PROBLEMA: SCHELOTTO E ZEEGELAAR
Para evocar a escala verdadeiramente geológica da questão, apresento o seguinte facto: em conjunto, estes dois defesas-laterais jogaram mais minutos pelo Sporting do que os minutos gastos por Fábio Coentrão a desbloquear a sua situação fiscal em Espanha antes de poder assinar contrato (e com menos resultados práticos). E ainda cá estão, tecnicamente, mas presume-se que não por muito tempo. Ambos, na verdade, reúnem as condições para irem embora muito depressa. Schelotto, honra lhe seja feita, sempre demonstrou a capacidade para ir embora muito depressa; é talvez a sua característica mais elogiável, embora seja frequente vê-lo ir embora muito depressa na direcçãoerrada, com toda a lucidez táctica de um fluxo piroclástico. Se Schelotto vivesse em Pompeia aquando da erupção do Vesúvio em 79, seria hoje um meme viral: uma figura petrificada, preservada para sempre na postura de quem cavalgava a toda a velocidade direito ao vulcão. Entreguem-lhe uma bola e ele cavalga muito depressa até ao adversário. Entreguem-lhe uma lista de compras pararisotto e ele cavalga muito depressa até à secção do esparguete. Existe aparentemente uma proposta para o levar para o Médio Oriente, a troco de cinco cabeças de gado e uma saca de cereais. O principal risco é que apanhe um avião para o Canadá, portanto esperemos que esteja a ser devidamente assessorado.

Quanto a Zeegelaar, líder isolado dos rankings Opta e GoalPoint no parâmetro “Jogador Que Mais Vezes Obrigou os Adeptos a Erguer As Sobrancelhas Com um Ar Incrédulo”, a explicação mais plausível é que se trata neste momento de um homem paralisado por uma hipertrofia de autoconfiança. O homem deixou o insucesso subir-lhe à cabeça. Acredito que atenda cada telefonema do empresário com genuína perplexidade por o mesmo não lhe apresentar convites do Chelsea ou da Juventus. Não será um qualquer Feyenoord a demovê-lo deste elevadíssimo altar: que hipóteses tem a modesta liga holandesa, quando até o planeta Terra parece demasiado pequeno para os seus talentos? O melhor será enviá-lo para um dos exoplanetas habitáveis cuja descoberta a NASA anuncia de meia em meia hora, e deixá-lo criar sozinho a sua própria equipa, o seu próprio desporto, a sua própria sociedade.

Solução: Se aquilo que ambicionamos é um mero upgrade, a solução estará mais ou menos encontrada. Um Fábio Coentrão que entre em campo com um cigarro em cada mão e um esporão calcâneo em cada pé, e que precise de constantes transfusões de sangue durante o jogo para se manter vivo, não conseguirá jogar pior do que Zeegelaar. E arrisco que Piccini conseguirá jogar melhor do que Schelotto até depois de uma lobotomia – ou até durante uma lobotomia.

E no entanto: será sonhar demasiado alto exprimir o desejo de que se contrate um lateral cujo pai é um diplomata marfinense que se apaixonou por uma advogada uruguaia num baile de máscaras organizado na embaixada em Brasília? Que tenha passado a infância no Brasil, antes de se mudar com a família para Alemanha aos 9 anos, onde foi prontamente integrado na Academia do Borussia Mönchengladbach, tendo alinhado em todos os escalões jovens da selecção do seu país adoptivo, embora não ponha de parte a hipótese de escolher a Costa do Marfim ou o Uruguai para a sua carreira sénior? Que se encontre neste momento tapado num clube do meio da tabela na Bundesliga pelo experiente titular, mas não deixe por isso de custar pelo menos 8 milhões de euros, tendo em conta o seu inquestionável potencial? Que seja rápido, forte, potente, meça 1,85m, exiba peitorais de titânio e tranças oxigenadas, tenha um bom primeiro toque e saiba cruzar por alto, embora prefira o cruzamento rasteiro e atrasado? Que se chame, por exemplo, Maximiliano Cissé ou Juan Ramón Traoré ou Pablito Coulibaly?

Não é um conjunto assim tão utópico de características: é meter o scouting a trabalhar, e passar o cheque.

xeloto

PROBLEMA(S): A VENDA DE RÚBEN SEMEDO, O PÉ DIREITO DE PAULO OLIVEIRA, O PÉ ESQUERDO DE PAULO OLIVEIRA, O TÍTULO DE 1999/00, A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA, A ILUSÃO TÓXICA DA NOSTALGIA
É a característica mais pitoresca do coro dogmático constituído pelos adeptos de um clube durante o defeso: a convicção de que o propósito central do período de transferências é a regeneração da memória colectiva, e a consequente vontade de reproduzir as condições exactas do maior sucesso do passado recente. A juntar a isto, precisamos de um defesa-central.

Solução: Era uma questão de tempo até tentarmos encontrar uma sequela de André Cruz. Um central trintão, experiente, esquerdino, internacional pelo seu país e com passagens por grandes clubes, mas com uma reputação surpreendentemente periférica para a qualidade que tem e o currículo que acumulou. Que seja alto e até algo corpulento, embora com uma pujança mais etérea do que propriamente física, que seja mais esperto do que rápido, mas que se destaque acima de tudo com a bola no pé, que é como vai passar 90% do tempo em 90% dos jogos. Deste ponto de vista, bem vistas as coisas, o principal problema na contratação de Mathieu é ter acontecido agora e não em Dezembro, como medida desesperada. (E não saber marcar livres, o que é uma pena).

PROBLEMA: FRANCISCO DE OLIVEIRA GERALDES CONTINUA A LER LIVROS.
Solução: Pô-lo a jogar, sempre.

PROBLEMA(S): A PROVÁVEL PERDA DE WILLIAM, A NATUREZA EFÉMERA DA FELICIDADE
Não deve passar desta pré-época: William Carvalho vai levar o seu roupão de flanela e banhar-se numa outra cascata de Martinis, lá longe, no estrangeiro. No seu lugar deixa um vazio, mais profundo ainda no coração de quem sabe quão injusto é o cepticismo que o rodeia. Apesar de tudo, é possível que, caso as coisas sejam bem feitas, os adeptos percam mais do que a equipa, que, para usufruir regularmente de uma fracção do seu talento precisa de transcender limitações razoáveis, com benefícios nem sempre aparentes. William joga como um espelho cuja superfície não reflecte a luz, optando por absorvê-la, anexando confiantemente as suas características. E debaixo daquela elegante solidariedade, notava-se quase sempre uma impaciência severa, um juízo moral em plena execução. Resta-nos colmatar a perda dos inúmeros momentos em que sentimos o cérebro subitamente inundado por químicos de altíssima qualidade (um passe imaculado produz muitas vezes este efeito, especialmente quando se é adepto do Sporting) com a sensação semi-exultante e semi-fraudulenta de que se conseguiu algo a troco de nada.

Solução: Antes de mais, assimilar a noção de que a vida continua. De seguida, resistir à tentação de o substituir por uma réplica e apostar num modelo diferente: um trinco brutamontes, que se comporte como um senhor feudal à procura de camponeses para subjugar, e não como um Prometeu moderno, que nos tenta mostrar o segredo do fogo perante o nosso olhar cretino e ingrato.

PROBLEMA: A BIRRA DE AQUILES
É uma história antiga. Na verdade, é a mais antiga de todas: a Literatura começou assim. No último ano da Guerra de Tróia, décima temporada de Aquiles com a camisola dos Aqueus, o valoroso guerreiro sentiu-se desrespeitado por Agamemnon, quando este lhe roubou Briseia (uma escrava de quem Aquiles se tornara personal trainer a título pro bono) e lhe bloqueou uma transferência milionária para o exército Eólio. Aquiles artilhou uma birra épica, retirou-se para a tenda de campanha, e garantiu numa entrevista exclusiva concedida ao pergaminho diário Jogus que não voltava a sair enquanto a situação não fosse resolvida, comportamento de resto caucionado pelo pai, que tratou de explicar a quem o quisesse ouvir que o seu filho “sempre honrou a camisola grega, e não merece ser tratado desta maneira”. A situação ficou bastante complicada, mas Aquiles acabou por ceder e sair da tenda, prometendo dar tudo em prol do grupo de forma a ajudar as tropas de Agamemnon a conquistar os objectivos, mas o certo é que a qualidade das suas exibições no campo de batalha nunca mais foi a mesma, e o seu estatuto entre os adeptos sofreu por arrasto, e portanto cá estamos.

Solução: Vender o homem por 30 milhões a um clube que os queira pagar será o primeiro passo. Para o seu lugar, quem sabe? Bruno Fernandes parece a escolha óbvia, mas discernir as intenções de Jorge Jesus transformou-se numa actividade cabalística, onde se procura adivinhar a sequência correcta dos caracteres que compõem o Nome divino. Há quem olhe para Bruno Fernandes e veja alguém que pode ter um papel semelhante ao de João Mário, derivando das linhas para fornecer apoios interiores. Há quem olhe para Marcos Acuña e veja alguém que pode ter um papel semelhante ao de Adrien, uma espécie de charrua topo de gama para lavrar o terreno inteiro entre duas áreas. Battaglia, cujas características serão talvez as mais semelhantes, fica a perder em termos estritamente qualitativos, e parece aliás ser candidato a uma posição mais recuada.
Ou seja, a época pode teoricamente começar com um médio-centro adaptado á faixa direita, um médio-ala adaptado ao centro do terreno, e um todo-o-terreno adaptado a trinco posicional. É um cenário intrigante (e que não creio vir a cumprir-se), mas que colocaria estimulantes dúvidas adicionais. Como se comporta Jorge Jesus no seu dia-a-dia? O que faz, por exemplo, quando lhe apetece comer um prego? Compra uma carcaça e um bife de vaca? Ou compra uma almofada e uma courgette e tenta adaptá-las?

PROBLEMA: ORÇAMENTO
De acordo com a internet, continua a existir uma situação de seu nome VMOCs, com respectivos “prazos de conversão”, que pelos vistos não sei quê e não sei que mais.

Solução: Aprender a pronunciar a palavra VMOC de forma mais criativa – o “O” homossexualmente prolongado, um semi-mudo “E” antes do “M” – como se invocássemos o nome de um obscuro poeta simbolista francês, e conduzir todas as conversas, especialmente com adeptos de clubes adversários, para esse campo (“pouca gente fala na profunda influência em Apollinaire da obra de Vemôque”, etc).

PROBLEMA: IURI MEDEIROS
Iuri Medeiros não é propriamente um problema, mesmo que não saibamos ainda o que é. Sabemos o que parecia ser, e sabemos o que pode vir a ser, que são duas coisas algo diferentes, e o jogador lá vai deambulando de empréstimo em empréstimo com este ontologicamente problemático estatuto.

Num conto de Henry James intitulado The Private Life, há uma personagem chamada Lord Mellifont, universalmente reconhecido como a figura mais carismática de toda a Grã-Bretanha, com o dom de dizer sempre a palavra certa na situação certa, e a capacidade para dominar qualquer grupo onde seja inserido. A dada altura no conto, outra personagem (e o leitor) faz uma descoberta assombrosa: Lord Mellifont só existe na presença de terceiros, e desmaterializa-se quando sozinho. A temporária não-existência é o preço da sua enérgica e assídua incisividade: “que outra forma de repouso”, pergunta o narrador, “poderia restaurar tamanha plenitude de presença?”

Gelson Martins e Podence jogam como talentos precoces de 16 anos, e continuarão a jogar dessa maneira durante muito tempo; Iuri joga como um veterano de 34, e joga dessa maneira pelo menos desde os juvenis: como quem protege o segredo do seu declínio, como quem se sabe obrigado a conservar energias, como quem aposta as fichas todas num ataque furtivo e quase sempre bem sucedido. É o equivalente futebolístico a um submarino, cuja eficácia depende de não ser visto até ser tarde demais. Apesar da aposta contra-intuitiva em Alan Ruiz (que, no somatório de qualidades e defeitos, tem mais em comum com Iuri Medeiros do que com qualquer outro jogador do plantel), sabe-se que o actual treinador prefere lanchas rápidas a submarinos atómicos, e que o seu naipe de preconceitos tem menos a ver com tipologias físicas do que com estilos de intensidade. O que ele quer é alguém 90 minutos ligado à corrente, e não quem aparece cinco vezes por jogo a carregar no botão para uma demolição controlada.

Solução: A tentação é escrever “Iuri Medeiros”, mas Iuri Medeiros não é propriamente uma solução para o problema de Iuri Medeiros, mesmo que não saibamos ainda o que é. A solução alternativa é espatifar 16 milhões de euros em Pity Martinez, que a julgar por três jogos e alguns vídeos do YouTube, já fez mais cuecas na vida do que a Victoria’s Secrets, e rezar que tudo corra bem.

Rogério Casanova brinda-nos regularmente com pérolas como esta no Expresso.