Há um detalhe que caminha lado a lado, por vezes de mão dada, com a coragem: a loucura. É preciso ter uma vertigem muito grande pelo abismo para se ser um tipo corajoso.

Nesta altura lembro-me de uma história com a Itália no Euro 2000.
Nas meias-finais, o jogo com a Holanda terminou num nulo. A presença na final, por isso, havia de se decidir da marcação das grandes penalidades. Era um daqueles momentos intensos, cheios, grossos e pesados. Um momento que acelera o coração. Os jogadores italianos estavam no centro do relvado, naquele ritual de quem se prepara para bater um penálti, quando Di Baggio teve um assomo de honestidade: «Francesco, tenho medo», atirou em direção a Totti. «A quem o dizes, já viste o tamanho daquele ali?», devolveu-lhe Totti, enquanto apontava para Van der Saar. «Obrigado, acabaste de me deixar mais tranquilo», reagiu Di Biagio. Foi nessa altura que Totti se saiu com uma frase imortal. « Nun te preoccupá, mo je faccio er cucchiaio.»

O cucchiaio não é mais do que, na linguagem do futebol português, uma panenka. No fundo Totti disse-lhe qualquer coisa como «não te preocupes, vou fazer-lhe a panenka.»  Ao lado deles estava Maldini, homem experiente, capitão da seleção, que não queria acreditar no que ouvira. «Estás louco? Isto é uma meia-final do Europeu», disse-lhe. Totti não sentiu o peso da acusação. «Sim, sim, vou fazer-lhe a panenka.»
E fez. Caminhou em direção à baliza, agarrou a bola, encostou-a ao peito e colocou-a no chão. Depois fez uma panenka. Mas não foi uma qualquer: foi uma panenka linda, perfeitinha, admirável. Uma panenka com a velocidade, a intensidade e a ameaça certas. Mo je faccio er cucchiaio colou-se a Totti como uma marca de água.

O italiano é uma figura pitoresca, homem de muitos pontapés na gramática e frases parvas como «vocês sabem que não falo inglês» quando alguém lhe atirou um «carpe diem». É isso tudo sim senhor, mas também é esperto, e se calhar por isso é que lançou dois livros de anedotas: «Todas as piadas sobre Totti – contadas por mim», volume I e II. Mais tarde lançou um terceiro livro, desta vez sério, uma biografia. E o que é que lhe chamou? Precisamente. Mo je faccio er cucchiaio. É uma frase que define a coragem de um homem e que a mim me lembra Jorge Jesus.

Vamos lá ser sérios, só desta vez, prometo ser um caso sem exemplo: independentemente de ter sido ou não empurrado para fora do Benfica, independentemente de se ter sentido ou não pouco valorizado no Benfica, independentemente de o Sporting lhe ter oferecido ou não melhores condições. Independentemente de tudo isso, foi um passo de enorme risco. No fundo não foi só trocar um rival por outro, dentro da mesma cidade e do mesmo tempo. Foi acima de tudo aceitar começar do zero. Tudo o que fez, tudo o que conquistou, tudo o que ganhou no Benfica já faz parte do passado. Está lá atrás, no reservatório da memória. Exige-se a Jorge Jesus que faça exatamente o mesmo outra vez. Como se o que conquistou não tivesse existido. Vai estar à prova todos os dias, todos os jogos e em todas as provas.

Podia ser diferente, claro que sim. Bastava que tivesse ficado no Benfica ou que tivesse aceitado emigrar para Itália e treinar o Milan. Ou até que se dispusesse a parar um ano. Mas não, Jorge Jesus tomou a decisão mais arriscada. Assinou pelo Sporting e colocou-se no olho do furacão: tudo o que fizer vai ser escrutinado e as exigências são enormes. Para ele vai tudo começar do zero outra vez: não o consigo dizer de outra forma. Tem de ganhar, como se nunca tivesse ganhado nada. As expetativas são enormes.

Há mais do que os pontapés na língua a ligar Jorge Jesus e Totti, portanto. Há a coragem: é preciso bravura para tomar uma decisão destas. O que fizer vai definir a carreira dele. As qualidades técnicas de Jorge Jesus são óbvias e já escrevi sobre elas aqui. O que quero destacar agora é este temperamento, esta ousadia, esta tenacidade. Os sportinguistas podem ficar por isso tranquilos. Por muitas dúvidas que tenham, há uma coisa que não podem questionar: a valentia do treinador. É seguramente um homem corajoso, um destemido, um líder. À sua maneira, acabou de fazer um cucchiaio num daqueles momentos intensos, cheios, grossos e pesados. Uma vénia, portanto.

 

Texto de Sérgio Pereira, in Maisfutebol