À entrada para a temporada 1981-1982, o presidente João Rocha não tinha treinador e lidava com um plantel com vários problemas. O inglês Malcolm Allison, com 53 anos, foi sugerido ao Sporting por John Mortimore e chegou com reputação de mau génio. Surpreendeu e tornou-se mítico em Alvalade, tendo naquela temporada conquistado o Campeonato, a Taça de Portugal e ainda a Supertaça, no arranque da época seguinte.

O Observador faz a pré-publicação de alguns excertos dos primeiros três capítulos de “Big Mal & Companhia” e eu ofereço-vos este aperitivo para tomar antes ou depois do almoço.

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(…) O ruído das cornetas é ensurdecedor. Vestido de forma informal – logo ele que garante só usar fatos completos em casamentos e funerais –, Malcolm Allison coloca rapidamente o chapéu de feltro na cabeça. É a sua imagem de marca, o objecto que o celebrizou no Crystal Palace e no Manchester City. O chapéu Fedora, como lhe chamam os ingleses, assistiu a mil batalhas e foi mais vezes fotografado do que a família real inglesa, costuma ele dizer a brincar. Réplicas baratas vendiam-se em Selhurst Park, nos arredores de Londres, quando Allison por lá passou. O chapéu, os charutos, as declarações bombásticas fazem parte da imagem que projecta e que muitos associam à vaidade e ao exibicionismo. Allison, porém, sabe mais de psicologia do que um catedrático. Antes, muito antes de José Mourinho, Big Mal percebeu que o treinador pode ser um aspirador, puxando para si toda a pressão, todas as críticas, todas as atenções, e libertando-as dos ombros dos seus rapazes. (…)

Embora os biólogos não o documentem, Alvalade é um ser vivo. Pode ser de pedra e cimento, mas respira como um organismo. Tem paixões e ódios. Como um amante ternurento, não recusa nada a quem tudo lhe dá. E aprendeu a estimar quem lhe oferece o dote perfeito, imemorial. É o caso deste inglês, figura gigantesca, um pouco trapalhona, que sobe agora à boca de cena ao mesmo tempo que a aparelhagem do estádio projecta música empolgante. Não há uma pessoa entre os 40 mil espectadores que não saiba o guião do que se vai passar e, no entanto, nenhuma palavra foi escrita, nem se fez um ensaio geral. Emergindo das profundezas do estádio, o homem de chapéu na cabeça ascende ao nível do relvado, junto da mítica Bancada Superior Sul. Os disparos das máquinas fotográficas dos repórteres acompanham-no em busca de uma evidência do carácter reguila do homem que as desafia (…)

Nos dois meios-campos, os jogadores do Sporting e do Benfica param por um segundo os exercícios de aquecimento. Há sorrisos entre os onze escolhidos para representar a equipa de Allison. Do outro lado, algumas raposas velhas tentam reduzir depressa o impacte da entrada dramática no espírito de profissionais que, por momentos, voltaram a ser crianças assustadas. Os mais veteranos, tarimbados por mil batalhas, acalmam os colegas. Lembram-lhes que o jogo não começou. Mas estão errados. O jogo começou vinte minutos antes da hora agendada e teve aqui o seu primeiro capítulo.

Imperturbável, Big Mal caminha na direcção do círculo de meio-campo. Tira o chapéu, segura-o com a mão direita, agita-o para as bancadas. Manda beijos para o público, como um político em campanha, mas as suas promessas não são vãs, nem efémeras. Talvez lhe venha ao espírito a memória dos boatos que lhe têm contado. Do desconforto que alguns dirigentes do Sporting sentem por esta atitude tão pouco profissional, tão pouco convencional, tão pouco britânica. Mas Allison não é convencional. Antes de alguém publicitar os mind games, já ele os sabia fazer. E, que diabo!, já que estão desconfortáveis, o inglês acrescenta mais um elemento ao repertório. Volta a colocar o chapéu na cabeça e agita com fervor as duas mãos, como se estivesse a levantar um peso imaginário. Pede apoio para os rapazes. Alvalade ruge como um leão. (…)

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Na bancada presidencial, um homem, que nas últimas semanas trocou o fato impecavelmente branco que por norma usa nas grandes ocasiões por um fato escuro clássico em memória do pai que faleceu em Fevereiro, aprecia a cena com um misto de surpresa e incredulidade. Apesar do muito que fez pelo equilíbrio das contas do clube e pela criação de condições desportivas ímpares que tornarão esta época de 1981-1982 uma das mais bem-sucedidas de sempre do Sporting Clube de Portugal, naquele momento, o presidente João Rocha é um homem atónito. É a Allison e a esta irreverência infantil que os adeptos se rendem. Face à amante exuberante e nem sempre certa, mas capaz desta volúpia criadora, a mulher rigorosa, elegante e visionária esmorece. Naquele minuto, o Sporting pertence a Malcolm Allison.

A multidão reage. «Alvalade sempre teve ambientes apaixonados, mas isto era outra coisa», diz Carlos Xavier, que se consolida como jogador titular nessa época. «A Juventude Leonina era na altura uma claque com grande influência brasileira. Havia muitos batuques, um ritmo de samba. Estávamos lá em baixo a ouvir aquilo e queríamos comer o adversário. Até entrávamos arrepiados.» (…)

Allison perscruta, um a um, os rostos dos homens que escolheu para a batalha. Ferenc Meszaros, o húngaro com o bigode farfalhudo, foi contratado antes mesmo de o treinador observar a equipa no estágio da Venezuela. Sentiu que precisava de um guarda-redes sólido, sabendo melhor do que ninguém que os campeonatos se começam a vencer com uma presença forte na baliza. Rocha escolheu Meszaros, Allison ficou encantado com o húngaro desde o primeiro dia.

O Bobó, como os colegas lhe chamam, fala pouco e ri muito. Integrou-se desde o primeiro dia. A poucas horas da batalha, está sereno como se fosse cortar o cabelo ou arranjar o bigode. Não será por ali que a equipa vai tremer.

Olha de soslaio para Eurico, homem do Norte, rijo como poucos. Encara cada bola dividida como uma luta pela vida. Está pensativo, mas não vergará – nunca se lhe fará total justiça, mas Eurico é uma das traves-mestras da equipa. Quando sair, todo o edifício colapsará.

Nogueira, o centrocampista de quem pouco se esperava depois da transferência do Restelo para Alvalade, tornou-se outra peça-chave no seu Sporting. É a extensão do treinador em campo, troca por suor toda a confiança que lhe foi dada. Mais ainda: puxa pelos colegas quando sente que o esforço alheio não está à altura da ocasião. «Nunca tive problemas durante um jogo em dizer a um colega: “A tua camisola não é verde e branca como a minha? Então, corre e luta por ela.” Não era para ofender. Servia para espicaçar.» Allison gosta dessa atitude, talvez por se rever a si próprio nesse papel enquanto fora jogador do Charlton e do West Ham.

Nogueira está à mesa, mas já imagina confrontos no meio-campo para a hora do jogo. E, entretanto, com discrição, beneficia da solicitude dos empregados da Churrasqueira; o seu café vem sempre complementado: «Com um cheirinho de whisky, com um acordo que eu tinha lá com os rapazes do restaurante. Eu e outros.» Se dá por isso, Allison não comenta. Não tem feitio para polícia e, melhor do que ninguém, reconhece que cada atleta sabe do que precisa para relaxar antes do jogo.

Manuel Fernandes, o capitão, é a fibra desta equipa. Ninguém sabe fora de Alvalade, mas joga há semanas com uma lesão na pélvis que o levará à mesa de cirurgia no Verão. Não se queixa. Sacrifica-se. Dele, Allison dirá mais tarde que é o espelho do carácter e o sonho de qualquer treinador, além de um marcador de golos insaciável.

Noutro ponto da mesa, juntam-se Ademar, Marinho e Virgílio – o núcleo do meio-campo que, ao lado de Nogueira, constituirão os tocadores de lata durante a época, na feliz expressão de Ademar. «Tínhamos na frente os mágicos, os génios, o que quiser chamar-lhes – mas não se esqueça que qualquer equipa precisa de ter tocadores de lata na cozinha para chegar ao sucesso.» Allison paga-lhe na mesma moeda. «Ademar tem enorme espírito de competição», dirá o inglês ao Diário de Lisboa. «Trabalha no duro como qualquer grande europeu. E tem sempre tremenda ambição de ganhar. Por causa disso, é fácil ser treinador dele.»

Introspectivo, em contrapartida, Jordão vive a contas com uma crise de motivação. Mostra-se capaz de decidir um jogo e de passar ao largo do seguinte, dependendo da conjugação dos astros. O predestinado começa aos poucos a perder a paixão pelo jogo e nem Big Mal, o treinador com mais compreensão que encontrará na sua carreira, evitará a quebra posterior. Em compensação, é um tipo de goleador raro, quase único no mundo. Como se tivesse um pacto com o Grande Relojoeiro, adivinha o desfecho de cada centro com um segundo de antecedência e castiga cada desatenção adversária sem piedade. É o mais próximo que o futebol português tem com um assassino a sangue-frio – marca golos em série, centenas deles, por se especializar na arte de adivinhar o que todos os outros não imaginam.

Há quem coleccione selos, moedas, postais ou maços de tabaco. Jordão colecciona golos (embora também tenha uma ampla colecção de isqueiros em casa). Vistosos ou simples. Acrobáticos ou básicos. De cabeça ou com qualquer outro ponto do corpo. Marca-os com a mesma naturalidade com que caminha, come ou dorme.

Barão e Carlos Xavier compõem o resto do grupo. Foram apostas de risco durante a temporada, mas, passados oito meses, ninguém questiona que o lateral direito é o mais britânico dos defesas do Sporting, com capacidade pulmonar para jogar o dobro do tempo se necessário fosse. «Barão é um speaker», dirá Allison aos jornalistas Daniel Reis e João Querido Manha. «Tem rara sensibilidade em campo. Se um colega falha, ele grita imediatamente e corrige a brecha.» Quanto a Carlos Xavier, é a aposta predilecta de Allison. Em entrevistas, o inglês compara-o duas vezes a Franz Beckenbauer: «Similar hability», dirá à Gazeta dos Desportos. «Controla muito bem a bola, avança com ela nos pés, dribla bem, passa bem. Será um jogador famoso se melhorar o seu jogo de cabeça e com o pé esquerdo.» (…)

Como sempre, o treinador autoriza um copo de vinho à refeição a cada jogador. Agora, oito meses volvidos sobre o início da época, os funcionários do restaurante já não estranham. A princípio, perguntavam, e voltavam a perguntar, se teriam percebido bem o treinador. Era mesmo para servir vinho tinto aos profissionais de futebol? Eurico, o defesa central mais experiente, recorda-se bem do dia em que Allison caiu definitivamente no goto dos jogadores. Foi à mesa, uma mesa como esta, num dia como este. O inglês acabara de explicar ao empregado de mesa que cada jogador tinha direito a um copo de vinho por refeição e este, devagar, encheu todos os copos. Preparava-se para levar de volta a última garrafa com o resto do precioso néctar não distribuído, mas Allison não deixou: «Deixe aí a garrafa», ordenou, provocando uma gargalhada generalizada.

O truque vinha de trás. Quando comandara o Manchester City, encorajara também os jogadores a beber um copo de brandy antes dos jogos. Desta feita, porém, nem a descontracção do vinho e do ambiente familiar parece resultar. Cinzelado por mil batalhas, Allison já viu este pavor muitas vezes. António Oliveira também. O centrocampista fez tudo o que deve ser feito na véspera de um grande jogo: transmitiu fé aos colegas através de entrevistas aos jornais. Correria mundo, aliás, a frase publicada em título na Gazeta dos Desportos logo a seguir à lesão do Bessa: «Por cada leão que cair, outro se levantará.»

Poucos sabem, porém, que Oliveira não a proferiu tal e qual assim. «Essa frase foi podada na redacção da Gazeta», lembra, com uma gargalhada, o jornalista Daniel Reis, então subchefe da redacção do jornal. «Oliveira disse ao repórter Francisco Rosa: “Eu caí, mas outros vão levantar-se.” Na redacção, não deixámos de notar a semelhança com a célebre tirada dos bolcheviques nas trincheiras: “Por cada comunista morto, outros mil se levantarão.” Lá demos a volta à frase e ficou essa tirada bonita atribuída ao Oliveira, que não a disse nos exactos termos em que foi publicada. E está até preservada em lápide no Estádio.» Ao Expresso, muitos anos mais tarde, Oliveira assumirá a paternidade da frase: «Quer que eu lhe diga? Vai rir-se, acredite. Veio da minha cabeça.» (…)

Os jogadores voltam ao relvado pelos mesmos túneis paralelos que os levam ao balneário. Alertada pelos jovens de fato de treino branco colocados à boca dos túneis, a multidão produzirá uma cacofonia incomparável quando os jogadores do Sporting entrarem em campo. Liderados por Ademar e Manuel Fernandes, onze homens equipados vão irromper a galope, dispostos a tudo e convictos da sua superioridade. «A entrada em campo era especial», conta António Oliveira. «Sabe que eu e o Meszaros éramos sempre os últimos desse pelotão, quase com dez metros de atraso face aos outros? Ficávamos no túnel a dar a última passa no cigarro. Eu puxava a última vez, atirava o cigarro para o túnel e sprintava para apanhar os outros. O Meszaros ainda fazia pior: chegou a levar o cigarro escondido na luva, chegava à baliza, dava uma última passa dissimulada e apagava o cigarro no poste!» (…)

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No final de Janeiro de 1981, parece evidente que o campeão em título não vai renovar as faixas. Fernando Mendes, o treinador campeão no Verão de 1980, já foi despedido e o comando técnico da equipa entregue… ao preparador físico jugoslavo Srecko Radisic, que o guarda-redes António Vaz trata por «lacaio» na imprensa. Acumulam-se queixas dos jogadores e assobios dos adeptos. Sobram derrotas inverosímeis – em Portimão, em casa com o Académico de Viseu, no Bessa. [João] Rocha precisa de um golpe de teatro que desvie as atenções para o futuro.

O destino joga-se assim na velhinha Estação de Santa Apolónia, em Lisboa. Neste dia 11 de Fevereiro, o foguete que liga o Porto a Lisboa transporta um passageiro especial. Pelo átrio da estação, um homem de calças de bombazina e pólo branco avança, com passo destemido, pelo território rival. Vem armado apenas com dois pés geniais, um tronco ligeiramente arqueado, um cérebro que parece pensar dois segundos antes do dos restantes e a malandrice que só o futebol de rua consegue curtir. Num magnífico perfil que escreverá sobre ele, o jornalista Rogério Rodrigues resumirá em O Jornal: «Tem um ar desprotegido, de clown triste na madrugada, depois de se desmaquilhar. Parece alguém indefeso, introvertido. Não veste farda de general mas ganha mais do que um general. Não tem tempo de antena na TV e tem mais tempo do que o Presidente da República.»

Estamos longe ainda das notícias construídas sobre o fecho dos mercados e as cláusulas de transferência. (…) Em breve, serão os agentes de jogadores a controlar a roleta da sorte, definindo contratações e construindo campeões. Por ora, porém, são meros aprendizes de feiticeiro. Em campo, por enquanto, mandam os artistas, quase sempre de bigode e cabelos desgrenhados, tratados pelo apelido, sem manias nem humores, sem páginas de Facebook ou conta de Twitter, sem telefone portátil ou botas coloridas.

Embora dado a superstições, António Oliveira não interpreta como mau presságio a avaria que o seu automóvel sofreu à saída de Penafiel logo no dia em que se aventura pela estrada nacional até Lisboa. Os génios sabem que o talento não depende de mezinhas e, prático, o jogador-treinador do Penafiel dirige-se com a mulher, a filha, o irmão e a cadela Faia para Campanhã e embarca no comboio. Esperam-nos mais de três horas de viagem e Oliveira usa-as para reflectir sobre a decisão drástica que se prepara para tomar. (…)

No FC Porto, graduou-se. Tinha capacidade técnica acima da média e coragem para partir para cima de qualquer adversário. A sua finta de corpo quase não tinha rival no futebol musculado dos anos de 1970. Viveu no Lar do Jogador até já não aguentar mais as restrições: não se podia beber, fumar, «tão-pouco ter-se rádio. Às dez horas da noite, tinha de estar tudo na cama», contou Oliveira, um dia, ao jornalista Rui Santos. Chegou a internacional e foi bicampeão nacional sob a batuta de Pedroto, aventurando-se depois, sem glória, pelo futebol espanhol na Andaluzia. (…) «Lembro-me que se contava que Oliveira vivia em Sevilha com muitas saudades do Porto», conta o jornalista João Marcelino, então no Record. «Metia-se no carro e vinha jantar ao Porto, mesmo sem auto-estradas. Na manhã seguinte, voltava para treinar. Hoje seria impensável.» (…)

No Verão de 1980, a casa portista colapsa com estrondo. A direcção de Américo de Sá, presidente do FC Porto e dirigente nacional do CDS, afasta o chefe do Departamento de Futebol, Jorge Nuno Pinto da Costa. Trocam-se palavras duras nos jornais. José Maria Pedroto, o treinador, solidariza-se e cria um movimento de contestação. Os demitidos acusam Américo de Sá de passar mais tempo em Lisboa do que na sede do clube. Quase duas dezenas de atletas abandonam o clube, entre os quais António Oliveira. «Eu nem estava no clube no início do processo porque me encontrava em tratamento de uma lesão. Cheguei, contaram-me o que sucedera e disseram-me que a posição era maioritária entre os membros do plantel. Assinei também a petição pedindo a reintegração do Jorge Nuno», conta o jogador. (…)

Como nos namoros antigos, João Rocha faz a corte a António Oliveira e ao irmão. Investe tempo na sua diplomacia de charme. Faz-lhes saber que, com Oliveira no meio-campo, o futebol do Sporting ganha dimensão europeia. Apela à vaidade: descreve-o – sem favores – como o génio português da década de 1970. (…) Um dia, a noiva cede e baixa a guarda. Com a época de 1980-1981 em curso, António Oliveira aceita o convite de Rocha e vem a Lisboa a meio da semana conhecer Alvalade e assinar um pré-contrato, válido a partir de Julho de 1981. Na verdade, assina apenas uma folha de papel, um documento de princípios, que só terá validade após reconhecimento notarial em Julho. Entre cavalheiros, porém, é como um pacto de sangue e Oliveira honrá-lo-á no Verão, quando do Porto chegarem cantos de sereia e ofertas milionárias. Não é um tiro no escuro – José Maria Pedroto preparava-se para assinar também com o Sporting e recomendou ao seu antigo pupilo que aceitasse o convite de Lisboa. «“Assina pelo Sporting, que eu vou ser treinador do Sporting”. Eu assinei e o Pedroto não foi para o Sporting.» (…)

João Rocha reconhecerá ao longo da vida que a contratação de António Oliveira, muito antes da de Malcolm Allison, foi a primeira pedra da construção leonina de 1981-1982 – porventura o tijolo mais sólido da muralha sportinguista, mas poucos se recordam que houve uma interferência peculiar na transacção. João Rocha dirá mais tarde que, a partir do momento em que Pinto da Costa foi afastado do FC Porto por Américo de Sá, «diligenciou para que Oliveira, quando terminasse o contrato com o Penafiel, viesse para o Sporting, através de conversas em vários sítios no Porto e em Lisboa. Este homem recalcado, posto no lugar da oposição, passava muitos domingos com a direcção do Sporting, com conversas de traição para com o seu clube, a assistir a jogos do Sporting, quer se realizassem no nosso estádio ou no dos adversários». (…)

Oliveira tem à sua espera em Santa Apolónia um jornalista de uma publicação virtual. Murillo Lopes é redactor da Gazeta dos Desportos, que ainda não existe neste dia 11 de Fevereiro de 1981. Aproveitando a sorte da panne automobilística, Murillo desafia Oliveira a visitar a redacção do jornal e depois a seguir para Alvalade. «Foi no meu Renault 9 que o António Oliveira saiu da Estação de Santa Apolónia para a redacção, depois para o Estádio de Alvalade e de seguida para o Aeroporto da Portela, na companhia do subdirector Vasco Resende. À noite, Oliveira ainda embarcou no avião para participar na festa de lançamento da Gazeta, depois de trocar de fato. Foi uma autêntica maratona», conta o jornalista. Era a primeira cacha do jornal então em plenas dores de parto: o jogador-treinador do Penafiel já tinha compromisso para ingressar no Sporting. Toda a entrevista fora conduzida durante a viagem de automóvel, com Murillo no lugar do condutor a lançar questões e Oliveira, no banco de trás, a responder, mas lembrando sistematicamente que não podia perder o avião do final da tarde.

No apertado gabinete de João Rocha em Alvalade, acotovelam-se para o instantâneo histórico Rocha e o seu braço-direito, Artur Sousa Marques, Oliveira, a esposa e a filha, o irmão Joaquim, que discute todos os pormenores do contrato e depressa determina que, em vez de morar na Portela, onde o Sporting lhe prepara um apartamento, António prefere instalar-se no Lumiar, perto do estádio, para melhor se integrar. Tem apenas uma reivindicação – a de sempre: «Não admitia que nenhum jogador ganhasse mais um cêntimo do que eu», contou mais tarde ao Expresso. Rocha atribui ao novo recruta um salário idêntico ao das outras duas estrelas da companhia – Jordão e Manuel Fernandes.

As tesourarias dos clubes estão, então, em permanente alvoroço e o Sporting tardará em cumprir os primeiros acordos com o jogador. «O primeiro apartamento onde me colocaram, mesmo ao lado dos antigos estúdios da RTP, era mauzito. Só me faltou dormir no chão. E poucos sabem também que, para outro reforço vir nesse Verão, tive de emprestar dinheiro ao clube», diz Oliveira. «Tinha um prémio de assinatura a receber, explicaram-me que não havia dinheiro e concordei em recebê-lo mais tarde para esse colega vir. Se calhar, nem ele sabe dessa situação.»

Enquanto o dono assina o documento de princípios que o vinculará ao Sporting, a cadela Faia mordisca os dedos do presidente do Sporting. Respira-se confiança naquele gabinete apertado – uma confiança palpável, sustentada, que se espalha como um vírus. Por vinte mil contos, o Sporting contrata um génio. (…)

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“Desde o primeiro ano da sua liderança, em 1973, João Rocha concebera a sua missão com objectivos tão abrangentes e claros que parece quase inverosímil o modo como estes se dissiparão como éter mal termine o seu último mandato em 1986. Como o presidente confidenciou ao jornalista Vítor Serpa de A Bola, o Sporting não teria vantagem em comparar-se ao rival da mesma cidade se apostasse todas as fichas na discussão futebolística. Para Rocha, o desígnio é outro. O Sporting tem de ser uma cidade desportiva. Tem de reunir milhares de associados e praticantes de modalidades. Da força dos números virá a força das receitas económicas, o poder reivindicativo e a capacidade de aglutinação dos genuínos desportistas. O Sporting de Rocha será sempre o Sporting do eclectismo, dos 15 mil praticantes e dos 100 mil sócios, tão cativado por uma medalha de Carlos Lopes, um remate de António Livramento ou uma pedalada de Joaquim Agostinho como por um golo da equipa de futebol.

Vive e respira em Alvalade. Rouba horas ao sono. Os mais próximos assistem a episódios de loucura juvenil. «Os clubes adversários, minutos antes do jogo, afixavam a constituição das suas equipas no balneário do Departamento de Formação. Cheguei a assistir à cena incrivelmente divertida de o presidente do Sporting olhar para a lista, memorizar os nomes dos adversários para poder rapidamente alertar o treinador do Sporting sobre a identidade dos rivais», conta João Xara Brasil. (…)

João Rocha terá sido o verdadeiro self-made-man português do século XX. Nascido no seio de uma família da pequena burguesia dispersa pelos concelhos de Sesimbra e Setúbal, começa cedo a trabalhar. Aos 13 anos, ignora a empresa de transportes fundada pelo avô na Margem Sul do Tejo, integra-se como tarefeiro no Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa e ali sobe a pulso a íngreme escada de mérito da instituição, fazendo recurso da sua capacidade inigualável de negociação. Duro, por vezes brutal, com um forte sentido de honra, chega a gerente de dependência e, depois, a director do banco. Sai. Monta a sua própria empresa de importação e exportação na década de 1960, começando por importar e vender transístores da marca National, satisfazendo encomendas improváveis como a aquisição de largas quantidades de vitamina B12 ou das pulseiras da sorte de Hong Kong. Tudo encontra e tudo vende. Funda em 1963 a Comundo, uma trade company. Enriquece. (…)

Em 1973, ao tomar posse no seu primeiro mandato, Rocha joga futebol com os amigos, mas percebe pouco do jogo e dos seus meandros. Em poucos meses, porém, o seu espírito empresarial traça um diagnóstico brutal: o modelo de negócio dos clubes, baseado no associativismo e na quotização, não suporta as despesas. Rocha desenha e faz aprovar pelo governo o primeiro modelo ibérico de um clube-empresa, alicerçado numa nova sociedade, a Sociedade de Construções e Planeamento. A revolução trava o ímpeto e o projecto fica guardado na gaveta. Como um falcão, o presidente olha para outras direcções, outras fontes de receita. Organiza digressões das equipas do Sporting a países difíceis – a Angola, à China. Ganha dinheiro e sobretudo reconhecimento. Faz amizades com facilidade. Tira partido, na digressão angolana, da enorme popularidade do Sporting entre a cúpula directiva do MPLA. Rocha é o desbloqueador, o empresário que triunfa onde a política soçobra e vários dirigentes angolanos passarão sempre por sua casa em Lisboa. A digressão do clube por Angola é um sucesso diplomático e os craques são recebidos como heróis.

Apesar de na sombra apoiar a solução governativa da Aliança Democrática (AD), cujo governo liderado por Pinto Balsemão está em 1981 em lenta agonia, Rocha advoga o total apartidarismo de um clube onde se juntam eleitores de todas as facções. No Verão de 1982, o semanário Expresso dará conta da habilidade e tacto do presidente sportinguista, ao evitar que, nas eleições legislativas de 1980, as estrelas principais da equipa quebrassem a regra de ouro: «Conseguiu evitar que Jordão aparecesse a fazer propaganda da AD ou que Manuel Fernandes, por reacção, viesse a apoiar a Aliança Povo Unido (APU) – coisa que não aconteceu no Benfica, onde o envolvimento de Humberto Coelho na campanha da actual maioria governamental [a AD] criou forte tensão na equipa, especialmente entre os jogadores de esquerda (casos de Chalana e de Toni, pró-APU e PS respectivamente.» (…)

O presidente desgasta-se com frequência em controvérsias menores. Apesar de, com alguma ironia, habitar a mesma mansão na Lapa onde se reuniam todas as semanas os Vencidos da Vida no século XIX, Rocha não suporta a derrota. Através do jornal do clube, trava batalhas infindáveis. Em Novembro deste ano de 1981, envolve-se em novo processo jurídico no Tribunal da Boa Hora por um motivo tão prosaico como desnecessário. Na época de 1979-1980, o Sporting sagrara-se campeão nacional de futebol, beneficiando de um golo do vitoriano Manaca na própria baliza, na penúltima jornada. O correspondente de A Bola em Itália, um funcionário da Caixa Geral de Depósitos que assina como Martins de Sá, insinuara em crónica transalpina que o golo fora negociado. Do jornal do clube, com o evidente beneplácito do presidente, disparou João Xara Brasil, o director: «Portista fanático calunia Sporting em crónica enviada para Itália.» Para tribunal, seguiram todos os envolvidos, com acusações cruzadas de ultraje. Martins de Sá queixa-se de Xara Brasil; o Sporting queixa-se de Martins de Sá; e Manaca só não coloca queixa idêntica porque o seu advogado falece em acidente de viação, queimando com o automóvel a pasta com todos os documentos. (…)

Jogador exímio de cartas, Rocha sabe que precisa de um trunfo. De preferência, um ás, um treinador conceituado. Tenta por isso contratar José Maria Pedroto, o treinador nortenho mais bem-sucedido da década de 1970. Pedroto colocara no mapa as equipas do Vitória de Setúbal e do Boavista, antes de regressar ao FC Porto em 1977, ali conquistando dois campeonatos dezanove anos depois do último triunfo. Tem aura de génio das tácticas e bons amigos na imprensa. Em 1981, exilado em Guimarães, é um portista desconfiado de Américo de Sá. Há várias versões sobre o desacordo entre Rocha e o treinador: conforme alguns testemunhos, Pedroto exigiu um orçamento amplo para contratações e… despesas informais; para outros, o treinador apenas quis ganhar tempo até Abril de 1982, data em que o seu amigo e delfim, Jorge Nuno Pinto da Costa, prometeu candidatar-se à presidência do clube nortenho; os mais românticos, esses, crêem que Pedroto nunca aceitaria representar um dos rivais do «seu» FC Porto. (…)

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Entretanto, as páginas do calendário avançam sem resultados concretos. Rocha aponta baterias para John Mortimore que, anos antes, brilhara ao comando do Benfica. Mortimore é polido, mas categórico: a saúde da filha não lhe permite viver em Lisboa, pelo que lhe interessa mais o cargo que o Southampton lhe oferece perto de casa. Em jeito de despedida, talvez por delicadeza, o técnico sugere o nome de um amigo – Malcolm Allison. Bom rapaz, assegura a João Rocha. Um pouco extravagante, mas bom rapaz. (…)

Por coincidência ou sugestão de Mortimore, o inglês estivera em Alvalade em observação de jogadores na última jornada da temporada. No camarote 65, estudara a equipa do Sporting e ficara desde logo impressionado com Jordão, Manuel Fernandes e Manoel, que em breve sairia para o Portimonense. Percebe que o ritmo e a linguagem corporal da equipa expressam o saldo de uma temporada infeliz, mas vê qualidade em campo. Tem por isso um único pedido. Gosta de guarda-redes seguros, sempre gostou. Precisa de um nome forte para a baliza.

Em trinta minutos de charme neste domingo de Junho, João Rocha e Malcolm Allison debatem amigavelmente o seu projecto europeu para o futebol do Sporting. Rocha informa Allison que escolheu um tradutor para a equipa de futebol, um homem da sua confiança, que ajudará a fazer a ponte linguística entre o inglês e os jogadores. Allison responde de pronto: «Não é preciso, presidente. A linguagem do futebol é universal e eu sou um tipo expansivo.» Rocha fica pensativo, em silêncio. Não está habituado a que o contradigam. Com a mão esquerda, Malcolm Allison formaliza o contrato com um ano de duração. À despedida, como se lhe anunciasse uma notícia menor, João Rocha deixa cair: «Preciso de si amanhã. Preciso que embarque para a Venezuela com a equipa para uma digressão.»

Fiel à sua alma temerária, Big Mal aceita sem pestanejar: «Very well, sir.» Segundos depois, começará a tentar descalçar a bota junto da mulher, que sonhara com o sol do Algarve e, afinal, ficará sozinha durante duas semanas.

No dia seguinte, à hora do embarque, o intérprete Jaime Lopes apresenta-se a Malcolm Allison. É evidente que o presidente ignorou a opinião expressa pelo treinador na véspera. Lopes entrega um papel de Rocha para o treinador. No bilhete, o presidente do Sporting pergunta-lhe se o húngaro Ferenc Meszaros, guarda-redes do Vasas de Budapeste e titular da selecção que estará no Mundial de Espanha de 1982, tem interesse. O France Football acaba de o nomear como segundo melhor guarda-redes da Europa. Como já tem 30 anos, a Federação Húngara de Futebol permite a sua saída para o estrangeiro como prémio de carreira. Custa ao Sporting 80 mil dólares, ou 4800 contos – apenas com a obrigação extravagante de os salários terem de ser pagos em dólares para evitar as flutuações do instável escudo.

Apertando a mão do seu novo colaborador, Allison sorri para os seus botões. “Isto vai ser interessante.