«Olha, já perguntaste se há televisão no quarto?»
“Sim, há!”
«Então já dá para vermos o Sporting»

A pergunta era meramente retórica, mas o suficiente para ajudar uma criança de seis anos a abstrair-se da notícia de ter que ficar três dias internada.

“Sou do Sporting”, responde prontamente à enfermeira, já no quarto. “E tu?”
«Tenta adivinhar…»
“És do Sporting?”
«Não»
“És do benfica? Vês, pai… eu disse… Benfica é caca! O que é que eu vou jantar?”

Ouve-se o hino da champions, elogia-se a coreografia, sorrio perante a óptima moldura humana que me é dada a ver. Está quase a começar o mais exigente teste desta nova época, um jogo que pode decidir muito do que serão os próximos meses. Entramos bem, como vem sendo hábito. Esta equipa respira confiança e sabe perfeitamente o que tem a fazer. Vamos enleando os russos no nosso futebol de pé para pé e de movimento constante, mas o primeiro momento de perigo surge de bola parada. Paulo Oliveira vai lá acima e tenta servir Slimani. Depois é Naldo (grande jogatana do rapaz a quem tantos torceram o nariz) que desperdiça um centro de Jefferson. Agora pela direita. João Pereira, Slim, Carrillo… passe do cara… vai, vai… golo! Do Peru para a Costa Rica, perfumando o golo colombiano, ou uma reedição do hit dos Jafumega, o intemporal “latina’america”.

“Vamos marcar mais, pai?”
«Espero que sim. Hoje dava jeito ganharmos 3-0»
“E ser for 5-0?”
«Melhor!»
“E se for mil e oitenta e sete a zero?”
«Isso é impossível…»

Da categoria dos impossíveis surge a defesa de Rui Patrício, parando o penalti de Doumbia. Festeja-se como se fosse um golo, ignorando a presença da enfermeira. Para trás ficavam 20 minutos de futebol de campeões e um espreguiçar dos russos, muito por culpa de um Eremenko e de duas setas, Tosic e Musa. Clubites à parte, estamos a assistir a um grande jogo de futebol. Parada e resposta.

«Passa ao João Mário!», pede a minha filha pela décima vez.
“Mas tu só queres que passem ao João Mário?”
«Ele é um granda jogador, pai! Olha, parece que joga em biquinhos de pés»
(a minha filha percebe mais de futebol do que tantos adultos, penso eu)
«O João Mário pareces tu a jogar, pai»
(a minha filha é tão simpática…)

Mas é mesmo o João, o nosso, que arranca e mete no Slimani para defesa do redes adversário. Lá vai o raio do Musa, uma e outra vez, primeiro para corte imperial de Naldo, depois para remate perigoso.
“O Adrien está a fazer das tripas coração para estar em todo o lado, mas sem o William é mais complicado estancar estas investidas”, passa-me pela cabeça, antes de ficar com um grito de golo atravessado na garganta quando Slimani desperdiça ao segundo poste. Quem não marca arrisca-se a sofrer e o raio do ditado faz questão de virar realidade, quando um passe em profundidade isola Doumbia e empata o marcador a um. Faltam cinco minutos para o intervalo, péssima altura para sofrer um golo.

Sinto que somos mais equipa do que eles, desde logo mais equilibrada. Mas a segunda parte vai ser um verdadeiro teste à nossa personalidade e vai obrigar-nos a um futebol adulto, quase sem falhas. Demoramos cinco minutos a entrar em jogo, mas quando o carrossel volta a funcionar os russos tremem. Slimani… Ruiz… duas oportunidades em outros tantos minutos, antes do ritmo voltar a abrandar. O tempo vai passando, os laterais já não sobem tanto, evitando arriscar dar espaço aos extremos adversários. “Está a começar-se a notar que os russos têm mais jogos nas pernas… Mexe na equipa, mexe na equipa…” E o homem mexe. Entra Aquilani e o futebol estabiliza, sob a batuta da experiência. “Penalti!”. O foda-se fica por dizer, que o local não é apropriado, mas, uma vez mais, somos prejudicados de forma escandalosa, quando um defesa russo rouba a bola a Slimani com o braço.

Faltam 15 minutos e Jesus lança as setas Mané e Gelson. É altura de encostar os russos às cordas e dar-lhes a provar o sabor da nossa formação. Gelson remata e, no seguimento, Carrillo marca. Fora de jogo. Do outro lado, Patrício volta a abafar Doumba. É o último ameaço russo, antes de dez minutos finais onde só dá Sporting. Carrillo já está no meio, totalmente livre atrás de Slimani, com carta branca para alternar com Mané ou com Gelson (tanto tempo esperei para ver o peruano jogar nesta posição, tão grande jogador é este gajo que será uma estupidez não renovar com um puro craque). Magia. Sem margem para virar e quase sem tempo para pensar, Carrillo usa o calcanhar para deixar Slimani de olhos na baliza. O argelino deixa-se contagiar pelo brilhantismo do momento e… Já está! Finalmente o 2-1, loucura colectiva em Alvalade que se alastra ao mundo verde e branco! Último esforço, em busca do terceiro, com aquele a quem já chamaram príncipe a perder a oportunidade de virar o rei deste jogo.

«Pai, agora vamos jogar onde?»
“À Rússia”
«Vamos ganhar outra vez?»
“Acho que somos capazes de ganhar outra vez, sim, mas vai ser um jogo difícil porque a equipa deles também é boa”
(guardo para mim os pensamentos sobre interesses da fifa e afins, que ela tem tempo para levar com esses mata futebol)
«Podemos ir ver?»
“Xiii, não. É muito longe e íamos gastar uma pipa de dinheiro. Mas vemos na televisão, pode ser?”
«Pode… Gosto muito mais de dormir na nossa casa… Pai, quando é que me tiram isto da mão. Não me dá jeito para dormir e espetaram aqui uma agulha e dói-me…»
“Tens que ter paciência porque é isso que leva os medicamentos para te tratares… Tens que ficar boa depressa, para irmos comprar as luvas iguais às do Patrício!”
«Viste o Patrício a defender o penalti? Granda guarda redes!»
Sorrio
«E viste aquele calcanhar do Carrillo?»
“Foi brutal!”
«Eu consigo fazer um calcanhar daqueles, sabias?»
“A sério?!? Quero ver isso quando estiveres boa. Dorme bem, amor”