Às vezes é preciso ir para longe para entender o que está mesmo à nossa frente. Sentei-me numa esplanada, bom na verdade eram apenas 6 ou 7 cadeiras à porta de um café. Pedi uma imperial da melhor forma que consegui. Na atrapalhação de um francês de algibeira com sotaque meio espanholado, o senhor que eu julgava gaulês de gema, manda-me à fava e cumprimenta-me com um belo “deve pensar que passa por estrangeiro…”

Manuel Sorvinha, ou Survina…o sotaque beirão-provençal despistou-me. “França, desde os 12 anos amigo” diz-me levantando a cabeça e olhando para cima como que vendo os anos passar nas nuvens do céu. Abano a cabeça assentindo o implícito lapso de tempo escorrido até ao presente. Pergunta-me o Manuel de onde venho. Lisboa. “Ah…ninguém é de Lisboa companheiro. Aquilo é tudo gente que vem de todo o lado e acaba ali”. De certa forma compreendo o que diz, embora certas comunidades de Alfama, Mouraria e afins não me pareçam encaixar no compêndio demográfico do nosso emigrante.

Depois de 2 ou 3 clientes atendidos com “vin” que eu não recomendaria, vem com redobrada energia para prosseguir o seu, o melhor, o meu reconhecimento. Olho para um puto que acaba de entrar com a camisa branca personalizada nas costas com o nome Gignac. “Sabe, aqui toda a gente é do Marselha, o Olympique…mas desde o tempo do Tapis que não os suporto”…mais ou menos como o Porto em Portugal digo-lhe, mas a observação caiu mal ao meu comparsa. Muito mal. Descobri da forma mais rápida que dizer as verdades a um afável dono de café perdido no meio do sul da França…pode dar direito a ter de ir às caves conhecer “a sala de jogos”. Numa parede cheia de cachecóis estavam uns bom 20 do porto e quase todos os adversários europeus que o clube enfrentou na Europa. Manuel fez questão de exibir a sua memória fazendo corresponder cada cachecol à data do confronto.

“Então e dos grandes rivais?” fiz o esforço para ser diplomático na pergunta. “Já vi tudo, o meu amigo é lampião”. Explico-lhe o grau de ofensa que tinha cometido…e perante a exclusão de partes, olha para mim e levantado um sobrolho “Ó diabos, temos lagarto!” Respondi-lhe “Nunca junte diabos e lagartos na mesma frase…” mas confirmei que na sua sala de homenagem tripeira tinha entrado um leão. Para meu espanto mostrou-se simpático e até interessado em continuar a sua explanação sobre o que estado actual do futebol português. Ouvi a teoria toda, não era nova, já todos levámos com a “ariana missão do Fuhrer Pinto da Costa”…com a tese da superioridade das gentes do norte, do trabalho e garra, do Pedroto, Artur Jorge, Bobby Robson e Fernando Santos, do aproveitamento do que os outros não dão valor.

Dei sinais evidentes que a concepção estava sinceramente desactualizada e inseri na conversa um ou outro Adrian, administradores da SAD com participações em passes de jogadores e claro…as Doyens e a repartições de poder nas barbas do Fuhrer. O coitado do Manuel entendeu que a bisca afinal era poker e mudou o chip de conversação. Talvez para fazer um reset no diálogo serviu-me “do bom” e fez-me a pergunta para “um milhão de dólares”:

“E o Bruno de Carvalho…você não acha que exagera, que qualquer diz o homem não acaba com o clube?” Passei os seguintes 10 minutos e dois copos a fazer uma mini-campanha leonina, ou se quiserem uma AG do Sporting condensada. O Manuel sorriu e serviu-me do “ainda melhor que o outro”. Para minha enorme surpresa mostra-me no telemóvel uma fotografia da neta, uma pequena habitante de Bordéus que elegeu o clube do pai. Vestida com a verde e branca, a miúda “puxou ao meu genro que é lagarto ferrenho e venceu a luta” pela afiliação clubística da Dorothy.

Manuel perdeu a luta, mas não de forma total, afinal “não tinha acabado com um lampião na família, isso é que não…”. Ainda sugeriu um “esqueça os outros, este é do melhor”, mas eu expliquei-lhe que tinha um carro com mais 2 lagartos para levar até à praia dali a umas horas, ao que levei um “bien” audível e assertivo acompanhado pelo arrumar dos copos.

Voltámos ao café. Fiz questão de regressar à “esplanada”. Manuel ficou a tratar da vida dele. Entrei e fiz intenção de pagar as cervejas, como já não nasci ontem sabia que mencionar os copos de vinho seria ofensa, mas estendi a nota. Manuel, meio sério, olhou para o meu gesto e rosnou “é o primeiro lagarto que não paga cerveja, mas pela conversa e…por não ser lampião…é por conta daqui do portista.” Agradeci e respondi-lhe “Ah vai-me deixar levar assim o Rui Jorge sem pagar?”…como qualquer nortenho o melhor sinal de apreço é a ofensa e levei com uma caralhada de meia-noite…seguida com uma recomendação de que o melhor seria chegar a horas para levar a malta à praia, que “os lagartos não gostam de atrasos”. Ri-me e agradeci outra vez.

Já estava no carro e quando passei pelo café, levantei o braço a acenar e o Manuel também, mas o aceno era mais veemente que o normal, entendi que queria dizer mais alguma coisa e baixei o vidro. Passou-me uma garrafa do “esqueça os outros este é do melhor” para o assento e com o ar mais contente do mundo diz-me “leve lá e como um de nós vai ser campeão….já tem aqui qualquer coisa para comemorar como deve ser”. Barafustei encenando qualquer parecida com espanto pela oferta…mas depois ainda fui capaz de ripostar “olhe, vou beber com o Bruno à sua saúde. Manuel aproximou-se ainda mais da porta e já quase com a cabeça no interior disse-me em voz baixa “sabe, nenhum portista lhe vai dizer isto, mas sem saber o que vai acontecer no Sporting, quem me dera eu que o “meu presidente” tivesse um sucessor como o vosso…aquilo vai ou racha. No meu porto ia e ia muito bem, no vosso clube tenho as minha dúvidas….sempre foi mais galos que capoeira.

De caminho para a praia dei-me conta do que acabara de ouvir e do que é o meu clube aos olhos de outros. Um clube de conversa, de promessas, de morais e nobreza, de múltiplas personalidades, notáveis e “quintas”…um clube que se devora por dentro por ninharias e “estatuto”. Um clube que o Manuel prevê que regresse brevemente ao seu habitual depois de um tumulto qualquer de maus resultados e uma purga brazonada. No Sporting é cool e hipster dizer mal dos dirigentes…gente que o Manuel correria à stickada do bar, gente que não “é” de nada sem ser o seu próprio ego.

“Ó Manuel peço-lhe já desculpa, mas se eu for campeão não dedico a pomada só a si, vou estender a dedicatória a todos os cultos e sagazes antis que se levantam no início da época. Bem hajam palermas.”

 

*às quartas, o Leão de Plástico passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca