Viagem à história da nossa número 9, numa entrevista concedida ao Expresso

 

Era uma criança traquina?
Muito. Fazia de tudo. Muitas vezes as vizinhas diziam que o meu irmão é que era a menina e eu o rapaz, porque eu fazia coisas que eram impensáveis uma rapariga fazer.

Por exemplo?
Cheguei a meter lixívia num balde e atirar para a cabeça de alguém. Uma vez, quando me puseram de castigo, parti a porta do quarto.

Fez a escola onde?
Em Gouveia, até ao 9º ano.

Gostava da escola?
Não era má aluna de todo mas também não era boa, era um meio termo. Havia disciplinas de que não gostava, como inglês, matemática e fisico-química.

Só fez o 9º ano?
Não, ainda fui para a Guarda fazer o 10º ano, em desporto, mas quando ia para o 11º ano surge a primeira oportunidade de ir jogar para fora.

Como surge o futebol na sua vida?
Jogava muitas vezes na rua ou num ringue perto de casa, com o meus irmãos e amigos da aldeia. Depois a Sílvia Rebelo disse-me para ir jogar para a equipa dela, mas eu dizia que não queria jogar com raparigas, queria era jogar com os rapazes. Na altura não sabia que havia campeonato feminino, nem seleção. Não fui. Passou um ano e um dia, um vizinho, o António, convidou-me para ir com ele a um treino da Fundação Laura dos Santos. Fui e já não queria voltar (risos). De não querer jogar futebol feminino, passei a já não querer voltar para casa porque tinha adorado a experiência. Fiquei lá a jogar. Eles inscreveram-me no campeonato distrital.

Começou a destacar-se logo?
Sim, até porque em Gouveia não havia tantas raparigas que soubessem jogar, nem a Fundação tinha uma equipa tão grande como a Guarda, que tinha mais opções de escolha. Muitas inscreviam-se só para poder sair um pouco de casa e estar com as amigas. Eu gostava mesmo de jogar. Por isso desde início que me destaquei.

Em que posição jogava no início?
Era central. Nunca joguei lá na frente. Só comecei a jogar na frente na seleção, quando viram que era muito rápida. A partir daí é que começaram a apostar em mim para extremo, mas sempre joguei em posições muito defensivas.

Depois da Fundação Laura dos Santos vai logo para Espanha. Com surge esse convite?
Comecei na Fundação com 13/14 anos e fui para Espanha com 17 anos. Na altura os meus pais tiveram de assinar uma autorização. O Prainsa Zaragoza viu videos da seleção no YouTube e entraram em contacto comigo através de pessoas da Federação Portuguesa de Futebol. Na altura disse logo que sim, os meus pais é que ficaram com mais receio. Tive algum trabalho para os convencer.

Como os conveceu?
Mostrei-lhes os vídeos que me iam mandando do clube, na altura estavam lá outras portuguesas, a Edite Fernandes e a Sónia Matias.

Quando é que foi chamada pela primeira vez à seleção?
Ia fazer 16 anos, fui para a seleção de sub-19.

Porque é que aceitou ir para Espanha?
Eu nem pensei. Não pensei que ia deixar cá os meus pais, irmãos, amigos, que a língua era diferente e que não vinha a casa todos os fins de semana. Claro que quando cheguei lá é que dei conta disso tudo.

Foi sozinha?
Fui. Fui viver para um apartamento onde já estava uma jogadora argentina e passada uma semana chegou a Cláudia Neto. A Edite e a Sónia já lá estavam mas eu não as conhecia, só de nome, porque elas eram da seleção A.

Como foi a adaptação?
Foi fácil. Sempre foi. Nunca senti dificuldade em integrar-me porque falo muito.

Notou muita diferença ao nível do futebol?
Sim, até porque eu jogava numa distrital e fui jogar na I divisão. Elas já recebiam salário, mesmo com 15/16 anos. Cá não. Eles pagavam casa, alimentação, os treinos eram diários e sempre à mesma hora. Cá treinávamos três vezes por semana, às vezes duas vezes por causa dos testes e dos trabalhos de algumas jogadoras.

E os estudos, retomou?
Ainda pedi transferência mas tinha de ir estudar para uma cidade que ficava a um hora de Saragoça e não deu para conciliar.

Qual o valor do seu primeiro ordenado?
300 euros.

Lembra-se da primeira coisa que comprou para si com esse dinheiro?
Não me recordo. Mas das primeiras coisas deve ter sido um telemóvel, porque eu tinha um muito rasca e sei que depois fiquei com um bom.

Qual a maior diferença que sentiu em Espanha?
Eu cá jogava num pelado, em que as chuteiras gastavam-se num mês, e quando lá cheguei passei a jogar em sintético ou relvado, nunca joguei num pelado. Isso foi um grande impacto. Depois, estava habituada a ter só os pais a ver-me jogar e quando lá cheguei havia público, muita gente a ver.

O que mais custou?
Ao início eram as noites, quando pensava mais na minha mãe e via fotografias dos meus amigos nas festas. Sentia mais saudades. Lembro-me que quando vim a Portugal pela primeira vez, no Natal, depois já não queria voltar para Espanha.

Quem a convenceu?
A minha mãe e irmã mais velha fizeram-me ver que havia muita rapariga que queria ter a oportunidade que eu estava a ter e que não devia deitá-la fora. A partir daí custou menos, não pensei mais em saudades.

Deve ter muitas histórias para contar desses tempos em Espanha.
Assim de repente, não me recordo de nada de especial… Uma vez , fui a um cabeleireiro porque tinha o cabelo muito comprido e estragado. Fui com a Edite, com a Sónia e com a Cláudia. Perguntaram-me mil e umas coisas mas não percebia nada do que me estavam a dizer e fui respondendo sempre que sim. Sai de lá quase parecia um rapaz. Cabelo cortado a direito. Lembro-me que quando me vi ao espelho, não chorei, mas fiquei com vergonha de sair à rua.

Quando não tinha treinos como ocupava o tempo?
Aproveitei para tirar a carta de condução, para ocupar mais o tempo. Fui com a Sónia. Tinha 19 anos. A seguir comprei um Mercedes CLK (risos).

Não teve nenhum acidente?
Não, nunca. Só o deixava ir abaixo, às vezes.

É crente?
Sim, muito. Não sou de rezar ou de ir à igreja todos os dias, mas sempre que tenho oportunidade entro numa igreja e vou ao Santuário de Fátima.

Depois de quatro épocas no Prainsa Zaragoza foi emprestada ao SC Blue Heat, dos EUA, em 2012.
Sim. A Edite já lá tinha estado lá no verão, quando eles fazem a liga deles e tinha gostado. Como coincidia com as férias decidi aceitar o convite para ver como era. Disse logo que ia só por três meses. Se fosse por um ano não queria porque os EUA são muito longe e não podia vir a Portugal com a mesma rapidez como em Espanha.

Gostou da experiência?
Sim. No primeiro ano fui com a Edite e com a Laura Luís. Ficámos em casa do presidente do clube, que era mexicano. Estava era um calor húmido insuportável! Eu passava o dia na piscina da casa dele. Mesmo quando tínhamos jogo à tarde e ele dizia que eu não podia ir para a piscina, às oito da manhã já lá estava a apanhar sol e a mergulhar. Saí de lá negra! Eles trataram-nos como filhas. Eu e a Laura parecíamos as filhas do presidente, e a filha dele não. Toda a gente na rua nos falava.

E o futebol, era muito diferente?
Muito. Jogam mais com o físico. Já não era tanto bola no pé, era mais bater as bolas lá na frente. O futebol inglês e americano é muito idêntico. Muito físico. Ao pé delas sou pequenina, magrinha. Mas tinha mais velocidade e isso ajudava porque metia a bola para frente e corria. Se parasse à frente delas levava uma porrada que me metiam fora do campo.

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Desses tempos nos EUA não tem nenhuma história para contar?
Lembro-me que no primeiro ano em que cheguei lá ia com muito medo de uma determinada jogadora, que dois anos antes tinha sido suspensa do futebol por ter agredido, puxado os cabelos, uma outra jogadora durante um jogo. Ela era do Blue Heat e na altura eu só dizia que queria ficar com ela na mesma equipa dos treinos (risos). Mas depois começámos a falar com ela e percebemos que é um doce de pessoa. Foi um momento de loucura que ela não sabe como explicar mas que mudou radicalmente a vida dela. Foi muito mau, teve de mudar de casa e tudo, porque tinha os jornalistas todos os dias à porta. Mas afinal, ela era um doce de pessoa e com quem nos dávamos melhor nos EUA.

E saídas à noite?
Nunca fui muito de saídas. Era mais caseira. Só no último ano em que estive no Zaragoza é que comecei a sair mais. Já tinha outra confiança.

Depois do Zaragoza segue-se o Atlético de Madrid. Outra realidade ou nem por isso?
Eram outras condições. Eles tinham futebol masculino, era outro nome, com outro peso. Se antes já éramos responsáveis ali tínhamos de ser mais ainda pelo que fazíamos, as horas a que íamos para casa, etc. Lembro-me que mal chegámos ao Atlético de Madrid demos uma mini festa em casa, eu e outras jogadoras espanholas, e passados uns minutos a polícia veio bater-nos à porta porque estávamos a fazer muito barulho. Foi um bocado complicado porque foi logo no primeiro dia.

Quem fazia a gestão de casa?
Cada uma ia as compras conforme lhe dava mais jeito, às vezes faziamos refeições juntas, uma cozinhava para as três, outras vezes não. A única coisa que fazíamos sempre juntas era a limpeza. Tínhamos uma escala no frigorifico.

Como surge o Chelsea?
O Chelsea surge se calhar no pior momento. Na altura, no Atlético, mandaram embora o treinador e foi para lá um que não nos conhecia de lado nenhum, nem sequer conhecia os nomes das jogadoras, dizia que eu era colombiana, e a partir daí comecei a ficar sem interesse em ficar em Espanha. Por outro lado sentia que já não estava a progredir. E surge o convite do Liverpool. Falaram comigo durante um mês, mas nunca assinei nada. E, na última semana em que supostamente ia dizer que sim ao Liverpool e assinar o contrato, o Chelsea mete-se no meio e passado dois dias assino pelo Chelsea.

Porquê o Chelsea?
Porque o Liverpool era uma equipa grande, já tinha ido à Liga dos Campeões, já tinha sido campeão inglês, já tinha ganho a Taça de Inglaterra e o Chelsea era uma equipa que estava a crescer.

Teve medo do tamanho do Liverpool? Teve medo de não se adaptar?
Exato. Dar um passo tão grande para depois a queda ser enorme… Sempre fui de dar passos pequenos e depois um dia logo se via. E assim aceitei ir para o Chelsea. Lembro-me que nesse ano o Liverpool foi campeão porque nós perdemos na última jornada, foi campeão por um golo, nem sequer foi por pontos. Mas não me arrependo nada.

Como foi a adaptação a Inglaterra?
Mesmo não falando muito inglês, foi uma adaptação fácil. Estive no Zaragoza muitos anos mas o Chelsea é mesmo a minha segunda casa. É a equipa que mais me marcou. Fui muito bem recebida. Quando cheguei não treinei, íamos ter um jogo com o Everton e a treinadora disse-me para não me preocupar que ia ser feito tudo com tempo, mas que se calhar poderia acontecer eu jogar uns minutos logo naquele primeiro jogo. E de facto, aos 60 e tal minutos entrei. E lembro-me que, cinco minutos depois, eu não podia nem com a alma, porque era um futebol tão físico, correr para ali, correr para aqui que parecia que ia desmaiar a qualquer momento. Só pensava que não ia aguentar. Entretanto, passados cinco minutos faço o 2-1, e o jogo acaba com esse resultado.

Foi uma estreia heróica e auspiciosa.
Correu bem o jogo, marquei e tive outros lances em que também podia ter marcado. A partir daí fui ganhando minutos, fui jogando mais, os jogos foram correndo bem, embora, claro, ao fim de 10 minutos já estava “morta”. A treinadora dizia-me que eu ia precisar de tempo porque tinha acabado de sair do Atlético e fui logo para o Chelsea, não tinha tido descanso nenhum. Foram impecáveis.

Foi aí que começou a fazer trabalho de ginásio?
Sim, passei a fazer ginásio todos os dias e às vezes treinávamos duas vezes por dia.

Sentiu que melhorou a sua condição fisica?
Sim. Eu digo que não gosto de ginásio e que a mim não me favorece muito porque sou mais de velocidade e sinto que perco. Mas ganho em resistência. Se calhar se não fosse o ginásio tinha lesões.

Alguma vez teve uma lesão mais séria?
Logo no início, quando comecei a jogar na Fundação, tive uma ruptura parcial dos ligamentos e fiquei um ano sem jogar, só a fazer tratamento. Mas nem me apercebi bem o que era, tinha 14 anos e ainda muitas incertezas. Se fosse agora ia mais abaixo psicologicamente.

Ao que foi mais difícil adaptar-se em Inglaterra?
Ao clima. Gosto de ir à praia, de apanhar sol e lá é todo ano escuro, cinzento. Elas quando viam um raio de sol vinham logo para a rua mesmo que estivessem só 5 graus! Quando vinha a Portugal chegava lá mais morena e elas ficavam invejosas do meu bronze. Elas só ficam vermelhas (risos).

Como surge o empréstimo ao Sporting na época passada?
Eles mudaram o campeonato em Inglaterra, agora já é como o nosso, de setembro a junho, mas na altura ia ficar seis meses sem jogar, de janeiro a junho, e havia depois o Europeu feminino, não era bom ficar parada. Isso coincidiu com a criação da equipa feminina do Sporting e do Sp. Braga. Entre uma e outra, fui atrás do coração.

É do Sporting?
Desde que vinha na barriga da minha mãe.

Porquê, lá em casa é toda a gente do Sporting?
Não. Era só eu. Agora a minha mãe já puxa pelo Sporting. As minhas irmãs são do FC Porto. Um dos meus irmãos e o meu pai são do Benfica. Só o meu irmão mais velho é que é do Sporting. A minha mãe dizia que era do Boavista.

Consegue perceber como é que começa a gostar do Sporting?
Não sei, acho que era a única com juízo na família (risos). Sei que sempre fui do Sporting. Muitas vezes diziam a mim e aos meus irmãos que se mudássemos de clube davam-nos isto ou aquilo, e os meus irmãos mudavam. Eu não. Nunca mudei. A minha irmã mais nova era do Benfica, e depois tornou-se adepta do FC Porto. Eu, por mais que me dissessem que me davam isto ou aquilo, não mudava.

Como é que foi regressar a Portugal? Foi melhor do que estava à espera, mais difícil?
Ao fim e ao cabo eu nunca joguei num campeonato nacional ou numa II divisão em Portugal, joguei numa distrital, por isso não sabia como seria. Claro que agora noto a diferença a nével competitivo. Há muita diferença entre um jogo Sporting-Sp. Braga e um Sporting-CAC Pontinha, por exemplo.

O Portugal que encontrou agora é muito diferente daquele que deixou há dez anos?
Sim, a todos os níveis. Agora o futebol feminino já é visto de outra maneira ao nível da comunicação social. O futebol feminino está a evoluir aos olhos de toda a gente e isso é uma mais valia para nós. O facto de regressarem muitas jogadoras que estavam fora, também ajuda. Mas ainda há muito caminho a percorrer.

Assinou por três épocas com o Sporting. Era o que queria?
Sim. O Chelsea não queria deixar. Mesmo quando surgiu a hipótese de empréstimo para o Sporting as minhas colegas foram falar com a treinadora para não me deixar sair. Eu disse que vinha por empréstimo mas que ia voltar.

Mas acabou por ficar. Porquê?
Foi o facto de ter estado muito tempo longe de casa.

Gostou deste reencontro com a família, os amigos e o país?
Sim. Se bem que aqui também não vou a casa todas as semanas, mas estou mais perto, posso dar mais apoio. Foram dez anos fora. A minha mãe entretanto era para ser operada, os meus avós também tiveram problemas de coração, e a minha irmã mais nova é que estava a levar com tudo. Achei que estava na altura de voltar. Tenho 27 anos, sei que se calhar ainda tenho três/quatro anos de futebol, mas algum dia tinha de voltar e acho que o Sporting surgiu na melhor altura.

Desde a primeira vez que foi para fora e esta última, em que veio para cá, mudou muito a maneira de fazer as malas?
(risos). Ao início como não sabia o que esperar, se ia ter lençóis na cama, etc, levei tudo. Agora já não. Já sei o que tinha, o que podia ter, o que podia esperar, o que não devia levar. A carga vai diminuindo.

Está a viver onde?
Em Alcochete, num apartamento com mais duas colegas, a Bruna e a Capeta. O ano passado vivia com a Solange e com a Amélia.

Habituou-se a viver sempre com colegas de equipa. Gosta ou já está farta?
Claro que há momentos em que preferimos estar sozinhas e ter o nosso espaço, mas depois olhamos para o lado, e não ter ninguém para falar… isso também é uma solidão muito grande.

Tem o 10º ano. E agora?
Gostava de fazer pelo menos o 12º ano, porque sem isso não se consegue nada. Mas confesso que ainda não pensei muito no que quero fazer depois do futebol. Sei que está na altura de começar a pensar nisso.

Vê-se ligada ao futebol no futuro?
Acho que não quero ficar ligada ao futebol. Isto começa a cansar um bocadinho, porque não temos outra vida, é ir para os treinos, estágios, seleção.

Como é que fica a vida amorosa no meio disso? Consegue ter uma vida amorosa?
Não. É muito difícil.

Passa-lhe pela cabeça casar, ter filhos?
Ter filhos sim, casar não.

Porquê?
Não sei. Não acredito muito no casamento. Se calhar porque os meus pais estão separados. Agora filhos quero, de preferência um ou dois meninos, não quero meninas.

Porquê?
Não sei. Nunca quis.

O que guarda de melhor da presença no Europeu da Holanda?
O melhor, os momentos que passamos lá, os jogos, o que crescemos com estas equipas nesta fase que jogámos contra as melhores. O pior foi mesmo aquele sabor amargo de não termos conseguido ter passado à fase seguinte por um golo. Faltou-nos experiência e sorte.