Vale a pena espreitar esta entrevista ao Ricardo (“é miiiiiiiiiiinh… ups) enquanto fazemos tempo para acompanhar os jogos dos juvenis, em casa do Sintrense, e dos iniciados, na Academia, frente ao Loures (começam ambos às 11h).

ricardotaçaO que faziam profissionalmente os seus pais quando nasceu?
A minha mãe era empregada de escritório e o meu pai conduzia camiões. E tinha o negócio dele, fornecia bebidas e outras coisas a cafés e restaurantes ao fim de semana. Eu trabalhei muito para o ajudar quando era novinho.

Tem irmãos?
Tenho um irmão mais novo 10 anos que é barbeiro.

Cresceu no Montijo?
Nascido, vivido e criado no Montijo. Saí diretamente do Montijo para o Boavista, quando ia fazer 19 anos.

Já lá vamos. Era uma criança calma ou irrequieta?
Muito irrequieta. Não devia ser eu a dizer isto, mas era inteligente, dos mais inteligentes, tinha muito boas notas, que eram sempre castigadas pelo comportamento. Por ser irrequieto. Com cinco anos fazia ditados sem erros, já era o exemplo da nossa ama, onde eu e a minha mulher andávamos. Os meus cadernos e os meus trabalhos eram um exemplo, ainda hoje são para os mais pequeninos. Só que tinha esse lado, não conseguia estar quieto. Tinha tudo cincos ou excelentes, mas quando chegava ao comportamento… era a parte que fazia o meu pai dar-me algumas palmadas (risos).

Estudou até que ano?
Até ao 12º ano. Fui bom aluno. Tirei sempre as notas que precisei. Tive a felicidade de crescer num sítio e num tempo em que os nossos professores eram quase como uma extensão da família. Ajudaram-me muito, sabendo da paixão que eu tinha pelo futebol. Quando comecei, com 17 anos, a trabalhar com o plantel profissional do Montijo, tive de começar a estudar à noite, por causa dos treinos. Sabendo eles das capacidades que eu tinha, foram-me ajudando naquilo que podiam. Quando fui para o Porto ainda me inscrevi na faculdade, em Desporto, mas era complicado conciliar as duas coisas.

Como é que nasce a sua paixão pelo futebol, lembra-se?
O futebol nasceu, como nascia na altura, na barriga da nossa mãe (risos). A bola era o brinquedo que tínhamos. Não havia telemóveis, não tínhamos computadores, mas uma bola todos tinham, e quem tinha uma bicicleta era o rei da rua. As nossas brincadeiras eram o berlinde, o pião, a corrida de carrinhos e jogar futebol. Saíamos de casa sábado de manhã e voltávamos domingo à noite. Não havia este clima de insegurança que existe hoje. Os nossos pais imaginavam mas não sabiam onde é que nós andávamos. Jogávamos nos bairros, corríamos o Montijo todo.

Começou a jogar num clube com que idade?
Ganhei o meu primeiro título com 11 anos, nos distritais infantis…Comecei com 10 para 11 anos.

Nessa altura já jogava a guarda-redes?
Eu ia alternando entre ponta-de-lança e guarda-redes, mas jogava mais vezes à baliza.

De que posição mais gostava?
Não era gostar mais; adorava marcar golos. Sempre tive apetência para marcar golos e adorava celebrar porque era o contraste de estar na baliza. Na baliza, a celebração era só quando acabava o jogo e se ganhávamos. Na baliza eram mais as frustrações quando a bola entrava.

Foi alternando a pedido do treinador?
Não, a meu pedido. Eu insistia muito para me deixarem jogar a ponta-de-lança e de facto quando jogava fazia golos. Só que chegou uma altura em que o treinador Eusébio, do Clube Desportivo do Montijo, viu que eu tinha capacidades e disse-me: “Ricardo, a partir de agora, comigo, ou jogas à baliza ou já não jogas mais. Se quiseres ser o melhor tem que ser à baliza”. E assim foi.

Tinha quantos anos quando ele lhe disse isso?
Uns 16/17 anos.

Só esteve uma época na equipa principal do Montijo.
Nem foi uma época. Fiz uma época a treinar com os seniores, até que o Montijo trocou de treinador à 14ª jornada; saiu o Rogério Dias e entrou o mister Mário Nunes. Foi a minha sorte porque ele decidiu pôr-me a jogar. Fiz 20 jogos no plantel principal, até ao fim do campeonato, e foi quando me resgataram para o Boavista.

A sua mãe foi o seu maior apoio nessa altura.
Foi quem sempre me protegeu, porque o meu pai não queria que eu fosse para o futebol. Queria que eu estudasse e seguisse o trabalho dele, porque o futebol não era uma vida certa. O meu pai sempre foi uma pessoa de muito trabalho, muita dedicação e muito sacrifício. Ele queria que o filho seguisse as pegadas dele. E, algumas vezes contrariado, porque queria treinar e jogar, tive de ir ajudá-lo nas coisas dele. O meu pai só começou a convencer-se mais quando comecei a jogar no plantel principal do Montijo. Foi aí que a proteção da minha mãe começou a ficar mais a descoberto.

Quem vem buscá-lo para o Boavista?
É uma história gira, porque eu não era para ir para o Boavista, era para ir para o Vitória de Guimarães, mais um colega meu que era ponta de lança da equipa, o Nuno, não me recordo do apelido, nós chamávamos-lhe o “Baila”. O Manuel José soube que o Quinito ia buscar-me ao Montijo para me levar para o V. Guimarães, pôs as suas influências a mexer e dois responsáveis do Boavista apareceram nessa tarde em minha casa no Montijo. E falaram com a minha mãe que estava em casa.

O que lhe disseram?
Que eu ia ao Porto fazer umas provas e que não se preocupasse. E levaram-me. Foi assim que eu fui parar ao Boavista. Quando cheguei, estive uma semana à experiência para o mister ver-me a atuar, vim fazer o último jogo do campeonato pelo Montijo, no Algarve, e quando regressámos ao Montijo estava o falecido Juca, do Sporting, reunido com o presidente para eu assinar pelo Sporting. Eu disse que já não podia assinar porque já tinha assinado com um clube da primeira divisão também, o Boavista.

Onde é que ficou instalado nessa primeira semana à experiência no Boavista?
As coisas não eram como hoje. Fui para uma pensão muito perto do estádio, era uma coisa familiar e a senhora tratava-me muito bem, não me faltava nada.

Foi sozinho?
Fui.

Tinha quantos anos?
Ia fazer 19.

Foi a primeira vez que esteve mais tempo sozinho longe da família?
Sim. No princípio não foi fácil, mas tive a sorte e a felicidade de ir parar a um clube em que toda a gente me fez sentir logo em casa. Tive uma grande empatia com os mais velhos, eles viam em mim alguém que queria aprender e que se dedicava muito ao trabalho e ao treino. Levavam-me a almoçar e a jantar. Fiz logo amizades que ajudaram a estreitar mais as saudades e aquele sentimento de estar sozinho.

Esse contrato com o Boavista foi o seu primeiro contrato profissional?
No Montijo, quando me passaram a profissional disseram-me que ia ganhar 50 contos. Mas só me disseram porque eu nunca recebi (risos). E chegaram a dizer-me que depois de ir para o Boavista já não precisava desse dinheiro que me deviam. Foi uma coisa que me deixou muito triste por parte do presidente e dos dirigentes na altura, do clube da minha terra.

Lembra-se de qual era o valor do primeiro ordenado no Boavista?
250 contos.

Isso em 1995?
Sim, e tive a hipótese de fazer um contrato com o Barreirense a pagar-me 500 contos. Mas eu quis ir para o Boavista a ganhar 250, porque apostei na minha carreira. Estive lá oito épocas, não é brincadeira.

E o Sporting oferecia-lhe quanto?
Nunca nem quis saber, já tinha assinado com o Boavista.

Quando foi para o Boavista de vez, foi sozinho?
Fui. A minha namorada estava a estudar ainda, depois começou a trabalhar na Câmara Municipal do Montijo, com os jogos eu vinha cá abaixo, outras vezes aos fins de semana ela ia lá acima, às vezes durante a semana, quando podia, vinha ao Montijo e voltava no mesmo dia. Era assim que vivía. No princípio não foi fácil. Nestes nove anos já fazíamos vida de marido e mulher, mas à distância. Quando eu vim para o Sporting é que começamos a viver juntos.

Essa namorada é a sua mulher.
Sim, a minha mulher é a minha namorada desde os oito anos (risos).

De onde vem a alcunha “Labreca”?
Isso vem desde muito cedo, desde os 10 anos. Na altura em que fiz um torneio por um clube que se chamava “Futebol Clube União da Graça” e o treinador, na altura achava-me um bocado fora do normal, fora da caixa, e dizia que eu fazia-lhe lembrar um tal Labreca, que tinha sido guarda redes do Montijo há muitos anos, e que era assim maluco, mas bom. Começou a chamar-me Labreca. Numa cidade pequenina, aldeia na altura, os meus amigos começaram a chamar-me Labreca, na escola também e ficou a alcunha de Labreca. Hoje em dia o meu irmão e todos os meus amigos do Montijo chamam-me Labreca.

Em nove anos deve ter muitas recordações do Boavista. Conte-nos uma.
Lembro-me de que o primeiro título que ganhei foi a Taça de Portugal, em 1997. Ganhámos ao Benfica. Um dos meus ídolos era o Michel Preud’homme, que na altura era guarda redes do Benfica. Enchi-me de coragem e mesmo dentro daquela tristeza toda que sentíamos por ter acabado de perder uma final, fui ao balneário ter com o Preud’Homme e pedi-lhe se aceitava trocar a camisola comigo. É das camisolas que guardo com mais carinho.

Tem muitas camisolas guardadas?
Não, porque fui dando à família e aos amigos. A minha mulher diz que qualquer dia não tenho nada, porque vou dando as minhas coisas. Qualquer dia os meus filhos nem sabem que joguei à bola.

Quantos treinadores teve no Boavista?
Comecei com o Manuel José, no segundo ano vem o Filipovic, depois troca com o João Alves, depois saí o João Alves e vem por duas semanas o mister João Casaca. Ele fez a transição do João Alves para o mister Mário Reis com quem ganhámos a Taça de Portugal e a Supertaça. Depois e com quem estivemos muitos anos, foi com o mister Jaime Pacheco. Ganhámos o Campeonato Nacional e, antes de vir para o Sporting, ainda cheguei a ser treinado pelo meu colega e treinador na altura, o Erwin Sanchez.

Qual deles o marcou mais?
Não há dúvida nenhuma, foi o mister Manuel José pela decisão de me levar para o Boavista. Foi uma pessoa que me marcou muito, pelas duras que me dava. Por eu ser irreverente. Ajudou-me a pôr-me no sítio naquele primeiro ano no Boavista. Mas com quem eu tive muito mais ligação, e de quem tenho saudades, muitas saudades, é do mister Jaime Pacheco.

Quando diz que era irreverente e que o Manuel José o pôs no lugar, o que quer dizer?
Eu tinha a mania que era ponta de lança. Sempre me dei bem a jogar à bola com os pés e muitas vezes nos treinos e nos jogos arriscava muito, fazia coisas que não era normal os guarda-redes fazerem. Mas eu tinha tanta confiança naquilo que podia fazer… E muitas vezes ele, num tom durão mas sempre mascarado, dizia-me “se voltas a fazer isso, vais já para o Montijo” (risos). “Tu és guarda redes, não és avançado, não podes fintar dois ou três jogadores” (risos). Como é óbvio eu tinha essa noção, mas havia aquela irreverência. Ele também tinha a noção de que eu não queria parar de treinar, queria treinar e aprender mais, queria melhorar. Foi uma pessoa que me ajudou também nesse sentido. Não posso deixar também de mencionar o mister Manuel Casaca porque foi o treinador a pôr-me num jogo oficial pelo Boavista, para a Taça, foi o último jogo que ele fez, ele só tinha feito dois. E também o mister Mário Reis, pela confiança que depois me deu, pela conversa que teve comigo. Disse-me que a partir dali eu iria ser o guarda redes. Deu-me confiança, era uma pessoa com uma visão para o futebol muito grande. Tenho que estar grato a esses treinadores todos.

E com os jogadores, lembra-se de qual foi a primeira amizade que fez no Boavista?
Eu, o Delfim e o Rui Borges éramos como um cacho de três uvas, onde estava um, estavam os outros. Mas mais com o Rui Borges, que foi meu companheiro, meu confidente, era mais velho que eu também, e ia-me dando alguns conselhos. Passávamos praticamente o dia juntos, quer a treinar, quer fora do campo. Ele tinha ido do Casa Pia para o Porto cidade, e estávamos sozinhos a viver no Porto. Éramos o conforto um do outro, o amparo um do outro. Quando a mãe de um ligava e perguntava onde é que estava e com quem é que estava, a resposta era sempre a mesma. O Ricardo dizia que estava com o Rui e o Rui dizia que estava com o Ricardo, e o Delfim também. Estávamos muito tempo juntos.

Era comum os jogadores do Boavista darem-se com os do FC Porto ou não?
Felizmente, nessa altura havia um companheirismo, uma ligação grande não só com muitos jogadores do FC Porto, como do Salgueiros, Leixões, Infesta.. À sexta-feira juntávamo-nos, muitos de cada equipa, todos no mesmo restaurante, em Gaia. Era um ambiente muito bom. Tenho saudades desse tempo do Porto, quer da cidade, quer do relacionamento com as pessoas.

Diz-se que os jogadores no Porto são muito controlados…
Só sente isso quem tiver alguma razão para tal. Nunca precisei de ser controlado, Nunca me senti controlado. Muito pelo contrário, sempre me senti acarinhado, respeitado, ajudado, tudo o que tenho a dizer é bem das pessoas do Porto, quer do clube, quer das pessoas da cidade, porque para mim sempre foram um povo muito acolhedor, que tira a camisa para dar se for preciso.

Costumava sair à noite ou era mais caseiro?
Vivi praticamente 10 anos no Porto, almoçava e jantava fora praticamente todos os dias, nunca soube fazer comida. Quando fui para o Boavista, assinei contrato com refeição, com almoço e com jantar incluído. Almoçava e jantava no restaurante do clube. Depois, passado um ano é que o João Loureiro viu que o orçamento não chegava para me pagar a comida, que eu comia muito e ofereceu-me mais dinheiro para eu ir comer fora (risos). Depois, como é óbvio, és jovem, tens dinheiro no bolso, tens o teu carro, começas a crescer e a conhecer a cidade e a fazer aquilo que queres para a tua vida. Jantava fora e bebia o meu copo com os meus amigos. Ia jogar bilhar a vários bares, mas nunca fora de horas, tirando nas folgas. Não digo que não me deitei uma vez ou outra tarde e que não saí pela porta detrás da discoteca quando o presidente entrava. Mas nunca interferiu com o meu trabalho.

Como era o major o Valentim Loureiro?
Era daquelas pessoas de quem tenho saudades. Fazia falta mais pessoas daquelas, com as virtudes e os defeitos que todos temos, mas era uma pessoa que… Enfim, a palavra dele e a presença dele valiam mais que uma assinatura. Era uma pessoa muito forte, muito motivadora, muito aglutinadora. Ainda hoje nos telefonamos e recordamos alguns episódios.

Tem alguma história divertida com ele?
Posso contar que na altura assinei contrato num guardanapo de um restaurante (risos). Lembro-me que me sentei à mesa com ele e com o senhor Carlos Costa. Foi num restaurante que salvo erro era da irmã do Reinaldo Teles, perto do Hotel Dom Henrique, no Porto. Quando começámos a falar de números, e de quanto é que eu gostava de ganhar, quais eram as condições, quantos anos e quais os termos do contrato. Ele ia fazendo rabiscos no papel da mesa do restaurante e depois mostrava, de vez em quando torcia o nariz, e ele rasgava, atirava fora e rabiscava mais um bocado do papel da mesa e quando fomos registar o contrato com aquele pedaço de papel estava lá tudo, não falhava nada (risos)

Esse foi o primeiro contrato com o Boavista. Assinou por quanto tempo?
Por três épocas.

O Carlos Costa de que fala era o seu empresário?
Era amigo do Manuel José e foi o intermediário. Ele ia ver os jovens valores na margem sul e tinha referências minhas. Quando soube que o Quinito ia levar-me, o Carlos Costa alertou o Manuel José e ele disse ao João Loureiro para irem ao Montijo buscar-me. Acho que foi assim.

Alguma vez teve empresário?
Sim, o Nuno Baptista que é muito mais que um empresário, é uma relação de quase de irmãos, quase familiares. É irmão do Hélder Baptista que jogou comigo no Boavista. É uma pessoa a quem eu devo muito, sempre me ajudou, sempre esteve ao meu lado, deu-me bons conselhos e fez tudo do melhor para mim. Ainda hoje peço-lhe muitas vezes opinião para várias coisas.

Costumavam fazer partidas uns aos outros no Boavista?
Tantas, tantas. É isso que eu recordo com mais saudade desses tempo. Lembro-me de uma com o Jaime Alves por exemplo. Ele gostava muito de roubar o champô e o gel de banho aos mais novinhos. Era mais velho e não precisava de comprar nada disso, nós é que tínhamos que levar. “Vocês são os mais novos, para entrarem aqui no nosso grupo têm que dar gel de banho e champô aos mais velhos”. E eu levava sempre o meu champô e o meu perfume, tinha sempre o meu cacifo com tudo, não faltava nada. Quando ele ia tomar banho, já toda a gente tinha saído, arranjava uma faca que abria os nossos cacifos e tirava champô e gel de banho (risos). Uma vez meti azeite no meu champô para lhe pregar uma partida. Mas com as costas quentes por parte do Alfredo. Ficámos escondidos na rouparia e ele lá foi ao meu cacifo, deitou o champô para a mão e depois começou a cantar alhos e bugalhos debaixo de água. Viu logo que eu tinha feito aquilo com as costas quentes do Alfredo.

Ele chegou a pôr o azeite na cabeça?
Sim, ele pensava que era champô, estava misturado e era da mesma cor. Mas quando começou a lavar e viu que aquilo era tão gorduroso e que não saía, percebeu que lhe tinha feito uma partida (risos).

Como é que se dá a passagem para o Sporting?
Foi um verão muito complicado em que há coisas que devo contar se calhar um dia, mas hoje não.

Porquê?
[interrompe] Mas a história de assinar contrato também foi caricata. Assinei contrato num edifício em Elvas, que era o edifício Visconde, que ainda estava em obras, às cinco da manhã com um notário e com umas pessoas à minha espera… mas resumindo e concluíndo, foi na altura em que se romperam as negociações com o Benfica. Era sabido na altura que o presidente estava em negociações e tinha chegado a acordo para a minha transferência, faltava eu aceitar tudo o que tinham acordado.

Para o Benfica?
Sim. Depois, eu decido não ir e vou para estágio com o Boavista e quando chegamos de estágio, assino contrato. O presidente chamou-me ao seu gabinete porque queria falar comigo. Estavam lá pessoas do Sporting, o Rui Meireles, o Dr. Bettencourt, o Dr. Ribeiro Telles de quem eu tenho muitas saudades, e com o mister Fernando Santos ao telefone na altura, porque estavam em estágio, acho que em França, e foi tudo muito rápido. Pela seriedade e pela maneira como me trataram e pela maneira como foi todo o processo, nessa noite cheguei a acordo com o Sporting.

Mas porque é que não vai para o Benfica?
Isso é outra história que eu agora não vou revelar.

Porque não?
Porque assim digo tudo já aqui e não pode ser. Eu saí à noite, com muitos jornalistas à porta do estádio, que não me tinham visto sair, mas tinham visto entrar pessoas do Sporting. Saí do estádio dentro da mala de um carro, a meio da viagem trocámos de carro, chego de madrugada ao edifício Visconde onde estavam lá advogados para assinar contrato e fui para a cidade medieval de Óbidos onde estive escondido um fim de semana.

Andou metido na mala de um carro?
Andei e quando troquei de carro a meio da autoestrada a polícia apanhou-nos porque o carro não podia estar ali parado e o Dr. Rui Meireles fingiu que estava muito mal, a vomitar e tal para justificar o carro parado. Foi cheio de peripécias, foi giro.

Acabou por viver também momentos de glória no Sporting.
Sim. Felizmente não me arrependo. Foram tempos que recordo com saudade, tenho lá amigos ainda. Foi um clube que aprendi a gostar e torço para que sejam felizes e ganhem. De facto não foram momentos fáceis para mim, para quem estava à minha volta, por tudo o que se passou, por tudo o que criaram à minha volta, mas acho que fui forte. Tive um anjo da guarda também do meu lado e que me fez superar muitas das coisas que a maior parte das pessoas desconhecem e não acreditam que se possam passar com profissionais de futebol.

É essa a história que um dia vai contar?
Talvez, se calhar. Talvez um dia mais tarde conte tim tim por tim tim, tudo aquilo que muita gente desconhece.

Mas está a falar do quê em concreto?
Foram situações muito difíceis. Daquelas histórias que se formos nós a contar, muita gente vai dizer “ah isso é mentira”.

Tem a ver com futebol ou com a sua vida pessoal?
Com ambos.

A sua mulher esteve sempre ao seu lado.
Sempre, sempre, sempre. A minha mulher, a minha família e os meus amigos, sempre do meu lado.

Quando é que casa?
Eu fui aprendendo a defender-me. Porque, e isto é um exemplo, quando tu passas de ir para um clube em que toda a gente quer os teus serviços e deseja que vás para esse clube e de repente, tens meio mundo que te queria e dizia que eras muito bom a fazer de tudo e a dizer que afinal já não és aquilo que eles diziam há semanas atrás… não é fácil.

Mas porque é que isso aconteceu?
Aconteceu porque infelizmente o futebol está recheado de muitas histórias dessas. Tive de ser bastante forte para aguentar muitas das pressões que apareceram de muitos lados, para que as coisas não me corressem bem.

Essas histórias vieram a público?
Algumas são públicas. Mas nesta entrevista em que estou a relembrar momentos tão bonitos, nem quero estar a falar sobre isso porque acho que não fica bem. Neste momento nem quero estar a recordar isso. Lembro-me das coisas boas e de tantas pessoas boas que marcaram a minha vida pela positiva que nem me quero preocupar com o resto.

No Sporting, quem é que o marcou mais pela positiva?
Uma pessoa que me marcou mim e a mais pessoas, foi o Paulinho, o roupeiro, é uma pessoa especial.

Todos os jogadores gostam dele.
Ele é especial e agarra-se a quem ele sente que também tem alguma coisa de especial. É óbvio que ele tem mais ligação com uns do que com outros. Mas há outras pessoas, como o Dr. Ribeiro Telles com quem estive poucas vezes, mas recordo com saudade. Pelo abraço amigo que tinha nos momentos difíceis, a todos não só a mim. É uma pessoa com verticalidade. Também colegas como o Nelson, o Tiago, o mister Justino, na altura foi o meu treinador, o Ricardo Peres, o Paulo Bento que foi meu colega, foi meu treinador, Pedro Barbosa, dos mais velhos que me marcaram muito e com quem tenho grande relação, grande amizade…Não sei se me vou esquecer de alguns, mas se me esquecer esses meus amigos sabem que não é por mal.

Que treinadores é que teve no Sporting?
Comecei com o Fernando Santos, depois vem o mister José Peseiro que também foi muito importante na nossa caminhada, com quem chegamos a uma final da Taça UEFA, teve muitos momentos felizes conosco. A seguir ao mister Peseiro foi o Paulo Bento, quando fui para Espanha, ainda era o mister Paulo Bento treinador.

Quando é que foi chamado pela primeira vez que à seleção?
A primeira vez que fui chamado a uma selecção, foi à de Sub 21 e recordo-me como se fosse hoje. Estava dentro do carro a descer a Avenida da Boavista, ia beber um café e a dona Teresa, que era a secretária do presidente na altura, liga-me a dizer que me ia dar uma notícia muito boa. E na altura pensei, vou renovar o contrato com o Boavista? Não, melhor ainda. Quando ela me diz que tinha sido chamado à selecção nacional, eu nem me lembro de ter regressado ao clube. Foi óptimo. Depois, à seleção A, já foi com o mister António Oliveira. Faço o meu primeiro jogo como titular quando vamos à Irlanda, um jogo muito importante na caminhada para o Mundial de 2002.

Vai ao Mundial da Coreia…
Metade da qualificação fez o Quim, eu fiz a outra metade.

Mas quem acaba por ir para a baliza é o Vítor Baía. Porquê?
Nem quero tocar nesse assunto. Se alguém tiver que dizer o porquê é o sr. António Oliveira.

Ele explicou-lhe porque ia dar a titularidade ao Baía?
Conversas houve várias, mas nada de justificativo. Eu digo o que sempre disse, não concordei mas respeitei a decisão, ponto final.

Quando vai para a Coreia já sabia que ia perder a titularidade ou foi só lá?
Se eu sabia? (risos). São coisas que nós sabemos, não é preciso ser muito inteligente para perceber o que se estava a passar.

Houve influências exteriores?
Estou numa fase em que já nem vou por esse caminho. Não vai ser numa entrevista escrita que vou falar sobre muita coisa que se passou na Coreia. Tem que ser em direto. Mas de facto passaram-se coisas muito estranhas e muito más. Tínhamos do meu ponto de vista, independentemente de quais fossem as opções, uma das melhores seleções de sempre. O Figo tinha uma lesão muito grave no pé, mas de resto aquela geração tinha jogadores fantásticos. Todos os que lá estiveram e alguns que não puderam ir, a maioria estava no auge das suas carreiras, nos 30 e poucos anos com uma maturidade muito grande, com carreiras individuais fantásticas e perdemos uma grande oportunidade, naquele ano, de marcar uma posição, de Portugal se assumir como uma seleção fortíssima. Infelizmente, isso não aconteceu.

Por culpa sobretudo do selecionador?
Como é óbvio, um comandante é sempre um comandante e os timoneiros são os jogadores. É um conjunto de factores que fazem com que as coisas estejam em sintonia. Houve coisas que não correram bem, que não foram bem planeadas, não foram bem ajuizadas e calculadas, acredito que sempre com a melhor das intenções, quero acreditar nisso, mas a verdade é que não correram nada bem.

Houve várias situações que vieram a público…
Eh pá, não veio nada cá para fora (risos). Felizmente, felizmente não veio nada cá para fora. Isso que as pessoas ouviram não foi nada. Felizmente as pessoas não sabem da verdade, o que aconteceu lá.

Foi assim tão mau?
Digamos que as coisas que se passaram não dignificam de maneira nenhuma a seleção portuguesa.

Antes de ir para o Bétis, vive um momento grandioso no Euro2004.
Aquele momento é nosso, não é meu, porque só foi possível dado um conjunto de factores. Claro que quando vamos para penáltis o guarda-redes pode ser o protagonista.

Tirar as luvas para defender penálti foi uma coisa do momento ou já estava pensado?
As luvas, sim. Foi instintivo. Já estava fartinho de ali estar e tive de fazer alguma coisa para me motivar, para mexer comigo e com o adversário.

Ninguém lhe disse nada, ninguém disse “não faças isso”?
Não. Depois, mais tarde, já quando estávamos no balneário, uma pessoa do marketing da Nike pediu-me por amor de Deus para nunca mais fazer aquilo porque aquilo podia ter sido entendido como as luvas não prestarem para nada (risos).

 

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A decisão de ser o Ricardo a marcar o último penalti foi sua também?
Isso já estava planeado, só que fui marcar fora da minha vez, porque já tinha passado. Quando o Postiga vai marcar, já vai marcar na minha vez, porque quer eles quer eu estávamos tão focados no jogo que não contamos…o Beckam falhou o primeiro penálti, e depois tivemos uma bola que o Rui Costa mandou por cima e eu próprio não contabilizei isso. E, na altura, quando era a minha vez veio o Postiga e depois quando a seguir eu defendo e vejo o Nuno Valente a vir, que era realmente a vez dele, faço-lhe sinal a dizer que era eu a marcar.

E ele aceitou.
Ele até hoje me agradece ter sido eu (risos). Só no fim é que me disse: “Quando me disseste que era tu, respirei de alívio e voltei a correr para trás, mas de facto não eras tu, a tua vez já tinha passado” (risos).

Há um momento em que se vê o Eusébio agarrado a si. O que é que ele lhe dizia naquele momento?
Isso foi antes dos penáltis. Aquele jogo e aquele momento mexia muito com ele por todas as razões e mais alguma. Por lhe recordar o mundial de 1966, o jogo com Inglaterra em que Portugal foi eliminado. E passámos alguns minutos, eu e o Dr. Jonesm a tentar conversar com o Eusébio, para tentar acalmá-lo porque ele estava muito alterado e não era bom. Tínhamos medo que algo de mal acontecesse e passámos ali um bocadinho, a tranquilizá-lo. Disse-lhe que, desta vez, íamos conseguir levar de vencida a Inglaterra, para acreditar em nós, para ter esperança e torcer por fora, etc, etc. Tentei acalmá-lo, o que não é fácil. Agora que estou de fora percebo que para quem está a jogar é muito mais fácil. Foi isso. Depois, ele com todo o carinho que tinha, estava a dar força a todos os jogadores. Agarrou-se a mim e disse que eu iria ser decisivo e que acreditava em mim, que conseguia defender o penalit que desse para passarmos. E no fim foi o abraço de descanso de alma que ele teve.

No Mundial de 2006 defendeu três penaltis…
E tenho um recorde. O único guarda redes da história a defender três penáltis numa fase final de um mundial, é português, sou eu. Pouca gente sabe. Se o nome fosse outro se calhar toda a gente sabia, mas como é o Ricardo, pouca gente sabe.

Estudava muito os adversários ou era sobretudo por instinto que conseguia defender os penáltis?
Do instinto vem as coisas que fazemos para nos motivar ou mexer com o adversário. Agora, isto dos penáltis tem muito que se lhe diga. É muito trabalho, quer de campo, de treino, de reflexos, de rapidez, de tudo e sentires que tens um dom para aquilo, e também tens visionamento de muitos jogadores, principalmente em fases finais de mundiais e europeus, Liga dos Campeões e Liga Europa. O Brassard fazia um trabalho fantástico nesse aspecto, porque tínhamos tudo e mais alguma coisa de todos os jogadores das seleções adversárias para podermos visionar, para podermos estudar. Mas, ao contrário do que as pessoas possam pensar, não íamos ver para que lado chutavam. Não tem nada a ver com isso, tem a ver com coisas nossas. Mas, quem marca, tem sempre a faca e o queijo na mão.

Quando fala em “coisas nossas”, tem mais a ver com a linguagem corporal, é isso?
Sim, e não só. Porque depois tens de ser rápido, ágil, etc. São questões técnicas que conto e passo a aqueles que acho que devo passar, não vou passar a qualquer um.

Quando sentiu que tinha esse dom para ser guarda-redes?
Desde miúdo. Sempre marquei penáltis, desde os juvenis aos iniciados que marcava penáltis e nunca falhei nenhum penálti na minha vida. Nunca. Acabei a minha carreira sem falhar um penálti.

Houve algum jogador que lhe desse particular ‘raiva’ por não conseguir defender os penáltis dele?
Não. O único que fiquei com a pulga atrás da orelha, no Euro da Alemanha, foi precisamente o único que não consegui defender, do Hargreaves. Ele marcou e por isso é que a organização lhe deu o prémio de melhor jogador em campo nesse jogo. E eu tinha acabado de ser o primeiro guarda redes a defender três pénaltis numa fase final de um mundial… E no fim do jogo…se bem se recordam, no Euro2004 ,o Beckham tinha enviado uma bola para a bancada, que foi vendida no eBay, depois por um balúrdio. Na Alemanha, para não acontecer isso, todas as bolas dos jogos que tinham a data, os países, a hora do jogo, eram recolhidas no fim do jogo, para não haver esse tipo de situações. Ninguém tinha levado bolas daquelas, oficiais, dos jogos. E o árbitro teve a amabilidade no fim do encontro de bater à porta do nosso balneário, pediu para entrar e veio oferecer-me a bola de jogo dizendo: “Eu soube agora que o melhor em campo foi o jogador inglês, e deve ter sido por ser o único que marcou um penálti, mas ofereço-te a bola do jogo porque tu é que merecias ser o melhor em campo. Porque aquilo que fizeste, ninguém tinha feito até hoje”. E deu-me a bola de jogo. Tenho essa bola guardada, assinada por todos, inclusivé por ele. É uma boa recordação.

Quando o Scolari deixa de ser selecionador, o Ricardo perde a titularidade.
Quando entrou o Carlos Queiroz deixei de ser convocado. Continuei a receber pré-convocatórias consecutivas e…há pessoas que podem um dia mais tarde falar sobre isto…mas, por razões que são tão tontas, tão tontas, tão tontas, até hoje inexplicáveis, não fui mais chamado à seleção nacional.

Que razões tontas são essas?
É melhor estar calado. É melhor estar quieto. Não quero ir por aí. Há-de haver oportunidade de esclarecer as coisas, mas não vai ser escrito, vai ter que ser falado. Eu gosto é de falar em directo, ao vivo, não estarem a ler.

Foi por isso que uma vez ligou para um programa em que estavam a dizer mal de si?
Eu lembro-me desse episódio. Fiz o que fiz pela pessoa em si, que era tão mau carácter… Já foi há muito tempo. Nem vou pronunciar-me, nem lhe vou dar tempo de antena. O carácter é tão mau, o ódio, o querer fazer mal, por maldade, foi tão grande… E na altura saiu-me e foi como tudo na vida, foi sincero. Mas foi a única vez. Eu tentei fazer com que ele sentisse e sentiu. Não vale a pena..

Como é que entretanto vai para o Betis?
Tinha a possibilidade de renovar contrato com o Sporting, mas na altura – o mister Paulo Bento sabe e pode testemunhá-lo –, custou-me muito ir embora, porque queria ficar. Na altura, o diretor do futebol era o Carlos Freitas, pessoa com quem me dou bem e sempre respeitei…mas tive que ir por todo um conjunto de factores que só nós sabemos. Já levava muitas épocas de campeonato nacional e tinha essa curiosidade também de experimentar outros campeonatos, outras sociedades, de saber se me dava bem fora do meu país. E estive ali três anos consecutivos a poder sair e eu sempre a dizer que não, e depois quando chegas a um ponto em que também sentes que, fizesse o que fizesse de bom, era quase que ignorado em termos desportivos.

Está a falar do Sporting?
Não, estou a falar de todo o lado, da minha vida, quer na seleção, quer no clube, qualquer coisa que acontecesse menos positivo caía o Carmo e a Trindade. Lembro-me que na altura tive uma conversa com o Helton, que é cinco estrelas, e ele chegou a dizer-me: “Ricardo você é um colchão muito forte para todos os guarda redes que cá estão. Enquanto cá estiver todos os que estão aqui têm as costas largas porque só batem em você”. E eu fiquei a pensar nestas palavras de um guarda redes experiente. Eu sentia isso. Nas coisas menos boa caía o Carmo e a Trindade e as coisas boas eram muitas das vezes ignoradas.

O guarda redes tem esse lado sempre ingrato nas equipas. Tanto pode ser o herói como rapidamente o vilão.
Depende dos guarda-redes.

É quase sempre remetido para um segundo plano a não ser que seja o herói do jogo.
O guarda-redes não quer ser remetido para primeiro plano nenhum. O guarda redes quer ser remetido para o plano que lhe deram, mais nada, como os seus colegas, a sua equipa. Porque um guarda-redes, falo por mim, é um jogador de equipa. Eu sem os meus colegas não conseguia nada. Apesar de um guarda-redes dentro de campo ser aquele que mais sofre, porque está mais tempo sozinho e está numa posição específica. Não quero ser mais do que ninguém, não quero é ser menos. E, felizmente, desde há alguns anos que se vê a tranquilidade que vivem os guarda redes da seleção nacional. Fico super contente por isso. E é o que deve ser feito sempre. Nós somos tão bons ou melhores do que qualquer outra seleção das melhores do mundo, quando temos algum momento menos bom. Têm que ser os nossos, os que passam para a comunicação social, os jornalistas da imprensa escrita e falada, a lembrar-se o que de bom já estes jogadores fizeram. Porque eles sabem que estiveram mal, não precisam de bater no ceguinho. Felizmente já percebemos isso. Fico muito contente.

O Ricardo foi uma exigência do treinador do Betis, Hector Cuper?
Sim.

O fator financeiro também pesou?
Como é óbvio.Mas há muitos factores que levam a essa decisão. Se calhar não foi a mais correta ir para aquele país. Se voltasse atrás se calhar fazia de forma diferente, mas não me arrependo.

Foi nessa altura, em Espanha, que ganhou mais dinheiro?
Se calhar a altura em que ganhei mais dinheiro foi quando comecei a ganhar o meu primeiro contrato profissional. O valor que dou às coisas é muito relativo.

A sua mulher foi consigo para Espanha?
Mulher e filhos. Estava nascer o meu segundo filho. O Tiago é de 2003 e o Ricardo de 2008.

Correram bem esses quatro anos, fez muitas amizades?
Sim, deixei lá muitos. Vou lá com muita frequência, todos os anos. Apesar de ter trazido muitas dores em termos da relação com o presidente foi uma cidade que adorei.

Que dores foram essas com o presidente?
Quem tem a noção de quem era o sr. Lopera…ainda por cima foi na pior altura, quando houve aqueles problemas fiscais todos. Dois anos depois, o Betis desce de divisão e chegou a correr o boato de que os jogadores estrangeiros mais caros tinham de abandonar o clube porque podiam sofrer males maiores… Houve muitas histórias, momentos difíceis, que as pessoas não fazem ideia e que não tem mal nenhum que não saibam porque são histórias muito negras, que passam para a família.

É por isso que sai do clube?
Sim, a principal razão não foi por mim porque eu já estava com 34 anos para 35. Já me aguentava bem. Agora, quando me deparei um dia com o meu filho mais velho, que adorava viver lá, era um autêntico espanhol, a pedir-me para ir embora porque não aguentava ver o pai triste… é duro.

Ficou sem jogar?
Eu não estava parado em termos de treino, chegaram a pôr-nos a treinar à parte. Depois, o sindicato soube e obrigou-os a integrar-nos no treino. Mas só treinávamos, não competíamos. Foram uns meses assim

E vai parar a inglaterra.
Eu tinha dito à minha mulher que não ia jogar mais, que queria deixar o futebol. Entretanto o Eriksson soube que eu tinha saído do Betis e pediu-me para ir lá fazer uns treinos, para ver como é que estava e qual era a minha vontade. E de facto fui para um sítio onde devia ter ido logo, em vez de ter ido para Espanha. A paixão voltou, era impossível ali não voltar, por tudo de bom que eles dão, todo aquele espetáculo que são dentro e fora de campo. E só vim embora porque parti a cromo clavicular do ombro, pensei que já não jogava mais à bola e vim para Portugal. Mas foram tempos fantásticos em Inglaterra, onde tu sentes-te homem, sentes-te jogador, és respeitado, estás num sítio onde o futebol é um espetáculo digno de ver e de reviver.

A familia foi consigo nesse periodo de Inglaterra?
Não, nessa altura o meu filho já estava a estudar em Portugal, num colégio, e como eu só tinha assinado por seis meses primeiro, decidi ir sozinho, para não o tirar da escola naquela altura porque a transição de Espanha para Portugal já tinha sido difícil, quanto mais ir para Inglaterra.

Custou-lhe ir sozinho?
Eu não estava sozinho, vivi uma história muito bonita ali, tinha o Miguel Vítor e o Moreno para me ajudarem; eles já estavam no clube. Havia também uma comunidade portuguesa muito grande, íamos jantar a restaurantes portugueses, estávamos juntos e o prazer de treinar era tão grande que nem dava conta pelos dias passarem. Mas, como é óbvio, custou-me estar longe da família porque mesmo falando por Skype diariamente, não é a mesma coisa que o toque, não lhes podia tocar.

Se não fosse o ombro, tinha ficado em Inglaterra?
Tinha. E se calhar ainda estava a jogar. Tive uma lesão que não era fácil para um guarda-redes. Era uma asa partida como se costuma dizer. Na altura contactei logo o fisiotepaurte Gaspar que recebeu-me de braços abertos e foi graças a ele e à sua equipa que, sem operação, passados seis meses, senti-me a 100% e a jogar futebol.

Como é que aconteceu essa lesão?
Foi uma brincadeira. Tinha estado a recuperar de uma fissura num dedo do pé, que me custou muito. Um jogador que caiu com o píton em cima do meu dedo, não do mais pequenino mas do outro a seguir. Fez uma fissura e não conseguia andar, quanto mais treinar. Levei quase três semanas recuperar e quando ia voltar, num treino, já tinha acabado o treino, estávamos ali na palhaçada a marcar penaltis e a fazer apostas na brincadeira de defender sem mãos e joguei-me a uma bola, defendi de cabeça e caí. mas caí tão mal, senti logo um estalo e um esgaçar no braço tão grande…o fisioterapeuta viu ao longe e fez-me logo o sinal de morto!

Recupera e vai para o V. Setúbal.
Sim, por convite do meu amigo Bruno Ribeiro, que era o treinador do clube na altura. Disse-lhe que não sabia se estava em condições para jogar. Mas fui treinar, senti-me bem e no último dia, no final de agosto, assinei contrato com o V. Setúbal.

Esteve lá uma época e vai para Olhanense.
Por convite de uma pessoa que também admiro muito, o Sérgio Conceição. Estava na praia e desafiou-me a continuar a jogar aqui em baixo no Algarve.

Já vivia em Vilamoura nessa altura?
Já estava com tudo preparado para ficar aqui a viver sim.

Porquê?
Sempre me preparei para isso. Escolhi. É um sítio mais calmo, mais tranquilo para os miúdos estudarem. Em termos de qualidade de vida não há stress, não há trânsito, aquelas coisas das grandes cidades. E já tinha pré-programado essa situação.

Então, o Olhanense foi a cereja em cima do bolo.
Quando o Sérgio me desafiou eu por acaso pensei que fosse durar mais anos e que fosse juntar o útil ao agradável e estar num sítio onde eu fosse aquilo que os mais velhos foram quando cheguei ao Boavista, por exemplo. E a realidade foi totalmente ao contrário.

Porquê?
Porque estava tudo ao contrário. Valores invertidos, os mais novos, metade deles, não queria sequer treinar, não queriam fazer nenhum, não queriam sacrificar-se. Depois houve um grupo de italianos que comprou o clube e passaram aqui alguns muito bons jogadores, mas a maior parte deles sem qualidade para jogar numa terceira divisão ou regional, com o devido respeito. Mas passavam o dia na praia, não queriam treinar, não viviam como profissionais, e a mim fez-me muita coisa, muita mágoa.

Foi muito difícil a decisão de deixar de jogar?
Foi difícil pelo aspecto de eu saber que estava com as minhas plenas faculdades intattas, quer físicas, quer técnicas, quer psicológicas, quer de vontade de continuar. Mas se sentisse que houvesse gente mais nova que puxasse por nós também e não ter que ser só eu a puxar por eles. Foi difícil por isso. Mas quando disse que já chega, já chega, acabou-se o futebol, ponto final.

Mas esse já chega foi só por isso ou porque não apareceram entretanto outros clubes interessados no Ricardo?
Não, eu próprio disse já chega. Quanto tu estás num sítio onde muitas vezes o sentimento…a gratidão para mim tem muito significado e o desrespeito não só pelo homem, mas pela carreira, pelo profissionalismo, por aquilo que representou e passou, a ausência desse sentimento por parte daqueles que trabalham contigo deixa-te marcas.

Lembra-se de qual foi o último jogo que fez?
Não faço ideia.

Afastou-se do mundo do futebol.
Há pouco tempo tive uma pequena incursão, eu o Carlos Pereira e o Paulo China, no Almancilense. Conseguimos que clube não descesse de divisão, tentámos fazer alguma coisa diferente, mas quando vimos que do outro lado havia uma resistência muito grande à mudança. Tal como entrámos, saímos, sem fazer muito barulho.

Onde é que investiu o dinheiro que ganhou no futebol?
Em imóveis.

Abriu uma imobiliária?
Sim, no Algarve. Foi em 2015 que amigos meus, o Sérgio e o Gonçalo, me desafiaram. Gostava muito dessa área mas não me via a fazer isso. Só que de facto ainda cá estou. Não é um mundo fácil, mas gosto.

Como é que surge o golfe?
Surgiu em 2006. Quem me levou foi o professor Antonio Dantas, de quem tenho muitas saudades. Foi quando fui viver para a Quinta do Peru, em Azeitão. Ele era um adepto fervoroso do FCP, adorava futebol e andava sempre atrás de mim a dizer: “Já pus a jogar fulano e beltrano e gostava de te pôr a jogar golfe também e vou-te ensinar”. E eu dizia-lhe: “Ó professor isso é muito chato, é muito parado, não tenho tempo”. Mas depois de muita insistência, lá tive a primeira aula e ficou um bichinho por ser tão difícil e foi assim que começou.

Hoje é o seu principal hóbi?
É o hóbi que adoro. É como jogar às cartas, ou xadrez ou padel. Jogo padel também, jogo muitas coisas, mas o golfe é de facto uma coisa que ficou. Gosto. Já ganhei muitos troféus. Já fui campeão nacional de golfe também, por equipas. Já representei Portugal num campeonato do mundo de empresas, já fiz muita coisa.

Algum dos seus filhos joga futebol?
Neste momento, não. Jogam na escola.

Tem algum projeto na manga?
Tenho. Pode estar ligado à televisão e ao futebol. São desafios e convites que me vão sendo lançados que temos de pensar. Mas não será tão cedo.

Com quem criou amizades mais fortes no futebol?
O Caneira é meu padrinho de casamento. Tenho amigos que não vejo muitas vezes mas que ficam sempre no coração, eles sabem quem são, não vou enumerar porque tenho medo de falhar alguma.

Qual é o seu clube de coração?
A seleção nacional. É por quem sofro mais. Agora, o Sporting e o Boavista têm o signifcado especial. O Boavista pelos anos que lá passei, pelo que ganhei também, o Sporting pela equipa grande que representei em Portugal e que tem uma massa adepta muito maior e de quem aprendi a gostar e sofrer, a rir e chorar.

É homem para gostar de ler, de ouvir música…
Música sim. Agora ler, leio pouco, confesso que gostava de ter mais força para ler mais. Um dos meus pecados é esse, devia ler mais. Mas vivemos a vida sempre a correr de um lado para o outro.

Gosta de viajar?
Não muito. Tenho o melhor dos mundos aqui onde estamos, não vejo necessidade de ir para lado nenhum.

Pensa ter mais filhos?
Não. A minha mulher queria ir à procura da menina, mas isto não é por catálogo. ainda pode sair outro igual a estes e é um problema! (risos)

Alguma vez pensou fazer uma escola de guarda redes?
Sim. Gostava de trabalhar com miúdos e com guarda redes já, mas nunca tive quem me acompanhasse. Nunca tive quem me desse a força para ir para a frente.

Acha que é tarde?
Não digo que é tarde. Acho que é um trabalho que pode ser bastante melhorado em Portugal. Principalmente o trabalho que os clubes fazem.

Nunca foi convidado por um grande para ser treinador de guarda redes?
Não.

E se fosse, aceitava?
Primeiro tinha que ser convidado. Depois, logo decidia. Qualquer dia ainda me meto a fazer o curso de treinador, pelo conhecimento. Há sempre coisas a aprender. Lembro-me de uma frase que o meu avô dia : “A gente nasce sem saber e morre a aprender”. E é verdade. Quando chegar o dia certo, lá estarei.

Tinha ídolos?
Os meus primeiros ídolos eram ponta de lanças. O Klinsmann, o Ian Rush, depois veio o Bento, o Damas, o Walter Zenga.

 

entrevista de Alexandra Simões de Abreu, publicada no Expresso