Como sócio do Sporting entendo ter responsabilidades e direitos. A questão que me faz escrever estas linhas envolve ambas as vertentes da condição que relatei.

Existem vários problemas no futebol português. A maioria é complexa e difícil de resolver. Mas existem outras que apenas não são resolvidas por pura inépcia e laxismo ideológico. Falo dessa praga promotora de valores anti-desportivos que graça pelas televisões, mais particularmente os ditos “debates sobre futebol”, aka “painéis desportivos” ou “programas de paineleiros”.

A fórmula parece ser um “cash-cow” para canais como a CMTV, TVI24, SIC Notícias ou ABola TV. Sei que sabem exactamente ao que me refiro e quase que adivinho que sabem exactamente o que vou dizer sobre estes programas. Na verdade toda a gente identifica o problema que são e o ruído que geraram e vão continuar a gerar na sua proliferação e sucesso de audiências. A sua atracção explica-se de forma tão simples como paradoxal. Se não há polémicas, criam-se. Se não há desacordo, inventa-se. Se não há ódio, estimula-se. A audiência quer ver “sangue”, quer ver agressividade, golpes baixos, difamação e ofensas. Os “coliseus romanos” entram pelas casas dos adeptos e o “circo” derrama clubite, hora atrás de hora, os cifrões dos patrocinadores vão aumentando, o futebol vai empobrecendo.

As várias horas de transmissão destes “shows” não têm qualquer conteúdo sobre desporto, ninguém se debruça sobre a prestação de jogadores ou treinadores, não existe qualquer elogio à qualidade, ao empenho ou ao mérito desportivo. Tudo rodeia apenas um único factor: a polémica. O desporto comentado é o “Ódio Visceral sem Barreiras”, o “Tiro com Cartilha”, a “Maratona de Hipocrisia” e o “Lançamento do Insulto”. Os “paineleiros” não são pagos para “defender o clube” (como muitos dizem) mas sim para tentarem denegrir as posições dos clubes rivais. Não são pagos para debater ou trocar opiniões, mas sim para estimular o recurso ao autismo competitivo, onde ganha quem for mais surdo e insensível a argumentos contrários.

Custa-me dizer isto, mas todos os comentadores sabem bem que estão a contribuir para tudo o que é mau no desporto. Sabem-no, mas aquelas centenas de euros semanais vão chegando para anestesiar algum remoto sentimento de culpa ou vergonha. Como em muitas coisas na sociedade, é mais fácil imaginar que se está a ser pragmático, aceitando o que “outros iriam aceitar” e “antes para mim, que para os outros”. Chegamos então ao ponto em que estamos agora. Todos sabem que urge reduzir o impacto negativo destes “coliseus”, ninguém sabe como. E é aqui que reside a razão deste texto. Eu acho que cada pessoa pode fazer alguma diferença e como comunidade podemos fazer muita diferença na evolução do debate sobre a utilidade ou validade destes formatos.

Não acho que a questão deva ser posta sobre a pergunta “como podemos acabar com estes shows de degredo dialético” mas sim, perguntarmo-nos “o que podemos fazer para reduzir a exposição dos nossos adeptos a esta carga tóxica”. E nesse sentido vejo como a solução mais prática e viável a promoção de um debate o mais abrangente possível dentro do universo leonino, sobre se devem os adeptos do Sporting estar representados nestes painéis e dessa forma viabilizar o formato do debate como “entre os três grandes”. Julgo sinceramente que não cabe ao clube “proibir” ou ”vetar” a decisão de um indivíduo em participar nos programas. Mas caberá sem dúvida aos dirigentes leoninos poder suscitar possíveis consensos entre adeptos e associados.

Resistir à tentação de usar estes espaços para fazer circular informação pró ou contra-spin seria já um resultado significativo, pois sabemos que não só os “representantes” de cada emblema gostam de se sentir aproximados do status quo de cada emblema, mas também que as próprias “comunicações” dos grandes clubes adoram contar com ajudas de ressonância mediática, onde quer que estas possam existir. Muitos dos habituais comentadores leoninos defenderão o contrário do que estou a tentar expressar, invocando a primazia da “real politik” futeboleira, desenhando na poeira do espaço de absurdos a imagem “não podemos ser comidos de cebolada” ou “é esta a realidade e temos de nos adequar à mesma”. Mas eu pergunto: e faz sentido fazê-lo quando sentimos que é a mais errada das opções?

Não teremos já maturidade suficiente para acabar com as “regras de recreio da escola” e deixar de fazer algo só porque “os outros também fazem”? É que tudo isto me sabe a qualquer coisa bastante próxima da parábola de Mark Twain “Never argue with stupid people, they will only drag you down to their level and then beat you with experience” e isso, só não devemos mudar se não conseguirmos. Mas antes de chegar a esse patamar, teremos de tentar. As vantagens serão evidentes, o esforço será proveitoso e racional. Não tenho a mínima dúvida que este não é um assunto menor, tanto quanto tenho a certeza que sermos o primeiro clube a debruçar-se sobre o mesmo, só nos colocará na vanguarda de uma solução que a todos beneficiará.

Concluo com algo que vejo como bastante simples e que gostaria deixar na imaginação de todos: o que o Sporting se deve opor é ao conteúdo e à temática destes programas e não ao formato ou a existência dos mesmos. Falar sobre tudo o que é o desporto, sim (até incluindo as polémicas). Falar só sobre as polémicas e partindo sempre da observação mais especulativa possível, não. Os “inimigos” não são os canais de tv, os jornalistas, o lucro ou as audiências, mas sim a promoção da mentira e do conflito como algo lúdico, de facto, destruindo o diálogo e todos os valores que estão na base e na riqueza do desporto. Basta ver 10 minutos de qualquer um destes programas e no tipo de moderação realizado para se entender exactamente o que está em causa.

ventura1

*às quartas, o Zero Seis passa-se da marmita e vira do avesso a cozinha da Tasca