Agora que se aconselha alguma acalmia face ao turbilhão de nomes, contratações e sorteios dos últimos dias, nada melhor do que uma leitura em tons de verde e branco. A rubrica “outros rugidos” costuma destacar o que se vai escrevendo noutros espaços da blogosfera leonina, mas, desta vez, o destaque vai para uma compilação de crónicas em formato de livro.

Chama-se «A Ganhar ou a Perder – Um ano de Sporting» e é um acompanhamento de um ano de vida sportinguista (o da última época) em forma de 30 crónicas que, tendo como mote um jogo específico, pretendem ser também uma viagem pela memória e pelos traços que fazem de nós sportinguistas e do Sporting, Sporting. O extra é ser escrito por um amigo meu, o Mário, Sportinguista daqueles à maneira, fã de jogadores de pé esquerdo e sempre em busca de uma forma de não criticar os nossos craques, mesmo quando eles merecem.

O livro vai ser apresentado este domingo, às 18h, na Casa dos Amigos do Minho, em Lisboa, e chegará às livrarias de todo o país ao longo da próxima semana (infos no site da editora Paquiderme), sendo que, para abrir o apetite, vos deixo um dos capítulos da obra em causa.

 

COMUNICAÇÃO INSTANTÂNEA

Quando a internet era bicho desconhecido e o fax o amanhã que canta das tecnologias de comunicação, quanto tempo demorei a saber que Balakov tinha assinado pelo Sporting? Tempo nenhum. Comunicação instantânea. Num momento o génio búlgaro não existia e no seguinte estava a escaqueirar defesas adversárias, a marcar livres com precisão matemática, a isolar o Juskowiak, o Iordanov e o Cadete para que nada lhes faltasse em frente à baliza.

Quanto tempo esperei para con!rmar que Nani estava mesmo de regresso a casa, ao seu Sporting, sete anos depois? Uma eternidade. Um sofrimento interminável. Na era em que tudo seguimos em tempo real, com o mundo escancarado nos ecrãs de tamanhos variados que nos rodeiam a toda a hora, o tempo é realmente relativo. Começou como mero rumor que logo desmentimos para nossa própria segurança – o sportinguista é previdente, é um romântico realista: queremos muito que nos aconteça o bem, sonhamos com ele, mas polvilhamos esse optimismo com um cepticismo protector. Que Nani, estrela da selecção nacional, jogador de destaque na história recente do colosso Manchester United e, cereja no topo do bolo, um dos nossos, voltasse a Alvalade parecia bom demais para ser verdade. Mas que fazer com aquele «e se…» que não parava de desenhar um ponto de interrogação na nossa consciência?

19 de Agosto. Acordamos com notícias que dão como mais certas as notícias quase con!rmadas da noite anterior. Corremos para os iphones e androids e telemóveis e portáteis e o raio que os parta a todos. Um frenesim de dedos a correr os ecrãs tácteis, de indicadores a teclarem o F5 que actualiza as páginas online dos jornais desportivos e dos outros. Ah, a ansiedade, a esperança que cresce quando uma diz que está tudo confirmado. Oh, a desilusão quando outra garante que, afinal, não: «Nani recusou o Sporting» – foi um sonho bonito que se esfumou. A irritação que provoca este bombardear constante e contraditório, ao minuto, mas sempre anunciado como certeza.

O vírus estava inoculado e o sportinguista previdente queria mesmo o impossível, queria o Nani transformado em estrela do campeonato e a liderar o Sporting campeão. Há treino aberto em Alvalade esta tarde, anunciam. Milhares e milhares rejubilam de olhos postos nos computadores e nos telemóveis, porque o treino será a festa da apresentação, não pode ser outra coisa. Há festa cibernética e sorrisos cúmplices nos locais de trabalho, cenário a que se junta rapidamente um outro sinal a assegurar que sim, o Sporting 2014/2015 será o Sporting do regresso do filho pródigo: os benfiquistas e portistas começam a assumir a postura de facto consumado. No seu discurso, Nani é rapidamente despromovido de um dos melhores jogadores portugueses da actualidade para falhanço total num Manchester United já de si muito fraco.

Não pode faltar muito. Mas falta. Afinal Nani ainda está em Manchester, lemos noutro qualquer site. Piedade, pedimos. Poderia a realidade parar de nos manipular desta maneira, tornando grotescamente sôfrega a nossa natural tendência para a sofreguidão? Não, não poderia. O imediatismo dos tempos de Balakov já não existe. Agora, a rapidez é apenas ilusória. O tempo distende-se. Uma hora é uma eternidade. A meio da tarde, extenuados, quase derrotados, tornamo-nos heréticos. Já não se fala de «Nani»: «Mas o gajo vem ou não?», murmura-se sem esconder a irritação, sem conseguir despir a pele que temos hoje, a de seres atormentados por uma ansiedade implacável, incontrolável. A serenidade chegaria por fim, anunciada de viva voz, muito entusiasmada, desde um treino aberto em Alvalade para o mundo. Bruno de Carvalho, presidente do Sporting, confirmava que teríamos Nani. Acabou-se a ansiedade. Acabou?

Dias depois, de novo Alvalade como cenário. O Sporting defronta o Arouca. É a estreia do regressado. Ambiente de festa, prenúncio de goleada. E eu longe em trabalho, sem televisão. O telemóvel está preparado para me dar a informação ao minuto. Amigos em Alvalade estão avisados. Quero estar a par do que se passa, segundo a segundo. Amigos aqui mesmo ao lado, com telemóveis mais poderosos, são interpelados constantemente.

Olho para o meu ecrã mas isso não é suficiente. Quero saber aquilo que já sei. «Com quantos minutos vamos? Quanto está? Estamos a atacar?», pergunto a um pobre coitado ao meu lado (nunca se sabe, um segundo pode fazer a diferença). Não, isto não é o jogo ao vivo, emoção perante os nossos olhos. Não é o jogo pela televisão, emoção ao vivo mediada. Não é a rádio, esse portento inigualável de excitação gritada descontroladamente perante mais um remate que sai a trinta metros de distância da baliza. Isto é ter uma venda nos olhos e julgar que, ainda assim, temos visão panorâmica de insecto.

Entretanto, estamos quase nos noventa minutos e não há golos. Estamos quase nos noventa minutos e nada sabemos. Só vemos letras encavalitadas nos ecrãs a dizerem-nos que o Nani falhou um penalty (tu quoque, Brute, fili mi?). Só olhamos para os minutos a avançarem, 80, 81, 82, e nada a acontecer. «Entrou o Tanaka», informam-me por SMS. O que quer isso dizer, senhores? 88, 89, 90. Nada. Neste momento, um minuto é precisamente o tempo que demora uma galáxia a formar-se. Neste momento, quero que o tempo se suspenda até as altas divindades decidirem que o Sporting não empatará em casa com o Arouca no dia em que Nani regressou a Alvalade.

Um braço erguido no ar lá ao fundo. Dois gajos que se abraçam aqui mais perto. Nada no meu ecrã. F5, F5, F5. Finalmente, um grito que confrma a boa ventura: «Mané!». O Sporting foi salvo nos descontos e eu estou extenuado. Há festejos, abraços, vivas ao Mané e ao Nani que falhou o penalty. E uma frase a ecoar-me na cabeça: «o meu reino por um velho rádio de pilhas».

23 de Agosto de 2014
Sporting 1-0 Arouca
Carlos Mané 90’+3’