Vale muito a pena ler esta entrevista feita pelo Rui Miguel Tovar ao Pacheco, extremo-esquerdo português, o primeiro internacional de Portimão, gajo que foi à tromba ao Álvaro Magalhães (e que lhe chama nulidade enquanto defesa esquerdo) e o primeiro a rescindir unilateralmente com o Benfica para assinar pelo Sporting. Um mimo para quem gosta de futebol e das histórias à sua volta! (o que está directamente relacionado com o Sporting vai a itálico)

Este bar existe desde quando?
Inaugurei-o há 22 anos, quando ainda jogava no Sporting.

Dá trabalho?
Claro e isso é ótimo. Trabalhamos das 9 da manhã às 3 da manhã. Há uma forte comunidade estrangeira, sobretudo a inglesa, e até dá para reconhecer os turistas de ocasião e os de sempre.

O Pacheco nasceu em Portimão?
Nascido, criado, vivido, tudo a que tenho direito.

Ia à bola em criança?
Ia sempre com o meu avô, aos seis/sete anos. Era um fanático, daqueles que corria atrás dos autocarros de Sporting e Benfica.

De quem?
O Sporting de Yazalde, Fraguito, Freire, Laranjeira, Bastos. O Benfica de Simões, Artur Jorge, Humberto, Nené. O Porto de Cubillas, Rodolfo. Vi-os a todos.

Sempre em Portimão?
Lembro-me perfeitamente de fazer sete horas de viagem daqui até Lisboa para ver o Sporting, com o meu pai. Ele era um sportinguista fanático. E o meu avô, um benfiquista dos sete costados, fanático por futebol. Fa-ná-ti-co.

E o Pacheco, no meio de tudo isto?
Era do Sporting. Daqueles com bandeirinha e tudo. Por isso é que não me importava de fazer 14 horas de comboios para ir a Alvalade [um parêntesis para largar aqui a bomba: por cada parêntesis reto, equivale uma gargalhada divertida de Pacheco]. A sério, o meu ídolo era o Jordão. Sabia tudo sobre ele e observava-o com especial atenção.

Então e uma memória do Portimonense?
Uma? Mais do que isso: a subida à 1.ª divisão em 1976, o 5.º lugar em 1985 e a estreia na Europa, também em 1985. Estava lá, na bancada, a ver o golo do Pita no Portimonense 1 Partizan Belgrado 0. É o primeiro ano do Vítor Oliveira como treinador. Veja lá como é a vida e o Vítor está aqui outra vez, mais de 30 anos depois.

Sempre com o seu avô?
O meu avô levava-me sempre. Eu era o menino do meu avô. Ele era assim: pedreiro, só sabia escrever o seu pai e mais nada. Fanático, fa-ná-ti-co de futebol, ouvia tudo pela rádio e queria ver tudo. Ao vivo e na televisão. Acompanhava-me a todo o lado, para me ver jogar. Dizia-me ‘Manel, onde é que vais jogar?’

Manel?
O meu nome é António Manuel. ‘Manel, onde vais jogar?’. Dizia-lhe nos Caranguejos, aqui perto. E ele ia, sem pensar duas vezes. E o que era o jogo dos Caranguejos? Levava três amigos daqui para jogar com outros três de lá e fazíamos um 3×3. E o meu avô a ver-me. Foi assim a vida toda, até quando já estava cego. Na minha estreia como treinador, no Atlético, o meu avô já só via sombras e mudou de lugar para sentir mais os jogadores, os movimentos. Até morrer, foi ver todos os jogos, todos, todos.

E o seu pai?
Coitado, sofreu a vida toda. Era do Sporting e mudou-se para o Benfica, por minha causa, do ponto de vista sentimental. Quando o homem já estava mais ou menos entrosado com o Benfica, tauuuu, fui para o Sporting. Os amigos só gozavam com ele.

Já lá vamos. O Pacheco começou a jogar aqui?
Sim senhor, no Grupo Desportivo Torralta. Havia por todo o país. Um em Tróia, outro em Lisboa, mais um Porto.

Qual era o do Pacheco?
O do Alvor. Aquilo era um clube a sério. Era um clube-empresa com uma infraestrutura sem igual em Portugal. Foi a primeira academia do país. Os miúdos rejeitados no Sporting, Benfica, Vitória, Corroios e tal iam todos parar ao Torralta. Alguns até vinham de lá para cá e tinham tudo: formação futebolística dos iniciados aos juniores, formação educacional, cama e roupa lavada. Não lhes faltava nada. Nem a mim que sou daqui.

Então?
Se fossemos convocados para a concentração da selecção em Lisboa, íamos de véspera com um chauffeur da Torralta e dormíamos no Hotel Fénix, ali no Marquês de Pombal.

No dia seguinte?
O chaffeur da Torralta levava-nos ao Jamor para os treinos ou à sede da federação, na Praça da Alegria ou a outro local qualquer. O chaffeur estava lá para nos acompanhar. Levava-nos e trazia-nos. O Grupo Desportivo Torralta foi um modelo visionário em Portugal. Merece um trabalho a fundo. O David Carvalho já fez um muito bom na TSF, agora é preciso mais. Jogávamos sempre em 4-4-2, com um libero, dois extremos, dois médios, um 10. Jogávamos no estádio dos dois irmãos, com um relvado enorme, 110 por 75. Aos 11 anos, se um canto meu chegasse à pequena área, era cá uma vitória. O Grupo Desportivo Torralta, ai ai, que memórias. É um clube exemplar, gerido pelos irmãos Silva mais o José Augusto Palma, que deu muitos jogadores à selecção nacional.

Um deles é o Pacheco, o primeiro portimonense internacional AA.
Boa, sou eu. Fui internacional dos sub-16 aos seniores.

No Torralta, jogava em que divisão?
Na 2.ª divisão, zona sul.

Com quem?
Farense do Paco Fortes, Estrela do Jorge Jesus.

Ainda jogadores?
Ah pois.

E o Pacheco era o quê?
Extremo-esquerdo, puro.

Como é que dá o salto do Torralta para o Benfica, com Portimonense pelo meio?
Só te digo: saí da terra e aterrei na Lua. Já estava referenciado desde as seleções de juniores. Tenho um ano muito bom na Torralta, em que jogava mesmo a extremo-esquerdo, puro como te disse há pouco, e nem passava a linha do meio-campo para trás. Fiz muitos golos e só o Jorge Andrade, do Farense, é que fez mais. Cresceu aí a atenção dos clubes. A partir do momento em que chego à 1.ª divisão, pelo Portimonense, o interesse é maior ainda.

Aparece então o Benfica?
Havia muitos interessados, o Benfica era um deles.

Como foi o contacto?
Bem diferente de agora. Já estava de férias, na praia, e dei o telefone do restaurante da praia a um dirigente do Benfica. Ele ligou e acertámos a táctica, por assim dizer. Depois, o juiz-embargador Adriano Afonso, de quem gostava muito, apareceu aqui no Algarve e chegámos a acordo muito facilmente.

E depois?
Aparece lá no dia tal do mês que vem, disse-me ele.

Na Luz?
Sim, aparece lá para o primeiro dia de treinos.

E o Pacheco?
Fui de comboio para cima [Pacheco começa a rir-se sozinho], com duas malas e duas mochilas. Tinha um amigo à minha espera na estação do Barreiro e que me levou para uma casa na Graça. E eu não fazia a mínima ideia de onde era a Graça. No dia da apresentação, chamei um táxi, o senhor parou à porta de casa, disse-lhe ‘é para o Estádio da Luz, se faz favor’ e ele, animado, ‘hoje é a apresentação da equipa, não é?’. E eu, ‘é é’, nem fazia ideia do que lhe dizer, não sabia dizer quem era ou quem não era. Ele, de vez em quando, olhava pelo retrovisor a tentar ver quem eu era, mas não chegou a nenhuma conclusão. Até porque naquela altura saíamos muito de vez em quando nos jornais e naquelas fotografias ao longe. Ainda por cima, um jogador novo de uma equipa pequena.

O táxi deixou-o à porta?
Deixou-me cá em baixo, nem quis ir lá acima porque havia muita confusão. Lá fui eu, a passar pelo meio das pessoas, a pedir licença para chegar à porta, onde me apresentei como fulano tal, jogador do Portimonense a um segurança. Foi assim, tudo muito bem organizado.

Quem foi mais para o Benfica nesse Verão?
O Augusto. Ele jogava pela direita no Portimonense e eu pela esquerda. Ele ainda jogou na equipa principal, mas teve alguns azares pelo meio como a tropa e uma lesão incómoda. Foi pena, porque não teve a minha felicidade.

E essa equipa do Benfica é a de quem?
Uyyyy. Bento, Veloso, Shéu, Diamantino. Só aqui quatro pesos pesados, quatro capitães. É a equipa que chega à final da Taça dos Campeões com o PSV [1988].

É aquela que perde em casa com o Marítimo, certo?
Com um golo do Paulo Ricardo, à quarta jornada. Um jogo à noite em que só tínhamos umas três mil pessoas lá fora a quererem cascar-nos.

Três mil?
Ou duas mil, sei lá. Muitas, imensas. Começámos o campeonato a ganhar na Covilhã, depois perdemos com o Vitória de Setúbal no Jamor, casa emprestada pelo castigo da federação em relação a um jogo da época passada na Luz, a seguir ganhámos cá, em Portimão, e depois o 1-0 do Marítimo na Luz. Quer dizer, duas derrotas em quatro jornadas não é nada comum.

Tempos difíceis?
Como ainda não me conheciam bem e era um nome recém-chegado, e só tinha feito dois jogos, o tal de Portimão e esse do Marítimo, passei ali pelos pingos da chuva. Houve colegas, os tais capitães, com estatuto e peso no balneário, os Velosos e os Diamantinos, que ainda passaram por uns apertões valentes.

Diamantino, grande player.
Na época anterior, o Benfica ganha campeonato e Taça. Na final do Jamor, com o Sporting, acaba 2-1 com dois golos do Diamantino. Um de livre, outro de bola corrida. Era cá um jogador. Maravilhoso. Se não tivesse aquele problema no olho e não fosse comunista, teria ganho muitos mais prémios do melhor jogador da época. Hoje que já não é do Partido Comunista e já tem o olho direito, não joga. Já não lhe adianta nada. [e ri-se sem parar].

Ainda se dá com ele?
Ligo-lhe às vezes e pico-o com aqueles comentários televisivos dele sobre as rotações e mais não sei o quê. Dou-me muito bem com ele, era o capitão dessa equipa em 1987-88.

Como foi lidar com a lesão dele nas vésperas da final da Taça dos Campeões?
Duro, muito duro. Pedi para sair ao intervalo com o Vitória de Guimarães e não joguei a segunda parte. Deu-me uma crise de choro. Para chegar à final da Taça dos Campeões, tinha sido um trajeto tão complicado. Só para veres, o Benfica já não chegava a uma final desde os tempos do Eusébio, em 1968. Ainda era tudo a preto e branco. Eu tinha ano e meio de idade. De repente, temos a oportunidade de jogar a final e ele parte a perna.

Uma entrada?
Sim, uma entrada à anos 80, uma entrada ruim, uma entrada maldosa, uma entrada à Porto. Há muitos adjetivos para isso. Aquilo eram os eighties, entrava-se assim por trás a torto e a direito. E o Diamantino estava a fazer uma época formidável porque tinha saído da sua posição na direita e estava a jogar no centro, no lugar do Shéu. Ao pé dele, o Elzo. Lá atrás, tínhamos dois centrais como deve ser, o Dito e o Mozer. À direita, o Veloso.

E à esquerda?
Não tínhamos lateral-esquerdo. Jogávamos sempre com dez.

Nããããã.
Era o Álvaro, o nosso adversário mais difícil de ultrapassar em todos os jogos. Em setembro/outubro, dei-lhe dois sopapos no trombil a meio de um treino. Vieram logo o Shéu e o Mozer a separarem-nos. Foi um ano complicado para ele: apanhou de mim, apanhou do Vando.

Então?
Havia um problema chamado Chalana. O Álvaro vivia muito do Chalana, desde o início dos anos 80 com o Eriksson. Depois do Euro-84, o Chalana vai para Bordéus. Quando volta, três anos depois, o Álvaro quer voltar a reeditar a dupla com ele, só que o Chalana já tinha sido operado e vinha amassado. Digo-te, do ponto de vista técnico e da inteligência, o Chalana foi o melhor que vi. Nos tempos atuais, só estou a ver o Messi. A sério, nunca vi ninguém como ele. Fazíamos treinos de posse de bola, a um só toque. Havia dificuldades naturais, sobretudo quando pressionados e aquilo para o Chalana era a coisa mais fácil do mundo. Ele não perdia uma bola. Vi aquele gajo a deitar jogadores sem sequer tocar na bola. Era um fã dele. Quando chego lá, deparo-me com Vando, titular da ala esquerda da época passada, que tinha ganho campeonato e Taça, mais o regresso do monstro Chalana. O Álvaro viu ali uma oportunidade de reeditar a dupla de sucesso e começou a ser mauzinho. Quer dizer, ele era mauzinho. Tanto para os jogadores do topo como para os miúdos como eu.


E há um jogo, à oitava jornada ou assim, com o Salgueiros na Luz, em que o Chalana é convocado e vai para o banco. Sou substituído pelo Carlos Manuel na segunda parte. Com 2-0, a segunda substituição é para o Chalana. Mal o baixinho aperta as chuteiras, a Luz vai abaixo. Estavam lá uns 80 mil só para o ver em acção, para se certificarem se aquele era mesmo o Chalana. Ele entra e é o delírio completo. O Veloso tem a bola, não lhe passa e leva uma assobiadela monumental. Daquelas mesmo à séria. Quando o menino toca na bola a primeira vez, vai direito ao lateral-direito Casimiro e troca-lhe as voltas. O Casimiro cai e o estádio aplaude aplaude e aplaude. Ora bem, o que acontece nesse jogo? Contaram-me os suplentes, atenção. Sempre que o Álvaro passava pelo banco, dizia ‘ò Toni, tira esta merda daqui e mete o baixinho’. A merda era eu. O dia seguinte é o de folga e o outro já é de treino. A meio, faz-me uma entrada parva, a pés juntos. Dei-lhe logo duas bolachas.

Quem era o treinador desse Benfica?
Skovdahl, um dinamarquês que não falava uma palavra de português. Assim ao nível do Vata [risos]. Como adjuntos, Toni e Jesualdo Ferreira. A equipa tinha 32 jogadores, alguns deles jogavam o campeonato de reservas, como forma de ganhar rodagem e competitividade. Era uma fornada boa, com Damas, Portela, Dias Graça, Augusto mais o Hajri.

Xiiii, o Hajri.
Ele tinha feito um Torneio de Toulon muito interessante e o Benfica contratou-o. Aliás, Portugal jogou esse torneio, comigo na equipa.

E então?
Acabámos em quinto ou sexto, já não me lembro muito bem. Jogámos com a Inglaterra do Gascoigne. Na fase de grupos, empatámos 0-0 com o Brasil do André Cruz e Bismark, perdemos 2-0 com a Bulgária de Balakov, Kostadinov, Siriakov, Penev e ganhámos 1-0 à Itália do Baggio. O golo à Itália é meu.

Como é que foi isso?
Não consigo explicar. Queria fazer uma mudança de flanco, da esquerda para a direita, na direcção do Marito, e a bola saltou nesse preciso momento. Bem, foi um chapéu monumental, de uns bons 40 metros. Sem querer, totalmente.

Na baliza, quem estava?
Machegiani.

A final desse torneio foi entre quem?
A tal Bulgária desses artistas todos. Uns dois anos, ou três depois, começámos a ver onde jogavam os Penevs da vida e aí percebemos que realmente era uma geração de ouro. No outro lado, a França do Ginola.

Falávamos do Hajri.
Pois, é verdade. Com essas duas derrotas nas primeiras quatro jornadas, acabámos por nos agarrar à Taça dos Campeões e aí, verdade seja dita, tivemos um percurso quase imaculado. Um só golo sofrido, e de bola parada [Gudjohnsen, o pai daquele do Chelsea e Barcelona], em oito jogos.

Essa campanha começa com um jogo atípico vs Partizani?
Ganhámos 4-0, sei que entrei na segunda parte e não tenho a menor recordação desse jogo, à excepção de um pormenor assustador: os homens estavam loucos, não sei se estranharam o tempo, mas batiam em tudo o que mexia. Foram quatro jogadores expulsos, inclusive o guarda-redes, e armaram uma barraca de todo o tamanha. Felizmente, a UEFA teve bom senso e anulou o jogo na Albânia como castigo para o Partizani. Na eliminatória seguinte, jogámos com o Aarhus. Não joguei em nenhum dos jogos, porque só a partir de Dezembro é que começo a ganhar mais consistência na equipa principal. Daí que tenha jogado os ¼ final com o Anderlecht e as meias com o Steaua.

Imagino a Luz nessa noite do Steaua.
Não imaginas não [e começa a rir-se com vontade]. O calor humano era impressionante. Tínhamos empatado 0-0 na Roménia e ganhámos 2-0, bis de Rui Águas. Que noite memorável. Aquilo rebentava pelas costuras. Como ainda não havia cadeiras em todo o estádio, seguramente mais de 120 mil pessoas. Mais mesmo, diria umas 140 mil.

Na final, PSV.
Cedo se entendeu que as duas equipas entraram com medo e o golo só apareceria de bola parada. De resto, seria um 0-0 eterno.

Como é que se vive uma final perdida nos penáltis?
O impacto só se dá no dia seguinte. Digo eu. Quando vemos eles a festejar, com a taça na mão, ficamos com aquela sensação de que tivemos tão perto e agora voltamos a estar tão longe.

É a famosa final das botas.
Elas saíam-me com uma facilidade. Numa das vezes, já tinha passado o Lerby e ia isolado para a baliza.

O Lerby, pois é.
Essa equipa do PSV era um portento. Para já, eliminou o favorito Real Madrid nas meias-finais. O PSV tinha o Nielsen, capitão da Dinamarca, o Gerets, capitão da Bélgica, e mais cinco campeões europeus pela Holanda no mês seguinte: Van Aerle, Ronald Koeman, Vanenburg e Kieft. Mais o Lerby, um craque da cabeça aos pés. Como o Vanenburg, aliás. Aquilo era muito duro.

Quem o marca?
Um senhor chamado Eric Gerets, capitão da Bélgica. Há um dado curioso aqui em Portugal: nós só víamos os Europeus e os Mundiais pela televisão. E o futebol internacional era através de resumos no Domingo Desportivo. Portanto, havia uma certa ignorância competitiva. Sem maldade, isto é a pura das verdades. De repente, aparece-me à frente o Eric Gerets. Eu acompanhava-o desde o Mundial-82, em Espanha. Um verdadeiro camião, uma loucura. O homem virava tudo e todos. Perguntava-me ‘o que é estou aqui a fazer?’ Ora bem, isto não deixa de ser uma amarra para os portugueses. Atenção, nos anos 80, Portugal vai a uma final da Taça das Taças, a três da Taça dos Campeões e a uma da Taça UEFA. E a selecção ainda vai ao Euro-84 e ao Mundial-86. Isto só valoriza o futebol português. Costumo dizer que perdi duas finais com um golo. Em 210 minutos, só sofremos um golo, o do Milan.

Quero ir aí. Quem o marca na final de 1990?
Tassotti.

Que tal?
Digamos que era um rapaz difícil de ultrapassar [e parte-se a rir].

Jogava com o corpo?
Primeiro, era bom tecnicamente. Depois, tinha uma capacidade física brutal, tal como todos os outros. A Itália estava por cima de toda a gente a nível físico. Há uma revolução total no ponto de vista físico, mental, competitivo.

Como é que isso se nota num jogo?
Porque chegávamos meio segundo atrasados a cada bola dividida. E meio segundo é toda uma vida no futebol, decide muita coisa. Eu passava por um e estava lá o outro. Quando um saía, o outro fechava e assim sucessivamente. Aquilo era um harmónio, asfixiante. Quando dávamos por ela, éramos dois contra oito. Isto no campo todo e o tempo todo. Depois também há a questão do campeonato. Eles, do Milan, jogavam com Inter, Juventus, Roma, Lazio, Nápoles, Sampdoria, Torino. Todas estas equipas tinham condições financeiras para contratar jogadores internacionais, que tinham estado em Europeus e Mundiais. E nós, sem desprimor por ninguém, jogávamos com o Campomaiorense, Estrela da Amadora, União Leiria, Paços de Ferreira. Não é propriamente a mesma coisa. Inevitavelmente, sofríamos muitos nos jogos internacionais. Sobretudo nos últimos 20 minutos, quando eles eram mais fortes. Posso dar um exemplo impressionante.

Chuta.
A primeira vez na carreira que fui para um ginásio como parte do treino acontece aos 29 anos de idade, jogava eu em Itália, na Reggiana. Porque aqui nós estávamos proibidos de ir ao ginásio porque diziam que a nossa massa muscular aumentava e isso retirava velocidade. O que é verdade, se for mal feito, mal enquadrado.

Não iam ao ginásio?
Só lá íamos em tom de brincadeira, quando chovia e não dava para jogar no relvado. Estávamos lá a fazer umas coisas. Em Itália, não. Em Itália, tínhamos dois treinos por semanas dedicados ao ginásio. Vê bem: entrei no Benfica aos 20 anos e o primeiro treino a sério no ginásio é aos 29. Estávamos atrasados em relação aos outros. O que é mau e, ao mesmo tempo, valoriza mais ainda o sucesso do nosso futebol. Porque nessa altura fomos a duas finais europeias, em 1988 e 1990. Há dois factores de valor.

Quais?
Primeiro, a maioria dos jogadores do onze era de Portugal, o que demonstra a nossa qualidade. Se tivéssemos crescido num outro ambiente, teríamos sido muito melhores.

E o segundo?
Uma vez, pedi um bife com arroz na véspera de um jogo da Reggiana. O médico da Reggiana queria-me matar.

Então?
Na cabeça dele, um bife com arroz não cabia na dieta de um desportista.

Era massa?
Era massa com massa. Quanto muito, frango. Uma perninha. Na véspera, atenção. No dia do jogo, massa com massa. Massinha, muita massinha. Eu roubava bananas para levar na mochila e comer a toda a hora. O homem ia-me matando, como quem diz ‘de que caverna tu vieste?’ A verdade é que comíamos isso em Portugal. Em Itália, já havia outro menu.

De volta à tal final da Taça dos Campeões em 1990.
Calhou-nos talvez o melhor Milan de sempre. Na baliza, não me lembro bem. Na defesa, era Tassotti, Baresi, Costacurta e Maldini. No meio, Ancelotti e Rijkaard. À direita, Colombo, um loirinho. À esquerda, Donadoni. Na frente, dois rapazes que não percebiam nada daquilo: Van Basten e Gullit.

Nas meias-finais, o Marselha.
Grande jogo, com a Luz a abarrotar, uns 130 mil. Eles tinham uma equipa de assombro. A começar no Waddle, o primeiro esquerdino a jogar na direita. Na frente, Francescoli e Papin. No meio, Deschamps, Tigana e mais um outro que não me lembro. Na defesa, Amoros à direita e Di Meco à esquerda. No meio, Germain e Mozer, sem esquecer o Boli. Perdemos lá 2-1 e ganhámos 1-0.

Marca-o quem?
Amoros, internacional francês e outro que o via desde o Mundial-82, pela França. É um jogo engraçado pela cadeia de acontecimentos. Antes do golo, o Veloso vê o amarelo que o faz perder a final. Ainda fui ao árbitro dizer que tinha sido eu, em vão. O Veloso é que viu o amarelo.

Que jogada foi essa?
Ali junto à linha, aquelas faltas à Veloso em que vai com o corpo todo. O gajo do Marselha só deu duas voltas no ar, vá lá. Mas foi melhor assim, sabes? Se ele jogasse a final, ainda íamos a penáltis e ele falhava o dele [risos].

Falava da cadeia de acontecimentos.
Na jogada seguinte à do amarelo ao Veloso, há uma falta sobre o Veloso e ele marca-a rapidamente, na minha direcção. O Amoros estava em cima de mim e veio com tudo. Só tive tempo de meter a bola por entre as pernas e segui o meu caminho. Até parece que ouvi os joelhos do Amoros a bater um no outro [risos] e foi o Tigana quem fez a dobra. Ele e outro apertam-me junto à bandeirola do canto e eu, para não inventar, dei um bico na bola para ganhar canto. E é nesse canto que nasce o golo.

Quem marca o canto?
Nesse lado do lado esquerdo do ataque, era o Valdo. Se fosse à direita, era eu. A bola é metida e o Vata marca.

Com a mão?
Nem me apercebi. Só bem mais tarde, através de repetições. De onde estava, não vi a mão. E o árbitro também não consegue ver, porque está tapado. Como eu, aliás.

E o que dizia o Vata, no balneário?
Dizia que tinha sido com a cabeça. Quando foi mesmo apanhado, é que foi obrigado a admitir a evidência. Dizia-nos ‘se há o mão do Maradona, também há a mão do Vata’.

O Vata conseguiu ser o melhor marcador do campeonato, com 16 golos.
Fui eu o autor do cruzamento para o 16.º golo. E nem comecei a titular, saltei do banco. Como já éramos campeões nacionais, entrámos com uma equipa diferente. E era o jogo de despedida do Shéu. Acabou 2-2 com o Boavista.

Como era o Vata?
Um excelente finalizador. Um toque dava golo, na boa. Ele nem sequer era titular do Benfica. Nessa época, tem mais jogos a suplente a titular e é o melhor marcador do campeonato.

Ainda fala com o Vata?
Acho que ainda está na Austrália e sou amigo dele no facebook. Se ele falava pouco português naquela altura, agora então deve ser uma maravilha [mais um sorriso de Pacheco].

Se ele era angolano, como é que não falava português?
Ele falava francês. Se é angolano, só se nasceu lá no interior interior interior, na última palhota antes da fronteira do Zaire. Ele falava muito mal português. Era uma pessoa muito engraçada. Tinha as suas limitações, muito curiosas.

Tais como?
Ele não tinha carta e guiava um Renault 5, só com duas mudanças. A primeira e a segunda. Por isso, demorava oito horas a chegar à Póvoa.

Do Varzim?
Sim, ele veio do Varzim para o Benfica. Também não sabia estacionar. Daí que chegasse sempre mais cedo que todos os outros ao Estádio da Luz. Arrumava o carro de frente, sem qualquer manobra, e pronto. Às vezes, o carro ia abaixo no Marquês de Pombal e ele ligava à malta a dizer ‘epá, venham cá e tirem-me daqui’.

Em português?
Em português? Nem pensar. Ele só sabia dizer três, quatro palavras em português. Nos treinos, era o ‘párrrrra com isso, porrrrra’ quando alguém lhe dava uma porrada.

Por falar em porrada, o Pacheco é expulso num Benfica-Torreense.
Zero-zero.

O Coroado disse-nos isto: ‘ao minuto 90, há um lance na área do Torreense, gera-se uma confusão e é daí que sai o vermelho para o César Brito, por palavras. O Pacheco, que até nem estava ali, veio a correr na minha direção e disse-me na cara, neste português, ‘meu filho da puta, não tens colhões para me mostrar o vermelho’
Foi quase assim, mas não foi assim. Então, o Coroado estava a fazer uma arbitragem à Coroado, uma pessoa sempre apaixonada pelo Benfica e ainda hoje se vê nas suas apreciações semanais nos jornais. Ele conseguiu expulsar o Paulo Sousa e depois não assinala uma falta mais que evidente sobre o César Brito à entrada da área. O César manda-o literalmente para aquele sítio e o Coroado expulsa-o. Isto à falta de dois minutos. Era um jogo decisivo por questões do título com o Porto. A ideia que tenho do que lhe disse ‘porra, para estares a fazer essa merda, expulsa toda a gente’ e ele dá-me o vermelho. Eu estava ali no meio de muitos e só usei a linguagem que eles também usam connosco.

Os árbitros insultam os jogadores?
A maioria deles mandava-nos para todos os lados. Literalmente.

Até na Luz?
Em todo o lado, a coisa estava muito bem montada.

Durante o jogo ou antes?
Antes do jogo, procurávamos conter e tentar ignorá-los. Havia jogos que conseguíamos e outros que não. Foi uma fase bastante negra do futebol português que, nos dias de hoje, ainda evitamos falar de certas coisas com medo de que o homem ainda venha aí. Porque o juiz Mortágua avisou-o a tempo e ele conseguiu ir a Santiago Compostela por uns tempos. Como não foi dentro, ele ainda anda aí. E as instituições ainda têm medo que ele apareça, forte e duro. Não tenho a menor dúvida. É o que sinto, é a minha convicção. Eles têm pavor. A coisa foi muito, muito difícil. Lembro-me de outra expulsão. Em Aveiro, num jogo decisivo para a atribuição do título.

Golo do Dino?
Sim, sim, 1-0. O Porto ganha fora, com um golo do João Pinto, e nós perdemos em Aveiro. Eu já tinha levado um amarelo porque houve uma bola na linha que um dos irmãos Calheiros apitou fora. Irritado, apertei a bola assim [Pacheco junta as mãos e cerra os dentes]. O gajo deu-me logo amarelo. Na segunda parte, sofro um penálti claro do António Oliveira, aquele central que passou no Benfica. Até fiquei com as marcas dos pitons na coxa. E o gajo chegou ao pé de mim e mostrou-me o segundo amarelo. Fui expulso. Chamei-lhe todos os nomes. Quando saí de campo, passei por um dos irmãos deles, não sei precisar qual porque eram os dois iguais, e, Rui, chamei-lhe tudo: boi, chulo, corrupto, filho disto, filho daquilo. A minha boca estava colada ao ouvido dele e eu a dizer-lhe ‘filho da p***, despe essa camisola e apita o jogo com a camisola do Porto.’ Merecia uns 150 jogos de castigo por tudo aquilo que lhe disse. Se ele escrevesse no relatório, eram uns 150 jogos. Sabes a reacção dele? ‘Vai prò c******’. Era assim.

Estava a ver aqui um Porto-Benfica em que o Pacheco entra e é expulso. Outra vez.
[ri-se sem parar] Joguei uns 14 minutos. Como qualquer Porto-Benfica daquele tempo, o número de faltas ia para lá das 50. Então eu estava no banco completamente perturbado com a quantidade de entradas violentas dos jogadores do Porto e aquilo para os árbitros era tudo normal. Quando entrei, já estava de cabeça perdida. Se é para a festa, vamos para a festa. Como era um pouco rebelde e agitado, também gostava de uma confusãozinha. Comecei por virar o Paulo Pereira, depois o Jaime Magalhães e o árbitro achou por bem mandar-me embora. Empatámos 0-0 e fomos campeões nesse ano [1989].

Era feliz nas Antas?
Sempre jogos difíceis, muito complicado. Os árbitros estavam todos comprados pelo Porto, havia um sentimento de impunidade constantemente transporto para dentro do campo. Não há que ter medo das palavras, aquilo era assim e estão aí as escutas para quem duvidar.

Ganhou quantas vezes nas Antas?
Uma, a do César Brito.

Quem saiu para entrar o César Brito?
Fui eu [e lá vem mais uma gargalhada]. Deve ter sido a única substituição que levei na boa. Quer dizer, só levei na boa depois de ter visto os dois golos do César. Eheheheh.

Outro jogo complicado?
Complicado? Aquilo era um terror e a intimidação começava na noite anterior, quando os adeptos se juntavam à porta do nosso hotel a lançar todo o tipo de coisas para impedir-nos de dormir, de fazer uma vida normal.

No campo então, imagino.
Não imaginas não, ò Rui. Nesse dia do César Brito, vi o [árbitro] Carlos Valente ser apertado por tudo e todos.

Quem?
O senhor Octávio, o senhor Inácio, o guarda Abel e por todos aqueles polícias fardados que viravam as costas e diziam ‘dá-lhe agora’. Estavam todos feitos e viravam costas nesses momentos mais fortes.

Quem era o seu habitual marcador, João Pinto?
Exacto. Ainda há umas semanas, alertaram-me para um Benfica-Porto na RTP Memória. Acabou 1-1, golos do Jaime Magalhães e Diamantino. Trinta anos depois, estava a sentir-me incomodado com tanta pancada que apanhei. Nas primeiras quatro ou cinco vezes em que toquei na bola, sofri falta. Seguido, sem parar. Foi assim até ao fim do jogo. Esse jogo deve ter roçado as 70 faltas e um só cartão amarelo. Digamos que aquilo parecia o Canelas numa versão mais soft.

Apanhou muitos estrangeiros no Benfica.
No primeiro ano, era o brasileiro Elzo. Depois vieram mais brasileiros. Como o Isaías, que resolveu aquela eliminatória em Londres, com o Arsenal. Nessa noite, fiquei no banco. Felizmente. É sinal de que não foi preciso entrar. O nosso Isaías resolveu aquilo. Um jogador portentoso, que chegou a Portugal sem nome e saiu daqui reconhecido, rumo a Inglaterra. Conquistou-nos por completo, através do seu valor, da sua dinâmica, do seu remate. Esteticamente nem sempre bonito, altamente eficaz.

Fora do campo, porreiro?
Muito. Nós, com brasileiros, sempre nos demos bem. Só houve uma excepção.

Então?
Há os brasileiros que se conseguiam conter quando chegavam a Portugal e há os outros. Ainda hoje há brasileiros cuja ideia de Portugal é de que somos todos burros, atrasados mentais, totós. É assim que eles nos vêem, é um problema que os assiste. Todos os brasileiros que chegaram aqui e conseguiram deixar esse estigma, triunfaram. Aqueles que eram constantemente arrogantes e olhavam para nós como totós, não triunfaram.

Quem em específico?
O Lima, por exemplo.

O do cabelo para cima, à Arsenio Hall?
Esse Lima. Ao contrário de muitos brasileiros que aqui chegaram, o Lima tinha nome no Brasil com um passado vistoso em clubes como Corinthians, Santos e, especialmente, Grémio. Ele chegou aqui e julgou-se o rei, coisa que nem o Mozer fez. E o Mozer era titular do Flamengo e só não tinha ido ao México-86 por lesão.

E o Ricardo Gomes?
Outro igual ao Mozer. Titular do Fluminense, titular do Brasil e chegou aqui com a maior humildade. Tinham aquela ideia dos portugueses, claro, mas primeiro tiveram a inteligência de nos ver em acção para saber se era verdade ou mito. Quando perceberam, tornaram-se bons jogadores. O Lima nunca triunfou no Benfica pela falta de capacidade de ler a situação. Naquele tempo, o Benfica tinha mais condições do que todos os clubes grandes do Rio. Aliás, os grandes do Rio jogavam entre eles num Maracanã degradado, sem condições nenhumas. O Vasco da Gama, grande clube, joga num quintal. O Fluminense, outro grande, noutro quintal. Ora bem, os tais jogadores chegaram aqui e perceberam a dimensão do Benfica.

Mais estrangeiros?
Magnusson.

Era tosco?
Não era um primor de técnica, mas era um bom finalizador, com um grande pé esquerdo. Não por acaso é dos melhores marcadores estrangeiros do Benfica, jogou o Mundial-90 pela Suécia e foi a duas finais europeias com o Benfica. Era o típico avançado nórdico, forte, possante, que sabia usar o corpo. E era também um pouco queixinhas para aquela volumetria toda.

Queixinhas?
Sim, era um pouco queixinhas. Nos treinos e tal [Pacheco a rir-se, outra vez].

Como era o grupo sueco?
Primeiro veio o Magnusson, só depois o Thern e o Schwarz. Um veio para apanhar porrada, que foi o Mats, e os outros dois para dar forte, ambos muito resistentes.

Imagino o Schwarz.
Fazia várias posições, era duro como uma pedra, com dois melões nos gémeos e era doutorado numa arte marcial qualquer. Sentia-se que sabia onde bater. Esses suecos eram todos à maneira, curiosos quanto aos nossos costumes e com vontade de se entenderem connosco o mais rapidamente possível. Aliás, há um outro sueco que foi lá fazer uns treinos.

Quem?
Um de rastas, figura de Barça e Celtic: Henrik Larsson. Lembro-me dele e ele também, porque falou disso há dias.

Henrik Larsson na Luz.
É bom de ver que o Benfica já tinha tido uma boa experiência com os nórdicos, através do Manniche e Stromberg. Já muito diferentes eram os jogadores de Leste, uns dois ou três anos depois. Eram mentalidades e culturas muito mais fechadas, mais desconfiados, com um sentido de humor completamente diferente. Esses jogadores, a entrada dos empresários em força no mundo do futebol e as dificuldades financeiras foi um cocktail molotov para aquilo que entendo o princípio do fim da mística.

Então?
Cabia-me a nós, com mais anos de casa, como eu, Rui Águas, Silvino e até o Magnusson, acolher os estrangeiros e mostrar-lhes a mística. Com os africanos, zero problemas. Todos eles queriam saber e aprender. Os Vatas, os Abéis desta vida. Os do Leste eram mais complicados. Isso descambou naqueles 10/11 anos horríveis, sem qualquer título.

Na altura, o que era a mística do Benfica?
Passava pelo convívio fora do campo, fora dos estágios. Eram os almoços de grupo, ali no Barbas ou então naquelas tasquinhas perto do Castelo de São Jorge. Eram outros tempos, lá está. Agora, os jogadores não podem aparecer num restaurante assim ao calhas, só porque sim.

No Sporting, também encontra jogadores de Leste.
È verdade, já integrados com a realidade de Portugal e a cultura do futebol português. O Balakov queria mesmo impor-se para dar o salto, o Iordanov não se importava de jogar toda a vida no Sporting e havia ainda o Juskowiak. Tinha um humor muito refinado. Era fechado, mas era sensacional quando falava. Foi dos jogadores estrangeiros com que joguei em Portugal que melhor percebia o nosso sentido de humor. Um jogador de fino recorte cultural. Lá está, esses três eram humildes. Os russos do Benfica não o eram, porque não deram à equipa aquilo que se esperava deles.

equipaço

O Balakov marcou aquele grande golo em Setúbal.
Verdade, verdade. Grande slalom. Ganhámos 3-2, marquei o 3-2. Foi um bom início de época, cheio de alegrias.

Até na Europa. O Sporting elimina Kocaelispor e Celtic.
Sim, o Kocaelispor da Turquia e o Celtic. Lá perdemos, 1-0 e fiz um jogaço. Não merecíamos sequer o empate e fomos perder. Cá, 2-0.

Segue-se então o Casino Salsburgo.
Joguei cá, ganhámos 2-0 e até mandei uma bola ao poste. Acho. A minha memória ficou selectiva. Para manter a minha sanidade mental, tive de esquecer muita coisa a partir daí.

E depois lá, na Áustria. O que se passou?
O supra-sumo da bananeira Manuel Fernandes convenceu o Bobby Robson a jogar com três centrais e perdemos 3-0. Saí do onze, de repente, e lembro-me do Sousa Cintra dizer na viagem de volta, no avião, que o treinador não tinha nada que me tirar. E também me lembro dele despedir o homem no avião. Se já estava chateado, mais chateado fiquei quando o homem saiu.

Como era o homem?
Excelente, excelente pessoa, excelente, excelente. Foi ele que me procurou depois de ter saído do Benfica.

Só depois?
Só depois.

Porque é que saiu do Benfica?
Na época anterior, já jogava menos. Falhei, por exemplo, a final da Taça de Portugal, aquela do 5-2 ao Boavista com um jogaço do Futre, e achei que estava no fim da linha. Daí a saída. Se fosse agora, pensava melhor e reagia com menos orgulho. Não aguentava a ideia de ver o Benfica daquela maneira, com os russos e os empresários metidos ao barulho. Fazia-me confusão. Se o Gaspar Ramos estivesse lá, nunca sairia. Porque ele ajudar-me-ia a ultrapassar aquele momento menos bom.

E apareceu o Sporting?
Estava sem clube, saio do Benfica sem destino. E apareceu o Bobby Robson. Ele sempre gostou do meu estilo.

Ganhava quanto no Benfica?
Em 1991, dois mil e quinhentos contos por mês com dois anos de contrato a aumentar 500 contos por época mais proposta por mais dois anos.

Quanto foi ganhar para o Sporting?
Cinco mil-e-qualquer-coisa por mês.

E que tal, a nível pessoal?
Um drama imenso. Para começar, partiram os meus dois carros, em Alfragide. Era só calhaus dentro do carro. E chatearam a minha mãe. Era ver o meu nome espalhado pelas ruas de Lisboa, de todas as formas e feitios. Entrava num restaurante e ouvia baixinho ‘filho da p***’.

E a nível desportivo?
Fomos felizes até o Robson sair, depois do 3-0 em Salsburgo.

Entra o Queiroz e quê?
Foi a pior coisa que me aconteceu. Ele já não ia à bola comigo e eu não ia à bola com ele desde os tempos da seleção de juniores, quando ele era o adjunto do José Augusto. Depois, cruzámo-nos na seleção AA. Ele chamava-me e depois era eu que ia invariavelmente para a bancada. Só tenho seis internacionalizações, mas fui convocado umas 20-e-tal vezes. Assim não. Ò Rui, o que me chateava era treinar bem durante quatro dias até chegar o Futre na antevéspera e jogava ele. Atenção, não só o Futre. Ele [Queiroz] meteu toda a gente na esquerda, o André, o Semedo, o Cadete, o Sousa. Todos, menos a mim. Uma vez, até o Domingos jogou. Nã, aquilo não era para mim.

E no Sporting?
Na primeira época, em 1993-94, ainda joguei. Na segunda, fiz uns 40-e-tal minutos divididos por dois para o campeonato (Beira-Mar e Chaves) mais um jogo completo para a Taça de Portugal (Olivais e Moscavide), todos fora de Alvalade. Ele nunca me meteu a jogar em casa, depois de uma vez, ainda em 1993-94, com o Marítimo, ter passado por trás do banco, sem lhe dirigir a palavra, enquanto os adeptos o assobiavam pela substituição.

Porquê essa relação?
Sei lá eu, não faço a menor ideia. Quando ele vai para a seleção nacional, começa a convocar-me e depois não me mete a jogar. Isto sem ter qualquer tipo de problema com ele. Às tantas, o Eriksson chega ao pé de mim e diz-me isto ‘você tem de resolver a sua vida.’ Pergunto-lhe porquê e ele: ‘tenho aqui um trabalho do caraças em meter a sua cabeça no lugar. Você é talentoso, é trabalhador e quer sempre mais. Mas cada vez que chega aqui da seleção, vem maluco. Ou resolve o problema na seleção ou não joga no Benfica.’ Disse logo ao Toni ‘diz lá ao teu chefe para me dispensar da seleção, não vale a pena’. Só que na altura era proibido por lei renunciar à seleção, então era melhor dizer a quem de direito para não pensar mais em mim. Preferia jogar sempre no Benfica do que três ou quatro vezes na seleção.

E o recado foi dado?
Às tantas, ele chama-me outra vez e eu não posso dizer não. Mas o que é que este gajo quer de mim? Foi um Portugal-Holanda nas Antas.

E?
B-a-n-c-a-d-a. Eu e o Sobrinho. E a conversa do costume do ‘contamos com vocês’.

Há mais?
Volta a chamar-me para um Portugal-Suíça, quando já estou no Sporting de Robson. Vou lesionado, com uma micro-rotura. E ele ‘epá, não vamos tornar isso público, vais ficar connosco até termos mesmo a certeza e também para o gajo da Suíça estar na dúvida.’ Aquelas coisas, enfim. Ao fim de dois dias, vira-se para mim e ‘olha, vais fazer o tratamento para Lisboa e faço questão que venhas para o jogo: almoças connosco, vais no autocarro connosco e vês o jogo connosco.’ Sim senhor, lá foi o urso de Lisboa para o Porto. Entretanto, recupero e volto aos treinos. Há um Escócia-Portugal e o gajo não me larga. Convoca-me de novo. Quem é que joga à esquerda? Semedo. Ele sai, entra o Domingos e é o Sousa a deslocar-se para a esquerda. Sabes quem acaba à esquerda?

Nem ideia.
O Figo, meu companheiro no Sporting. O Queiroz tinha o dom de me desorientar. Na altura, tinha 80% do país contra mim. Saía à rua e chamavam-me de tudo. Ia à seleção e nunca jogava. O único cantinho sossegado era o do Sporting. O que acontece então? Sai o Robson, entra o Queiroz. Era a malta toda para mim: ’tás f*****’.

Há o lendário jantar de despedida do Robson?
Ali no Guincho, depois de um Sporting 1 Beira-Mar 0, golo de Cadete. Os últimos jogadores a sair do estádio foram o Cherbakov e eu, que tínhamos ficado a fazer banhos e massagens. Fomos jantar com o Robson e, depois, muitos jogadores foram para casa dele, a seu convite. Eu fui um deles e ainda convidei o Cherbakov. Só que ele tinha coisas combinadas com os russos do Benfica ou os russos é que tinham combinado com ele e é aquilo que se sabe. Todos acordámos no dia seguinte com a notícia do acidente na Avenida da Liberdade.

E o Queiroz?
No primeiro jogo, em casa, com o Beira-Mar, tirou-me. No segundo, na Luz, também. No terceiro, idem idem. A partir daí, tchau. Logo na primeira semana disse que o Sporting tinha esquerdinos a mais. Porra, é a alegria de qualquer treinador ter abundância de esquerdinos.

Quem eram?
Balakov, Porfírio, eu, Paulo Torres, Leal.

E o Pacheco, riscado?
Esquece. Não contava para o Totobola e ele conseguiu incompatibilizar-se com uma série de jogadores: Balakov, Cadete, Amaral, Marinho. Lembras-te de um jogo europeu do Porto em que dá cinco em Bremen?

Claroooo.
O Porto ia jogar com o Benfica, na Luz, e pediu ao Sporting para treinar em Alvalade. Acreditas que ele não deixou?

Porquê?
Sei lá eu. Uma vez, o jornal A Bola meteu na primeira página ‘Pacheco não joga’ antes de um jogo. Ele não faz outra coisa senão chegar-se ao pé do Vítor Cândido, d’A Bola, e dizer-lhe ‘se pões mais um título destes, o teu filho nunca mais joga aqui’.

O Filipe Cândido?
Esse mesmo, o filho do Vítor. Era um puto cheio de golos nas camadas jovens do Sporting.

Qual foi a maior barraca de todas?
Um dia, Berti Vogts disse mal do Queiroz e colei a reportagem no meu cacifo. No outro dia, um jogador qualquer disse mal do Queiroz e colei a reportagem no meu cacifo. Mais à frente, lia uma reportagem qualquer a criticar o Queiroz e colava-a no cacifo. O gajo viu aquilo e chamou uma reunião de emergência. Chega lá o Cintra com aquela conversa ‘temos de estar unidos, isto é uma família, vamos lá ganhar’. Olha para o meu cacifo e pergunta-me o que é aquilo. E eu ‘isto são mensagens de solidariedade para com a minha pessoa que, infelizmente, só vêm de fora. Aqui dentro, estou sozinho e abandonado Ou você está esquecido que queria aterrar aqui de helicóptero ao meu lado e há três meses que não o vejo.’ O Cintra pediu-me para arrancar aqueles recortes e eu ‘não vou arrancar nada, isto é o meu cacifo e eu é que sei’.

Grande tourada.
O Queiroz estava lá e quis acabar com a discussão. ‘Eu até me vou sentar para ficar ao vosso nível’, disse. Desceu do trono, a criatura. Começa a falar com a malta. Ou a tentar. O Balakov começou a distribuir fruta. Depois foi o Marinho. Quando a cegada acabou, falei com ele e disse-lhe isto: ‘Fui o primeiro jogar a rescindir unilateralmente com o Benfica para assinar pelo Sporting e o mister saiu da seleção depois de dizer aquilo de varrer a porcaria depois do Itália-Portugal. Tanto eu como o mister, só temos esta salvação aqui do Sporting. Vamos lá esquecer as nossas merdas.’

E então?
Foi a pior coisa que fiz. Nunca mais fui tido nem achado. De suplente a esquecido. E desprezado. Uma vez, ele chamou-me ao gabinete e começou a fazer-me perguntas como se estivesse num tribunal, de sim ou não. Estranhei aquele comportamento e ganhei tempo com respostas para o ar enquanto procurava alguma coisa. De repente, vejo um gravador no meio de uma cassete e aquilo estava a gravar. Beeeem, cheguei ao balneário e nem era para dizer nada, só que um dos miúdos, acho que o Peixe, diz ‘eh lá, tens o lombo a arder’. Passei-me. Vamos para o relvado, é hora do treino. Passámos o túnel do balneário e faço um breve comunicado antes de entrar em campo: ‘Malta, isto é assim: ou o mister está a fazer um filme sobre nós ou há aqui qualquer coisa de estranho, porque ele grava as nossas conversas. È assim ou não é?’

E o Queiroz?
‘Faço isso porque vocês dizem uma coisa à minha frente e outra completamente diferente lá em cima, ao presidente.’ Já chega. Só tenho pena que isto tenha acontecido comigo porque tinha só 27 anos e ainda havia muito futebol para jogar. Com o Queiroz no Sporting, fiquei parado ano e meio.

E agora?
Apareceu o Nottingham Forest, da Inglaterra, e joguei no campeonato das reservas. Não posso jogar na liga profissional porque a lei deles sobre a percentagem das internacionalizações não me permite. E agora?, pergunto-te eu. O que faço à minha vida? Benfica, esquece. Sporting, esquece. Vou para onde? O Fernando Mendes, meu colega no Benfica, estava no Belenenses e fala comigo.

O Belenenses?
Olho para a equipa e é só craques a bater nos trinta, como eu. Há Catanha, Fertout, César Brito, Taira, Rogério, Paulo Madeira, Lula, Barny, José Carlos, Neves, Ivkovic, M’Jid, Rui Esteves. O treinador era o João Alves e disse-lhe ‘mister, não vou discutir dinheiro nem ordenado nem nada, pagam-me aquilo que quiserem. Preciso de ajuda, preciso de um amigo.’

Correu bem?
No primeiro dia de treinos, os gajos do bingo do Belenenses fazem uma manifestação a dizer ‘há dinheiro para jogadores e não há para nós’. Um mau indicador, logo ali.

E mais?
Os treinos com o professor Elísio Gouveia, que tinha sido o meu preparador no Portimonense, eram conjunto, pelada, conjunto, pelada. Não havia treino físico. Nada. Zero. Mete colete, tira colete e joga. A equipa titular dá porrada à outra e não há falta nenhuma. Os outros tocam nos titulares e apita-se falta na hora. Mesmo que não seja. Treinam-se então os lances de bola parada. Há então um jogo com o Salgueiros e sou convocado. Fiquei surpreendido e disse isso mesmo ao mister. E ele: ‘vais, vais, tens um nome no futebol português e isso resulta para assustar o Salgueiros.’ Meteu-me a jogar por 10 minutos. Nem podia com uma gata pelo rabo. E há um dia em que ele me mete a titular.

Onde?
Adivinha lá? Em Alvalade. O massagista era o senhor João Silva e já o conhecia há anos e anos. Chamava-o de avô. Ele disse-me que estava proibido de ir lá acima e questionei-o porquê. Só percebi mais tarde. Infelizmente.

Que se passou?
O doutor Lourenço, que trabalhou com Alves no Salamanca e Jesus no Felgueiras, entrava no balneário e fazia o serviço à malta. Eu recusei-me. Então nunca fumei um charro na vida e agora ia meter-me nisso das seringas? Não fumo nem bebo por aí além. Quanto muito, uma Cola com uísque e muitas pedras de gelo. Não, aquilo não me estava a acontecer. Só que o onze já tinha ido para os árbitros e entrei em campo. Aos 37 minutos, o Alves saca-me [Barny também sai nesse minuto].

Xiiiii.
No balneário, a teoria era ‘todos são iguais a todos; se não coiso, não jogas’. Isso foi em meados de Abril. A 1 Maio, chego ao Restelo para treinar e o Nicolau Vaqueiro diz-me ‘estás proibido de treinar’ porque viram-me na noite. Mandei logo marcar uma reunião com todos os diretores dos órgãos sociais. Todos, menos um. Quem é que faltava? Ele [João Alves]. Corri todos a perguntar quem é que me tinha visto na noite. Ninguém me viu. Dirigi-me ao presidente e disse-lhe ‘tenho um processo disciplinar por sair à noite e não fiz nada disso, nem há testemunhas’. Olha, mais uns meses sem jogar nem contrato.

Até quando?
Estava ali naquela mesa, às sete da tarde. Ligou-me um amigo meu, empresário de jogadores ingleses, e diz-me ‘tenho um bilhete Lisboa-Milão para ti, amanhã, se quiseres treinar à experiência na Reggiana’. Cheguei a casa, fiz quatro malas, fui para Lisboa e voei para Milão. No aeroporto, dois ou três directores à minha espera. Em Reggio Emilia, estava marcada uma conferência de imprensa e tudo. Antes, tudo acertado como gente grande: tens três meses de contrato. Se gostares de nós, ficas. Senão, vais à tua vida. A mesma opção para nós. Muito bem, disse eu, bora lá. Era um sonho tornado realidade, o de jogar em Itália. Em 1990, estive muito perto da Lazio, só que o Jorge de Brito não me deixou sair e a Lazio foi buscar o uruguaio Sosa.

Quem jogava nessa Reggiana?
Fillipo Galli, ex-Milan. De Napoli, ex-Nápoles de Maradona. Beiersdorfer, internacional alemão. Adolfo El Tren Valencia, o colombiano maluco.

Maluco mesmo?
Era meu companheiro de quarto e dormia de fato de treino. Cada vez que íamos para estágio, metia duas grades de cerveja debaixo da cama e muitas vezes nem jantava. Não queria saber daquilo para nada.

E o Pacheco?
Fiz 17 jogos no campeonato e marquei um golo, ao Inter. Cruzamento do Sabau e nem a deixei cair. Na baliza, Pagliuca.

A Reggiana manteve-se na 1.ª?
Tínhamos dois grandes problemas: ganhávamos poucos jogos e era uma equipa cheia de estrangeiros, numa altura em que a Lei Bosman ainda estava longe de ser consensual. A imprensa estava sempre em cima de nós, sobretudo dos treinadores. Primeiro, o Lucescu. Depois, o Oddo. Descemos à 2.ª, mas há grandes recordações. Lá, eu tinha um clube de fãs, coisa que nunca tive em Portugal. Todos os jogadores têm, o Futre tinha, por exemplo. O meu era de Sassuolo, que agora joga na 1.ª divisão em Reggio Emilia.

Boa, boa.
Só mais uma recordação. Ou melhor, duas. Fomos jogar com o Milan a Cremona para a Taça de Itália e troquei de camisola com o Weah, num jogo em que a minha caneleira ficou cravada com os pintos do Desailly. O gajo deu-me uma pazada e eu parecia que tinha sido atropelado por um comboio.