meszarosEm mil-nove-e-noventa-e-pouco, morava num 11.º andar com os meus pais na Flamenga, paredes meias com a Póvoa de Santo Adrião. No sobe e desce do elevador, o mais normal é encontrar pessoas para falar de tempo, trânsito e resultados de futebol. Numa dessas investidas, um vizinho mete-se com o meu pai. De Mário Rui para Rui Mário, a conversa estende-se para fora do elevador e sai da banalidade. Às tantas, salta a pergunta para o meu pai sobre se é possível arranjar qualquer coisa para o Meszaros, o grande Meszaros. O homem vive em Budapeste, com a mulher (enfermeira) mais os filhos, e aquilo está assim-assim. É a ressaca da queda do muro de Berlim nos países de Leste. Há movimentos e diligências aqui e ali. De repente, Meszaros assume o cargo de treinador do Lourinhanense. A sua mulher trabalha no hospital da Lourinhã e a vida deles ganha um outro élan. Passa-se um ano e o Lourinhanense sobe à 2.ª divisão B. Em Agosto, na altura das férias na Areia Branca, o meu pai pede-me para ir ver se o Meszaros está nas suas sete quintas. Aceito o desafio e lá vou a um treino de pré-época. Quando Meszaros sai a pé do estádio, chamo-o. Mal lhe digo de quem sou filho, salta-lhe uma lágrima. Duas, quatro, oito, infinitas. Enquanto diz repetidamente ‘obrigado ao seu pai’. Pela primeira vez, vejo um homem chorar. E só voltaria a ver uma cena idêntica com o meu pai, no funeral da minha avó, também na Lourinhã.

Afastemo-nos do Oeste e vamos para Lisboa. É dia 11 Abril e peço ajuda ao tal Mário Rui para me emprestar o número de telefone de Meszaros. Há um Vitória-Sporting, no Bonfim, e o guarda-redes húngaro comete a proeza de ser campeão nacional pelos dois clubes, um na 1.ª divisão, outro na 2.ª, ambos com a marca do treinador Allison. Curiosidade do arco da velha: o Meszaros faz anos hoje, dia 11. Que maravilha. Será que ele se lembra de um determinado miúdo que costuma estacionar entre as filas H e Y, nos setores 16 e 18, da superior/lateral sul, perto da boca de entrada que faz pub à Tudor com uma camisa do Sporting, digamos, oficiosa? Será? Hum? Humm? Isso é o que vamos ver

Bom dia, é da casa do Meszaros?
Quem fala?

O meu nome é Rui Miguel Tovar, sou jornalista português e quem me deu este número foi o Mário Rui.
[ouvem-se mais palavras impublicáveis misturadas com os nomes Mário Rui, Rui Tovar e Portugal; é uma salada engraçada, só vos conto]

[atenção, vem aí o Meszaros: Estou?]

Meszaros, tudo bem? Daqui Rui Miguel Tovar.
Olá, tudo bem? [num português desenrascado]

Parabéns, muitos parabéns.
Obrigado, hoje é dia de festa.

Já fez o quê?
O de sempre. Saio sempre de casa de manhã para comprar pão, ler jornais, falar com vizinhos.

E depois?
Fico em casa, gosto de estar aqui. A ver futebol. Vejo tudo, aqui a televisão dá o campeonato inglês, espanhol, italiano, alemão, francês, holandês e português. Há tempos, vi um Belenenses-qualquer coisa, já não me lembro. E, claro, tenho filhos, tenho netos. Eles que venham visitar-me [e ri-se timidamente]

Desses neto, algum vai ser guarda-redes?
Há um, com 12 anos, que gosta de ir à baliza.

E então?
Vamos ver: pode ser bom e pode ser mau. O futuro está aí.

E como é que o Meszaros foi para a baliza?
Fácil, não gostava de correr.

Assim, sem mais nem menos?
Sim, sim. À baliza é que me sentia bem.

Começou com que idade?
Na verdade, 10 anos. Só que a minha data de nascimento foi alterada para dar 12 anos. Só se podia jogar a partir dos 12.

Onde?
No Vasas Budapeste.

Até quando?
Até sair para o Sporting. Na altura, aqui na Hungria era assim: só podíamos sair do país aos 30 anos de idade.

O que ganhou no Vasas?
Um campeonato em 1977 e duas Taças.

E na seleção?
Fui campeão europeu sub-23. Ganhámos à DDR [Meszaros diz RDA à maneira oficial Deutsche Demokratische Republik], 3-0 em casa. Nas meias-finais, eliminámos a USSR nos penáltis.

E o Meszaros defendeu algum?
Dois.

De quem?
Não me lembro.

E do penálti defendido ao Bento, lembra-se?
Ahhhh, isso é diferente. Um Benfica-Sporting é sempre diferente. Muita emoção, muita alegria e muita gente nas bancadas. O Bento era um dos grandes guarda-redes portugueses. Apanhei o Bento e, depois, o Baía. Dois guarda-redes bons, completos.

E o Bento era baixo.
Mesmo. Mas, olha, o Bento saltava mais alto que eu e era muito mais baixo. Agora vê lá.

Conte-me lá o penálti.
Nada de especial, ele atirou e eu defendi. Não há nenhuma ciência para defender penáltis. Digam o que disserem. Às vezes, calha. Outras, não. Aí, defendi.

Aí já é a segunda época do Meszaros no Sporting em 1982-83.
Sim, é isso.

Como foi a primeira?
Maravilhosa. Mal cheguei a Alvalade, tive uma receção calorosa dos jogadores como Manuel Fernandes, Jordão, Eurico, Inácio, José Eduardo, Bastos, Barão, entre outros. Todos sensacionais.

Quem o ajudou mais?
Esmoriz e Nogueira. O Esmoriz morava perto de mim.

Onde?
Em Miraflores.

Miraflores?
Apanhava-o todos os dias de carro e lá íamos para o estádio, pela auto-estrada.

Qual era o carro?
Um Mercedes.

Porquê o Sporting?
Na altura, havia uma lei na Hungria que só possibilitava a saída de jogadores depois dos 30 anos. Quando atingi essa idade, recebi propostas de Alemanha, Áustria e Portugal. Escolhi o Sporting porque já conhecia o clube por dentro.

Já?
Antes, muito antes, em 1975-76, tinha jogado em Alvalade pelo Vasas e fiquei espantado com o apoio do público.

Quem ganhou?
Nessa noite, 2-1 para o Manuel Fernandes.

Manuel Fernandes?
Sim, ele marcou-me os dois golos. Como tínhamos ganho 3-1 em Budapeste, passámos nós.

E ainda visitou Portugal outra vez, não foi?
Fooooi, Boavista-Vasas. No Estádio do Bessa, muito mais pequeno que o de Alvalade. Aí foi o contrário: ganhámos 1-0 e fomos eliminados [2-0 para o Boavista na Hungria].

Quando assinou pelo Sporting, foi ganhar quanto?
Três mil dólares por mês. Se fosse agora, seria três mil dólares por minuto.

Lembra-se da estreia?
Não.

Foi um Sporting-Belenenses com cinco expulsões e quatro golos [2-2].
Não, nada.

E quem era o treinador?
Ahhhhh [como quem diz ‘não brinques comigo’], Malcolm Allison.

Bom treinador?
E grande homem.

Como era ele?
Tantas histórias, tantas, tantas. Gostava muito dele. Contratou-me para o Sporting e, depois, para o Vitória. E deixava-me sempre fumar um cigarro ao intervalo. Como qualquer inglês, não era de falar muito. Quando se expressava, era para valer.

Como?
Num jogo da Taça, em casa, com o Boavista, estávamos a perder 2-1 ao intervalo. Nós, jogadores, estávamos no balneário, ele abre a porta e só nos diz isto: ‘Se quiserem ganhar, passem a bola ao Mário Jorge.’ Depois saiu e bateu com a porta. Ficámos todos a olhar uns para os outros. Na segunda parte, o Mário Jorge fez a jogada do 2-2 para o Manuel Fernandes e foi derrubado na área, no lance de que resultou o penálti do 3-2, marcado pelo Oliveira. Há mais, mais.

Diz.
Deixava-nos beber um copo de vinho à refeição. E aquilo não era normal no Sporting. Os jogadores diziam que Allison chegou ao Sporting para acabar com os estágios e dar responsabilidade aos jogadores. Isso realmente aconteceu. E foi bonito assistir a essa transformação.

Então?
Notou-se uma grande união entre os jogadores, tanto no Sporting como no Vitória. Quando o Allison chegou a Lisboa, dizia-nos para almoçarmos e jantarmos fora, na boa, desde que na véspera da folga. Como a folga era normalmente à terça, íamos almoçar à segunda.

Onde?
Ali perto do estádio.

Magriço?
Sim, está aberto ainda?

Claaaaaaro. E?
Em dias de jogo, almoçávamos lá e íamos para o estádio. Nessas segundas-feira, ficávamos lá dentro do restaurante a almoçar. E aquilo prolongava-se até ao jantar. Às vezes, muitas, até de madrugada. Eram dias intensos [começa a rir-se com graça e contagia-nos].

O Allison também ia?
Não, o Allison só foi uma vez. Que me lembre, só uma vez.

Quando?
Já depois de ganhar o campeonato nacional e a Taça, fomos jogar um torneio com o PSV Eindhoven, em Paris. No dia anterior, a seguir ao jantar, o Allison juntou o grupo todo no hall do hotel e começou a falar sobre as suas aventuras em Inglaterra, as desportivas e as outras [só para quem está desatento, Allison namora com duas Miss Reino Unido e é apanhado com uma atriz pornográfica no balneário do Crystal Palace].

Boa conversa?
Muito engraçado, o Allison era qualquer coisa. Falou, falou, falou até às duas da manhã. E depois alguém disse que íamos para a cama. Ele aí levantou-se e disse: ‘então somos campeões, ganhamos a Taça e vamos dormir? Vamos mas é todos sair.’ E saímos noite dentro. Fomos a todos os bares. O Allison era um espetáculo dentro do espetáculo. O que ele fazia em Alvalade.

O quê?
Entrava sempre em campo antes de nós e dava a volta ao campo com um braço no ar a segurar o inseparável chapéu. O estádio ia abaixo, completo delírio. Nós também. Às vezes, até tocava uma música quando ele entrava.

Qual?
Não sei, não me lembro. [os jornais da época falam em Comanchero]

Na primeira época, o Meszaros faz 29 dos 30 jogos. Falhou qual?
Não sei. Só sei que parti uns dentes com o Portimonense, em Portimão. Saí ainda na primeira parte e não joguei na semana seguinte. Também falhei um jogo europeu, com o CSKA.

Nessa época, o Sporting vai aos quartos-de-final da Taça dos Campeões.
Perdemos com a Real Sociedad.

É quando o Meszaros sofre aquele golo de livre indireto dentro da área, por passos?
Não sei, não me lembro dos golos sofridos.

Allison era bom e o Sporting também tinha um ataque faz favor.
Manuel Fernandes, Oliveira e Jordão, belo trio. Bastava atirar a bola lá para a frente e eles faziam o resto [juntos, marcam 77 dos 92 golos desse Sporting campeão e vencedor da Taça]. Num jogo, a final da Taça, eles marcaram todos. Ganhámos 4-0 ao Braga. Grande, grande dia.

O Oliveira substitui o Allison na época seguinte.
Sim, sim.

E então?
O Oliveira foi o avançado mais temível que encontrei em Portugal.

O António Oliveira?
Era terrível.

Mas jogava na sua equipa.
Verdade, mas era muito malandro. Só jogava quando queria, não obedecia a ninguém. Muito malandro.

Do Sporting vai para o Farense, porquê?
O Sporting contratou outro guarda-redes húngaro, o Katzirz.

Ahhhh, já me lembro. Há um particular Portugal-Hungria em Coimbra e é ele o titular.
Fui suplente, sim.

Porquê?
Não sei.

Chega ao Farense e encontra Jorge Jesus. Como era ele a jogar?
Bom jogador, tinha cabeça, só que era preguiçoso. Falava pouco, bom rapaz.

Mais bons jogadores do Farense?
Gil, um avançado brasileiro. Marcava muitos golos.

E o Farense em si?
O presidente Fernando Barata não pagava salários e havia um mau ambiente. Trocámos de treinador. Saiu um búlgaro, o Mladenov, e entrou o Manuel Cajuda, bom homem. Lembro-me de um 0-0 em Penafiel, num pelado.

Voltou para a Hungria?
Assinei pelo Gyor e pensei que ia acabar a carreira na Hungria. De repente, aparece o Vitória.

Do Allison?
Certo.

O Vitória estava na 2.ª divisão, certo?
Perguntaram-me isso. Vais para um clube da 2.ª divisão, porquê? E eu respondi: vou para o Vitória.

Boa aventura?
Foi tão boa que fomos campeões da 2.ª divisão na primeira época. E a jogar em pelados, que é mais difícil. Treinávamos em Setúbal e, às vezes, em Tróia. Era perto da praia e ia à Arrábida. Muito muito muito bom. Na segunda época, acabámos em quinto lugar e falhámos a Europa por uns pontos. Era um Vitória muito bom, cheio de jogadores ótimos.

Tais como?
Na primeira época, apanhei o Zezinho do Sporting. Depois, tantos: Eurico, Manuel Fernandes, Jordão, Aparício, Vítor Madeira, Roçadas, Hernâni, Maside, Jorge Ferreira, Edmundo, Wando, Tueba e Cadete.

O Aparício disse-me que o Meszaros ganhou cem contos com uma aposta.
Sim, é verdade. Foi um dia em que disse ao presidente Fernando Oliveira que íamos ganhar nas Antas. Ele não acreditou e apostei cem contos. O presidente era engraçado porque dava-nos, a cada um, três/cinco mil escudos por vitória.

Que tal esse jogo nas Antas?
Ganhámos 1-0, golo do Aparício. Fiz um muito bom jogo, até defendi um penálti do Gomes. Tens de ver, é o meu melhor em Portugal. Esse e um outro no Jamor, com o Benfica. Também ganhámos 1-0, golo de Aparício.

O Aparício estava em todas?
Boa pessoa, bom avançado. Só ficava irritado quando ele passava a bola para o lado quando me encarava nos treinos. Avançado que é avançado, remata e não passa para o lado.

E o Allison em Setúbal?
Uma figura. Comia sempre no mesmo restaurante: um linguado com uma cerveja. Nos treinos, ele fazia tudo de forma individual.

Como?
Por sectores. Eu à baliza e a levar com as bolas do Aparício. Os laterais cruzavam e o Aparício rematava. Às vezes, de primeira. Outras, só à segunda, depois de parar no peito. Outras, só à segunda, depois de parar na coxa. Primeiro, com uma bola pesada. Depois com uma bola de futebol. Por fim, com uma de ténis.

E se o Meszaros sofresse muito golos ou o Aparício falhasse o alvo vezes sem conta?
Nada. Nunca ouvi o Allison berrar. Quando não gostava de alguma coisa, dizia-nos ao ouvido ‘não me lixes’.

E o Meszaros?
Entendia isso como uma chamada de atenção didática. Eu e todos os outros. Não me lixes era muito Allison.

Pelo meio, o Meszaros foi ao Mundial 1982.
Em Espanha, sim.

Como foi?
Começámos muito bem: 10-1 a El Salvador.

Como se sofre um golo de El Salvador?
Não sei, não me lembro dos golos sofridos.

Continue.
Todos diziam que El Salvador era difícil, difícil. E nós entrámos como se fossemos jogar com a Argentina ou o Brasil. Resultado, 10-1. Ainda hoje o recorde em Mundiais. Marcámos golos em quase todos os minutos. Depois fomos burros.

Então?
Os jogadores pediram ao selecionador para os titulares descansarem no jogo seguinte, com a Argentina, para dar tempo para preparar o jogo decisivo com a Bélgica. Mas não, o selecionador quis ganhar à Argentina e colocou a equipa titular.

Como correu?
Perdemos 4-1, com dois golos de Maradona. Ele esteve sensacional nessa noite. Seguiu-se então a Bélgica. Estávamos a ganhar 1-0 até sofrer o empate a 18 minutos do fim. Fomos eliminados.

Esse é o segundo Mundial do Meszaros.
O anterior é o da Argentina, em 1978.

Notava-se que era um país a viver uma ditadura militar?
Não, não, estávamos isolados, dentro de um hotel. Íamos para o jogo e voltávamos, nada mais.

Como foi esse Mundial?
No primeiro jogo, perdemos 2-1 com a Argentina com uma arbitragem muito má, muitas malandrices [o árbitro é o português António Garrido]. Depois, perdemos com a Itália e, a seguir, com a França.

Só para acabar, há quanto tempo não vem a Portugal?
Huuuuu, quatro anos.

E vai voltar?
Um dia, sim. Agora estou aqui bem, no meu bairro. Faço as minhas coisas, vejo os muitos jogos, faço as minhas apostas.

Totobola?
Isso, isso, parecido com o Totobola. Aqui na Hungria também há.

Quando publicar a entrevista, aviso-o por telemóvel ou envio-lhe um email?
Nem uma coisa nem outra. Nada.

Como assim?
Não tenho telemóvel nem computador.

Porquê?
A vida é mais simples e mais barata. Poucas despesas é bom.

Ah é verdade, já me esquecia da Lourinhã. Que tal?
Foi bom, muito bom regressar a Portugal para ser treinador. Apanhei uma equipa boa, muito boa. Jogava lá o Tiago, por exemplo. Quando a Câmara promoveu um jantar com o Lourinhanense, então um clube [satélite] do Sporting, falei do Tiago ao presidente Sousa Cintra.

O Tiago foi para o Sporting e só saiu de lá em 2012.
Pois foi, bom guarda-redes.

Muito bem. Obrigado Meszaros.
Obrigado eu, grande abraço.