Esta semana não vou falar de Sporting, a não ser os valores que vão poder encontrar nesta história. São pessoas, como eu e vocês, com Amor ao Rugby, e com os seus valores enraizados, em todas as acções e desta forma, na sua forma de viver. Para a semana voltamos ao registo habitual. Desfrutem!
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Um jogador de rugby aprende desde tenra idade a vertente técnica da modalidade e os valores de um desporto que se rege por princípios próprios que prevalecem e se enquadram na vida dos seus praticantes mesmo para além da sua carreira desportiva. Manuel Cortes e António Abreu, dois antigos praticantes, levaram mais longe a sua experiência no rugby, tendo decidido partilhá-la com uma camada social muitas vezes marginalizada, mas sempre necessitada de novos caminhos e de novas aprendizagens e a quem os valores do rugby podem ajudar a amenizar as dificuldades que a reclusão acarreta, auxiliando também na reintegração na sociedade.

Assim nasceu a Associação Rugby – Com Partilha que, como contam Manuel Cortes e António Abreu em entrevista à FPR, nos últimos dois anos tem sido responsável por levar o rugby e os seus valores para o meio prisional.

Como surgiu a ideia de levar o rugby aos estabelecimentos prisionais?

Manuel Cortes – Um dos fundadores deste projecto foi desafiado para ir falar e testemunhar sobre rugby num encontro chamado “Meeting Lisboa”, em 2014, cujo debate tinha o título “Dá-te mais que o impossível, se me deres a tua mão”. O testemunho enquanto antigo jogador focou-se sobretudo no que o rugby como desporto de equipa contribuiu para formação como pessoa e o que isso o ajudava enquanto pai de família e profissional. Desafiei a estar presente e a testemunhar a Maria Gaivão, responsável pelo projecto da Escolinha de Rugby da Galiza, para poder completar no aspecto prático aquilo que o rugby pode actuar em ambientes mais vastos e que à partida não seriam os habituais num país em que o futebol é rei. No fim do encontro, um dos assistentes perguntou-me se estaria interessado em levar a experiência do rugby às Casas do Gaito ou aos estabelecimentos prisionais, tendo respondido que aceitava o desafio das prisões. Porque o rugby é um desporto de equipa, desafiei um amigo que sabia que não só partilhava a paixão pelo rugby e reconhecia nele uma experiência que merece ser partilhada. Também fomos influenciados pelo que se passa nas prisões da Argentina, onde já existem mais de trinta equipas dentro dos estabelecimentos prisionais.

Como tem corrido a experiência e como está a ser a aceitação pelos reclusos?

António Abreu – Superou as nossas expectativas em todos os sentidos. Fazer uma coisa que gostamos e, ao mesmo, sermos úteis a alguém é duplamente gratificante. O rugby é um desporto singular e, arriscaria a dizer, único. Apesar de pouco conhecido em Portugal e de ser associado a alguma violência física, é um desporto impregnado de valores e princípios. Os reclusos cedo percebem que começam a fazer parte de algo diferente. O ditado “primeiro estranha-se depois entranha-se”, aplica-se na perfeição.

Qual o contributo que os valores do rugby podem ter para ajudar os reclusos no presente e na sua vida futura em liberdade?

António Abreu – Ninguém tem dúvidas que o rugby é diferente e essa diferença faz-se sentir de forma muito própria e duradoura. O respeito pelo próximo, a capacidade de superação nas dificuldades, o sacrifício por si ou pelo camarada de equipa, o sentido de responsabilidade, o trabalho em equipa são princípios essenciais no rugby mas também para a vida em comunidade. Por outro lado, a família do rugby tem uma grande capacidade de acolher e integrar.

Que apoios têm tido e que apoios gostariam de ter?

António Abreu – Não procuramos apoios para grandes projectos ou obras futuras. Queremos ir devagar e sentir que a comunidade adere, sensibilizada para a realidade prisional e a reinserção inevitável dos reclusos. Claro que o apoio institucional por parte da Direção-Geral dos Serviços Prisionais foi e é essencial, bem como o de toda família rugbistica, incluindo a FPR. O maior apoio que pedimos é o suporte que toda a sociedade nos possa dar, envolvendo-se de forma activa neste projecto. E de forma concreta em face das necessidades, cedendo, por exemplo, equipamentos para os reclusos. Iremos também precisar de colaboradores e colaboradoras que estejam dispostos a assumir o compromisso de partilhar a sua experiência de rugby nos estabelecimentos prisionais masculinos e femininos.

Como são os treinos do projecto?

António Abreu – Não é fácil treinar ou jogar rugby num estabelecimento prisional, onde ninguém sabe como se joga, quais são as regras e onde podem ver o rugby como um jogo onde vale tudo. Mas até nisso o rugby consegue ser diferente. É um desporto altamente agregador, havendo espaço para todos, sejam gordos ou magros, altos ou baixos. Um dos nossos receios era saber como introduzir o contacto e como iria reagir um jogador com 2 metros de altura e mais de 100 quilos quando fosse placado. Será que iria começar tudo à tareia? Então, num treino onde estava como convidado um técnico da federação inglesa de rugby, de uma forma muito espontânea foi realizado um exercício com contacto e correu muito bem. Por tudo isto, podemos afirmar que um treino em Alcoentre, no Linhó ou em outro qualquer estabelecimento prisional é praticamente igual a um treino num clube.

O que sentem depois de cada treino?

António Abreu – Esta pergunta podia ser difícil de responder, mas é fácil. Sentimos vontade de voltar o mais rapidamente possível! Aliás, o emblema da Rugby – Com Partilha, que foi feito depois de bastantes treinos com os reclusos, tem inscrito o mote em latim “Centuplus”, que significa: “um por cem”. Ou seja, nós damos um do nosso esforço e recebemos cem de recompensa pela amizade e reconhecimento dos reclusos.

Qual seria o melhor desfecho para este projecto?

Manuel Cortes – Quando começamos, não sabíamos qual seria a aceitação, quer a nível institucional do sistema prisional, das organizações ligadas ao rugby, nomeadamente da FPR e dos clubes, e sobretudo daqueles a quem se dirige: os reclusos. Em termos institucionais, estamos agora perfeitamente suportados com protocolos com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e a FPR, o que nos vai abrir portas junto dos vários estabelecimentos prisionais. Quanto aos reclusos, no Estabelecimento Prisional de Alcoentre o testemunho recente de um deles fala por si. Disse-nos que quando começaram os treinos, por vezes não lhe apetecia, por serem aos sábados de manhã, que é o dia livre que têm. Mas por respeito à equipa do Rugby – Com Partilha, que sabia que vinha de Lisboa, lá acabava por aparecer. Com a continuidade dos treinos, começou a gostar cada vez mais e agora, que vai sair em liberdade, perguntou se poderia continuar a treinar no Estabelecimento Prisional de Alcoentre. Ou seja, o melhor corolário seria que todos os reclusos que passaram por esta experiência fossem influenciados pelos valores do rugby e os colocassem em prática nas suas vidas. Para nós, se isso acontecesse, já teria valido a pena. A frase que era o mote da intervenção sobre rugby no Meeting Lisboa 2014 – “dá-te mais que o impossível, se me deres a tua mão” -, tem vindo a ser concretizada, porque seria impensável que decorridos mais de dois anos, este projecto tivesse chegado onde chegou. Sendo certo que muito ainda há a fazer, nomeadamente na reinserção dos reclusos e na implementação do projecto nos vários estabelecimentos prisionais.

 

*às quintas, o Escondidinho do Leão aparece com uma bola diferente debaixo do braço, pronto a contar histórias que terminam num ensaio