira que ele sempre fez, aquele é o nosso momento de “templo”…por momentos quase que pude ler alguma admiração pela estrutura…mas um “cadeiras às corzinhas…nunca hei de entender isto” retirava-me da ilusão. Não respondi, nem comentei, a última vez que falámos nas cores das cadeiras do estádio a conversa não tinha corrido muito bem e quis deixar a coisa por aí.

Abandonamos o estádio e dou boleia ao meu pai até casa. Eu quis falar de bola durante a viagem. Ele não. “Chega…quero falar doutras coisas…a bola ficou em Alvalade”. Deixo-o em casa e ele devolve-me o cachecol que lhe tinha emprestado…”não queres ficar com esse, eu tenho outros” disse-lhe…”não leva, não me faz falta…um leão com 80 anos não precisa de cachecóis”…mas depois pensou e disse “dá cá isso…vou fazer uma partida à tua mãe”. A piada do bêbado…ela cai sempre…sacana do velho.

 

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca