Mais do que as cinzas de fanáticos do Boca Juniors atiradas para o relvado da Bombonera pelos seus entes queridos, que lhes satisfaziam o último pedido.
Mais do que a bandeira de oito quilómetros cosida e empunhada pelos adeptos do River Plate, unindo o Monumental ao velho campo Alvear y Taigle, cobrindo as ruas de Buenos Aires com o maior estandarte do mundo.
Mais do que os cânticos, com bombos e guarda-chuvas. E do que a chuva de papelitos dos recibimientos épicos nesses templos sagrados do futebol argentino.
Mais do que tudo isso, dizia, o que me impressionou no Boca-River da primeira mão da final da Taça Libertadores foi esta foto: um miúdo pendurado nas redes a vibrar com futebol.
Não sabemos o seu nome. Mas também não precisamos de o chamar. É apenas um miúdo tomado por aquela paixão precoce.
«Apenas» é força de expressão. Está lá tudo. Haverá poucas imagens que melhor sintetizem tantos sentimentos num só instante: o fervor e a inocência, a alegria e a ternura, o encanto e o destemor.
Ao vê-lo, recordo uma notícia que li por estes dias sobre Neymar: um documentário da France 2, citando documentos divulgados pelo Football Leaks, revelou que o craque brasileiro recebe no Paris Saint-Germain um bónus de 375 mil euros anuais por aplaudir os adeptos no início e no final dos jogos.
Se é verdade que um magnata disposto a esbanjar petrodólares e um astro mundial podem acordar o que quiserem entre si, também o é que este mercenarismo implícito a cada gesto do futebol pós-moderno está a tornar os adeptos cada vez mais cínicos e a matar-lhes aos poucos a paixão.
Há qualquer coisa de imoral em haver quem quantifique e cobre por gestos tão simples, aparentemente genuínos. Há um mundo de diferenças entre estes dois futebóis, que a separá-los muitas vezes não têm mais do que uma rede ou um fosso.
O antagonismo é gritante.
«Não é possível parar com as mãos os ventos da mudança», dir-me-ão os pragmáticos militantes ou os deslumbrados deste novo mundo.
Mesmo que assim seja, permitam àquele miúdo da Bombonera continuar a acreditar na autenticidade de cada aceno, na veracidade de cada ovação.
Na sua inocência, ele tem por certo aquilo que no mundo dos graúdos devia ser lei: no futebol, os aplausos não se cobram.
23 Novembro, 2018 at 10:15
https://youtu.be/U4Em_hy70kc