Vale muito a pena ler a entrevista de João Couto à Tribuna Expresso, onde fala de conceitos, dos papéis de miúdos, pais, treinadores e empresários, a “chatice” dos contratos profissionais assinados demasiado cedo e indica para onde deve caminhar a formação em Portugal

Porque anda no futebol há tanto tempo?
Foi uma opção de vida. Fui tendo duas carreiras: uma como professor, outra como treinador. O início da minha vida foi como jogador de futebol e depois a faculdade. Sou licenciado em metodologia do treino e futebol. Segui essa linha. Formatei-me em termos académicos para ser treinador. No pós-faculdade, tinha o mundo aberto, ao contrário do que os miúdos têm agora. Sou o quinto licenciado em Educação Física pelo ISEF [Instituto Superior de Educação Física]. Naquela altura havia grande conflitualidade entre formados pela via académica e aqueles que vinham de uma carreira de jogador. Não era fácil dizer que ia ser treinador com 24, 25 anos e que ia viver à conta do futebol. Por isso, fiz mais uma área, a escolar. Fui, ao longo dos tempos, vivendo esta dupla função: treinador-professor, professor-treinador, às vezes só treinador, outras só professor. Era multilateral, fiz judo, atletismo, mas centrei-me cedo na modalidade que mais gostava e fui jogador de futebol.

Onde?
Joguei em dois clubes que, neste momento, não são bons como eram na altura (risos): Oriental e União de Tomar, na primeira e segunda divisões. A minha referência é o Oriental, onde eu era júnior, subi a sénior e tinha alguma visibilidade. Depois acabei por iniciar um projeto da faculdade, que era um centro de treino integrado para as pessoas que estavam a estudar e pertenciam ao gabinete de futebol. Fizemos um projeto inovador: ter uma equipa da Universidade Técnica de Lisboa a competir na distrital. Éramos uma equipa de ponta, com valores muito bons. Alguns até seguiram diretamente para clubes da Primeira Divisão e eu pensei assim: eu gosto de ser treinador, foi-me dada a oportunidade, no final da faculdade, de começar um projeto e fiquei como treinador no Colégio São João de Brito. Sendo aluno do colégio, era uma referência para mim. O projeto de início da integração das equipas competitivas do colégio foi dessa altura, feito pelo José Tomaz, o coordenador, e por mim. Fiquei vinculado cinco anos, como treinador, ao Colégio São João de Brito. Depois, entrei no mercado. A ambição era diferente. Fui para o Olivais e Moscavide, Belenenses, passei pelo Real e fui coordenador técnico da Associação de Futebol de Lisboa. No Real, foi a única experiência nos seniores. Foi aí que podia ter mudado a agulha, mas convidaram-me para o Sporting e rejeitei essa via. Para além de ser sportinguista, queria voltar à formação.

Como deve ser um treinador de formação?
Tem de ser diferente do treinador de seniores. Podemos dizer que uma das vias, na formação, é: a equipa não vale tudo. O motivo, o objetivo, é formar o jogador. Na alta competição tem de estar voltado para a equipa, para o rendimento. A nível da formação temos de estar preocupados com o homem, com o que podemos acrescentar para os jogadores se formarem. Uns vão ser jogadores de futebol, outros vão ser cidadãos normais, mas temos de ter uma visão diferente. É uma população diferente, são adolescentes ou mais jovens. O nosso olhar é para o jogador e para o homem.

Pablo Aimar dizia recentemente que queria transmitir certas ferramentas e valores aos jovens porque eles só são futebolistas duas horas por dia…
É isso, é isso. O trabalho que fazemos é esse, dar ferramentas aos jogadores. A nossa intervenção é de tutoria e controle de fora para dentro. Temos de dar as ferramentas e eles tomam a decisão, a cabeça é deles.

É dos mais experientes aqui, não?
Também sou o mais velho… Ou dos mais velhos, que o [Francisco] Barão é mais velho do que eu [61]. Penso que, sem contar com os sub-23, sou o mais velho.

Ia perguntar se os cabelos brancos impõem respeito…
Às vezes, às vezes. Do lado de fora, os interesses próprios… Às vezes não há respeito nenhum pelo treinador. Isso é uma chatice. Sou uma pessoas que gosta de viver a vida, gosto de ir a espetáculos e há espetáculos em que os próprios intervenientes mandam calar o público e o público cala-se, respeita, porque está na hora do artista jogar. Aqui, o respeito é… o normal no futebol. Nós, que estamos dentro do jogo a tentar focar no importante para apresentar bom resultado, às vezes não é conseguido porque há muita falta de respeito em termos globais. Há muitos interesses no futebol.

Quem é que lhe ensinou mais sobre futebol?
Sou filho da faculdade. Sou filho da vida. A minha experiência como jogador de futebol retomei-a mais tarde, porque houve coisas que, quando era jogador, não tinha capacidade para refletir e fui buscá-las mais à frente. Fui reviver o que tinha vivido como jogador. Todas as aprendizagens aconteceram ao longo da vida e é como o Piaget: vamos à frente mas voltamos para trás para reciclar a aprendizagem. Tudo é importante. Sou filho da faculdade. Abriu-me os olhos e tentei ver um futebol diferente. Houve muita gente que foi influente, sobretudo no gabinete de futebol que foi criado naquela altura na faculdade, desde o professor Jesualdo Ferreira, Carlos Queiroz e, anteriormente, quem criou esse gabinete, o professor Mirandela da Costa, que depois teve um revés na Direção Geral de Desportos. Foi, talvez, a pessoa mais importante para o país, ao abrir a faculdade ao desporto e tentar verter as aprendizagens de quem estudava no dia a dia. Sou filho dessa geração e das lutas seguintes. Sou fruto do que os livros ensinam, do que reflito, das conversas que se fazem. Vamos sendo influenciados, ainda bem, por fatores importantes que nos acrescentam valor. Aos 58 anos, sou uma pessoa que está atenta, tenho dúvidas sistemáticas, pergunto-me sempre se os meus pensamentos estão corretos ou não.

Falou no Carlos Queiroz. Acha que o legado dele é respeitado em Portugal?
Não. Foi uma pessoa demasiado importante. Pela conflitualidade da sua personalidade, pelos acontecimentos ao longo dos tempos, sobretudo na seleção de seniores, as pessoas nunca se aperceberam da grandiosidade dos conhecimentos partilhados pela figura do Carlos Queiroz. Não foi só o Carlos Queiroz, foi também o professor Jesualdo [Ferreira] e toda a gama de alunos, onde me incluo, com Arnaldo Cunha, [Jorge] Castelo e uma série de pessoas que fizeram um estudo sistemático. Posso dizer que quem está no terreno precisa da faculdade, porque repensa constantemente, tem outras ferramentas. Mas a faculdade também precisa dos homens do terreno. É neste jogo de relações que as coisas evoluem, não só na área do futebol. As pessoas não se aperceberam bem deste naipe de pensadores do futebol, que acrescentaram valor em Portugal e no mundo inteiro, pois foram formadores de treinadores e fizeram parte de uma formação global.

Começou a treinar mais a sério nos anos 90. Em que é que os jogadores jovens estão diferentes?
Os interesses mudaram. O contexto e a sociedade foram evoluindo. Nós já somos diferentes também. Os miúdos estavam mais disponíveis para o jogo, porque era mais promovido na rua, havia um prolongamento [da atividade]. O futebol de rua era importante. Agora faz falta. Os miúdos têm outros interesses, os jogos de playstation, e passam menos tempo na rua, porque é mais perigosa. Mas houve outras coisas que melhoraram: há mais conhecimento, há muita gente a trabalhar bem, há clubes a trabalhar de uma forma muito concertada com os treinadores com nível de conhecimento muito maior do que quando comecei. Eu sentia, quando comecei, que havia muitos treinadores com pouco conhecimento mas que tinham muita entrega, muito valor pelo trabalho que gratuitamente davam à sociedade e clube. Eram pagos com pouco dinheiro. Como no atletismo: só foi desenvolvido à custa de muita carolice de muita gente. No futebol foi a mesma coisa. As sociedades são diferentes, a vida é diferente. Há coisas boas e menos boas. Os miúdos são mais cultos. Quando apanhamos um jogador aos 17 anos, alguns já têm uma cultura de futebol de dez anos. Depois há outras coisas más: há escolas de formação que estão muito estigmatizadas pelo modelo de jogo e, antes, as situações de criatividade e 1×1 eram mais vivas. Está muito modelado e o modelar, às vezes, não é bom. Interessa que o miúdo seja um ser pensante, que tome as decisões individualmente, interessa que não seja tão normalizado pelo treinador. Há escolas que têm um programa demasiado fechado. Mas há cada vez mais clubes a trabalhar bem. O contexto mudou, a sociedade mudou.

Tocou no 1×1 e eu gostava de saber se o drible está em crise. O drible já não é tão bem visto como já foi?
Acho que não é assim. Nós, aqui, incentivamos a situações de criatividade. É evidente que não cortamos essa capacidade, incentivamos, temos jogadores nos sub-17 com grande capacidade no drible. É uma ferramenta importante. Os alinhamentos defensivos, às vezes, nem têm coberturas defensivas e é no 1×1 e diagonais curtas que se consegue explorar a linha defensiva. Por vezes, as coberturas não têm tempo para serem feitas e um 1×1 ou uma combinação direta, uma tabela, podem destruir uma linha defensiva. Eu sou fã de jogadores que numa liga alemã, inglesa ou portuguesa destroem uma defesa numa situação de 1×2. É uma arma fundamental, mas inserida numa ideia de jogo. Sou um bocado contra os estereótipos de só se pode sair a três ou quatro… Eu, como treinador, tenho uma ideia diferente. Eu quero sair com um modelo que acrescenta sucesso à equipa e jogador. Não podemos esquecer que o modelo de jogador vale mais do que o modelo de jogo. Somos treinadores de jogadores que queremos ver um dia serem convertidos no plano internacional e de seleções. Se estamos preocupados muito com o modelo de jogo, é um trabalho de engano. O que me interessa é descobrir pontos fortes e fracos dos jogadores e intervir sobre isso para os projetar. Muita preocupação sobre o modelo de jogo não é bom.

Asfixia o talento…
É isso mesmo. Tem de haver uma simbiose. Queremos formar os nossos jogadores para os seniores. Têm de ter capacidade para interpretar o que os treinadores pedem. Isso só se consegue se houver uma aprendizagem muito forte nos princípios de jogo, nas combinações, no tipo de ferramentas que vão servir um dia e no momento para destruir os adversários e fechar a nossa baliza. O maior problema é quando há miúdos que ainda não conseguem ter criatividade suficiente para perceber que devem coletivizar o jogo. Temos alguns, até na minha equipa. Não destruindo a capacidade de 1×1 e 1×2, quero que tenham capacidade para coletivizar o jogo. O nosso objetivo é chegar ao golo, fechar a baliza e ganhar o jogo. Mas não queremos ganhar a todo o preço, com modelos fechados para sermos os melhores treinadores. Não, nós estamos num serviço ao clube e formação, queremos a potenciação dos jogadores.

Há treinadores mais preocupados com eles do que com a formação dos jogadores? Há uma Mourinhização? No sentido em que o boom do sucesso dele, em 2004, pode ter contaminado e acelerado alguns processos…
É verdade. Agora há outro problema: Guardiola e Sampaoli. As pessoas interpretam os modelos de jogo e adotam-nos ipsis verbis. As pessoas esquecem-se que os intérpretes não são iguais, não têm a mesma idade, têm de crescer. Esta questão pode ser grave. Os treinadores não morrem solteiros na culpa. Os clubes também culpa, ao não lhes dar espaço de crescimento e contratos de trabalho de três anos. Por exemplo, eu já fui sete vezes campeão nacional. Tenho orgulho em ser campeão nacional, gostei de o ser. Este ano vou tentar sê-lo também. Mas há questões mais importantes e uma delas é quantos jogadores passaram pelas nossas mãos, demos um contributo e eles chegaram lá acima. O nosso trabalho no Sporting é para o Sporting. Quando comecei aqui, em 2000, tinha uma equipa com menos um ano de idade. É evidente que não conseguimos ser campeões nacionais no espaço de três anos, mas os jogadores que conseguimos ajudar a construir foram convertidos nesta última seleção. O treinador tem de se sentir peça influente no contributo que dá para a formação de um jogador, é mais importante do que qualquer campeonato nacional. Estou orgulhoso dos campeonatos que ganhei, porque deram muito trabalho, mas devo estar muito mais pelo contributo que dei nestes quase 30 anos de trabalho, não só no Sporting, mas também no Benfica e Al-Ahli [Jeddah]. As pessoas não veem. Estão sempre à espera de dizer “ganhaste não sei quantos campeonatos, mas este ano como ficou?” ou “estás velho” ou “já não deu, está ultrapassado”. Um treinador, em início de carreira, quer ganhar para fazer carreira e, às vezes, o facto de querer ganhar leva-o a fechar demasiado o modelo e a dar mais importância ao modelo do que às coisas importantes. Faz parte.

Há esse estigma do treinador velho? Veem-se cada vez mais treinadores de 30 e tal anos a aparecer…
E ainda bem. A competência não se vê pelo bilhete de identidade.

Mas é moda por causa dos Nageslmanns?
Não. Temos treinadores de 70 anos a ganhar campeonatos, como temos jovens também. Cada um tem a sua experiência. Um treinador tem é de ser bom, competente. Para ser competente, tem de ter trabalho. Cada vez sou melhor treinador. Posso perder faculdades, mas sou cada vez melhor treinador, tenho uma capacidade reflexiva cada vez melhor. Eu tenho 58 anos, não sou velho. Tenho cabelos brancos, mas há treinadores mais velhos. Sou experiente neste ramo da formação. Há coisas que já não estamos para fazer, mas fazemos outras com mais capacidade. Eu sou apaixonado por isto. Quando se deixa de ter paixão, está-se morto. No início, tinha de ir aos poucos, tinha de ser por etapas, engolir sapos. Agora já não engulo, é uma paixão mais madura. Às vezes falho, pronto, falhei. Só posso intervir no que posso controlar. Se me assustava naquela altura, agora não, aceito a derrota. Vamos falhando. Tenho uma visão diferente.

Os seus jogadores veem um jogo inteiro ou nem por isso?
Veem. Eu gosto de ver, analisar, mas já sou seletivo. Com o caudal de jogos que existe, não fazia mais nada. Questionava-me: será que eles veem? Veem o que querem, coisas boas. Eles são fãs de algumas equipas. Ainda hoje, no treino, dei um exemplo de um jogo do Arsenal, que marcou um golo pela loucura do guarda-redes querer sair. Sair, sair. Todas as equipas querem sair na primeira fase de construção. Isto é um problema para nós: pessoas que não têm capacidade para sair e saem. No primeiro terço não se põe em causa a segurança. Eles sabiam, estavam atentos. São fãs do Manchester City, Arsenal, Liverpool, espero que sejam do Sporting. Alguns são, outros não, não lhes diz nada. Olham muito para o estrangeiro. Em Inglaterra joga-se melhor do que em Portugal. Em Espanha também. Há outros que não veem porque passam demasiado tempo nas playstations. Aliás, a playstation atrapalha o que treinamos aqui, porque eles projetam no jogo alguns movimentos da playstation e não os sabem fazer.

Por exemplo?
O quadrado X e essas coisas… Eles passam demasiado tempo na playstation, é uma loucura. Os computadores, os telemóveis, é demasiado. Só lhes tira tempo para pensar e ler, que é uma chatice. Não leem, nem nas tecnologias. Passam demasiado tempo com os fifas e os fortnites. Também o devem fazer, mas de uma forma controlada. Isso atrapalha a vida deles. Acho que já não são tão cultos como deviam saber. Às vezes brinco com eles a dizer que o cota sabe mais do que eles em várias áreas, como na música… Eu gosto de ouvir tudo. Tanto oiço MC Kevinho, Anitta e ProfJam como Pink Floyd e outras coisas ancestrais (risos). Sou uma pessoa atenta. Vejo os youtubers, tento estar atento ao nosso mundo. Não sou daquelas pessoas que diz “no meu tempo”. O meu tempo é este. E o tempo deles também é este.

Como é o comportamento dos pais?
No Sporting é um oásis. Somos uma empresa de talento e os pais são pais. Têm de ajudar à construção dos filhos como filhos. Há aqui uma relação cordial, distante. Mas os pais atrapalham muito, noutros clubes. Há de tudo. Em alguns clubes mais pequenos a influência é demasiado negativa. Também há casos positivos. Os pais fazem parte do processo de formação porque ajudam os clubes em muitas tarefas. São muito importantes, só deixam de ser importantes quando assumem a função do treinador. Uma das nossas tarefas, seja no Sporting ou noutro lado, é afinar o nível de expectativas à realidade de cada miúdo e ajudá-los a evoluir, dentro do nível de expectativas mais ajustado. O treinador é treinador, o professor é professor, o pai é pai. O meu filho quando jogava dizia-me: “És o maior pai do mundo. Sabes de futebol mas nunca interferes, dás-me apoio”. Mesmo sendo treinador, eu sabia qual era o meu espaço. Era um bom pai. Sabia que o meu filho não era o melhor jogador do mundo, tentava enquadrá-lo na realidade. É esse o papel do pai: apoiar e ajudar. Às vezes, os filhos perdem-se por má influência dos pais. Um miúdo que anda a jogar fortnite toda a noite e a seguir vem treinar, não está disponível, o pai tem de controlar. Não são os treinadores. Há jogadores de futebol que não foram nada durante a vida e ainda estão a pensar que, nos iniciados, foi o treinador que o queimou, quando tiveram a vida toda para crescer.

Há pouco falou que chegam aos juvenis miúdos com cultura de jogo, já com dez anos de futebol. Não há o risco de saturação se começarem demasiado cedo?
Há. Ou não. Depende de muita coisa. Depende do estilo de vida saudável que tentamos fazer, porque nos queremos ajustar ao que nos parece que é bom para nós. Têm de perceber uma coisa: o facto de ter investido na carreira demasiado cedo não quer dizer que, no final, será profissional de futebol. Ele e os pais, sobretudo os pais, têm de ir percebendo os planos A, B, C e tal. Quando são vistos todos como Cristiano Ronaldo e Messi, algo está mal. O miúdo tem de ter o seu espaço de brincadeira. Ele tem de ser feliz nos traquinas, nos benjamins, tem de ter a felicidade de jogar, o jogo tem de ser algo que lhe acrescente alegria. Quando chegar a uma determinada altura, acho que a partir dos juvenis é outra onda, já começa a afinar-se o valor do jogador, já passaram a puberdade, já são adolescentes. Aí tem de perceber se vai ser jogador ou não, e se não for tem de saber o que vai fazer. Uma coisa que considero uma chatice é dar-se contratos profissionais demasiado cedo. Tem de haver um compromisso da instituição, dos pais e empresários, porque eles não são verdadeiramente profissionais, são candidatos a profissionais, mas têm de ter outros planos de vida. Alguns miúdos desistem completamente da escola e da cultura, sabendo que a cultura é demasiado importante até para o domínio racional e análise do jogo. Nós fazemos isso, é uma luta. Têm de perceber que a vida cultural, o conhecimento, é demasiado importante. Às vezes não entendem, querem chegar e ter o estatuto de profissional e sair à noite, fazendo as coisas de acordo como se fossem um craque. E não são. É um perigo. Os planos têm de estar bem ajustados. Quantos jogadores da distrital são profissionais? Muitos. Não fazem mais nada. Como é possível, uma pessoa que ganha pouco, ser profissional? Perderam os planos A e B…

Não sabem largar o sonho…
Claro. Esse sonho de todos os miúdos… Por exemplo, como professor – estou de licença sem vencimento há três anos -, há miúdos que me dizem com 17 anos que ainda querem ser jogadores de futebol. Como é que é possível? Eu começo-me a rir. Com 16, 17 anos vais ser jogador de futebol? Onde está o teu passado no futebol? “Oh professor, mas se me derem oportunidade e tal…”. Eu tenho de redimensionar esta questão.

Qual foi a geração de jogadores que mais o marcou?
Isso é muito difícil. Marcou-me ter contribuído para a formação do melhor jogador do mundo. O trabalho, nos primeiros tempos da academia, com estrutura e modelo diferentes, acrescentou tantos valores. E um deles foi considerado o melhor jogador do mundo, a par de outro grande jogador, Messi. É um orgulho ter contribuído para tal e para uma geração muito boa, que teve 10 ou 11 jogadores na seleção que foi campeã da Europa. Essas gerações marcam-me, porque foi um trabalho diferente em Portugal, com uma estrutura de ponta.

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Como era o miúdo Ronaldo?
Era muito bom. Ainda só tinha 16, 17 anos. Era um miúdo que estava em construção. Nós puxámo-lo para os juniores porque entendíamos que tinha muito talento. Depois, quando saltou [na idade] dos juvenis para juniores, vimos na pré-época que era um fenómeno, era mesmo. Tinha uma capacidade de trabalho e ambição, uma coisa… Um autêntico portento no que é um talento. Ele tinha de ser qualquer coisa muito grande. Tinha que dar. Era muito focado, queria trabalhar muito, muito ambicioso, um nível de capacidade técnica, queria evoluir todos os dias. Tinha uma dimensão psicológica de querer muito, queria muito.

O João Couto, se calhar, é a pessoal ideal para nos explicar a história do Fábio Paim…
O Fábio era um miúdo com muita qualidade, em termos de talento, mas faltava-lhe a dimensão do Ronaldo, não gostava muito de trabalhar. Gostava de jogar com bola, sem bola era muito difícil. Desenquadrou-se, desenquadraram-no. Foi um flop, porque não conseguiu projetar o que era, um talento. É uma pena. Foi meu jogador nos sub-17. A partir daí, começou a baixar, porque tinha uma dimensão de vida desajustada relativamente àquilo que tinha de crescer. Mas não tinha capacidade de trabalho. Era fenomenal na decisão e técnica, mas faltava-lhe os suportes psicológico e tático. No fundo, a dimensão tática é a mais importante. Os treinadores, de uma forma global, pensam que a dimensão tática é a dimensão master, suportada por dimensões física, técnica e psicológica. Enquanto o Ronaldo tinha essas vertentes bem equilibradas, o Fábio Paim faltava-lhe. Fisicamente era bom, mas não se superava, não gostava de trabalhar. Pensava que chegava a dimensão técnica e a capacidade como via jogo e tomava as decisões, mas faltava trabalho. Nada se faz sem trabalho. Foi um talento adiado. Podia ter sido outro ‘Bola de Ouro’…

Veem-se mais Ronaldos, não tanto na qualidade, mas na questão da mentalidade?
Sim, há miúdos com capacidade de trabalho muito grande. É uma competitividade muito grande. Mas não têm o talento do Ronaldo, que é uma pessoa especial. Geneticamente, é muito bem constituído. Tem uma dimensão genética fenomenal. Usufruiu daquele arranque da academia, daquele espaço Sporting que ajudou a construí-lo também. Para além de ele ser muito bom, enquadrou-se num contexto muito bem preparado. Ronaldos não há todos os dias, mas com a perseverança do Ronaldo há muitos que querem. Às vezes até dizemos que valem mais os querem do que os que podem. O Fábio Paim podia, mas não quis.

Cada vez conhecemos mais histórias de jogadores com episódios de depressão ou ansiedade. Ainda é um tabu? Vê uma evolução nesse sentido?
A dimensão psicologicamente tratamo-la. As pessoas não têm noção mas temos coaching e psicólogos a trabalhar de forma integrada. A questão é a articulação entre todos. Temos professores aqui na academia, psicólogos, sociólogos. Existe uma estrutura muito grande à volta do jogador. Ele não é construído só pelo treinador. A dimensão psicológica é muito importante. O coaching é muito importante. Cada vez mais os psicólogos estão a ter o seu papel. A questão da depressão é mais fácil de resolver no futebol, ainda assim, do que num desporto individual. Temos muitos exemplos no atletismo e natação que desencadeiam processos depressivos porque dependem só de si. Aqui é mais fácil, porque a culpa é dividida, o trabalho é dividido. Há pessoas que acabam por se destruir porque o nível de expectativa se desajustou relativamente ao seu valor. Mesmo que vão crescendo na dimensão futebolística, às vezes não atingem os sonhos.

Há dias num artigo no “El Mundo”, sobre este tema com desabafos de futebolistas, um psicólogo dizia que a tristeza está mal vista e que, nesta era das redes sociais, temos de parecer estar sempre bem…
Não há espaço para a humanização da coisa.

Como se não houvesse lugar para a vulnerabilidade. É capaz de quebrar um dia se não houver um acompanhamento, não?
Sim. A grande questão é que [o futebolista] é uma pessoa diferente. Não pode ir ao cinema de uma forma normal. Isto magoa. O Cristiano Ronaldo, se calhar, gostava de ir com a sua mulher, de uma forma descontraída, a um espaço normal. Quando se fala de jogadores de top, eles têm de ter uma vida ajustada, mas são pessoas com a sua Humanidade à flor da pele. Têm direito a ser pessoas normais, mas não lhes dão espaço para respirar. Precisam de se redimensionar como pessoa, para estarem continuamente vivos.

Que mudanças gostava de ver no futebol de formação?
A primeira era que as pessoas percebessem que o resultado não é tudo. Ganhar a todo o preço não vale nada. Um campeonato nacional vale muito menos do que uma formação como deve ser, e gostava que as pessoas apostassem e criassem situações para o futebol evoluir. Luto contra mim, não é? Também quero ser campeão nacional. O ser campeão nacional às vezes esconde muito a formação. Por outro lado, gostava que os clubes tivessem mais apoios. Falo de clubes como o Sacavenense, Oeiras, Oriental, que tinham um passado, para terem mais possibilidade para fazerem um bom trabalho, mas não têm e vivem da carolice. Gostava que a divisão do dinheiro fosse mais canalizada na formação e que houvesse uma supervisão mais controlada para uma boa formação. Já existe, mas os clubes mais pequenos têm muito mais dificuldade. Não somos competitivos. Chegamos à fase final e normalmente são sempre os mesmos. Isso não é bom. Resultados de 16-0 nas escolinhas, 32-0… Devia redimensionar-se a competição para não acontecer. Mais apoios e maior paciência. Mas só vale quem ganha. Se treinador ganha é bom, se não ganha é mau. Nem falo por mim, não me posso queixar da minha vida como treinador de formação.

Já foi bom sete vezes…
Nem é essa a questão. Tive sempre em clubes bons, não me posso queixar. Mas vejo excelentes treinadores que têm tido uma influência muito grande no crescimento do futebol de formação em Portugal e que não lhes é dado o mérito. Também gostava que as pessoas deixassem crescer os miúdos, não houvesse tanta influência dos pais e empresários, e que deixassem que os treinadores e as pessoas realmente importantes façam o trabalho de ajuda. Não há nenhum jogador que cresça sem tutoria. Às vezes, os tutores e treinadores que influenciam mais diretamente não têm o peso tão grande como os outros que abrem o mundo e dizem “tu és bom, vais chegar lá”. Gostava de uma relação mais ligada e paciente.

Faz sentido um miúdo de 15, 16 anos ter empresário?
Faz… se for um bom empresário (risos). Não sei se faz, se não. Depende. Agora todos os miúdos têm empresário. É preciso é ser bom. A questão é a ajuda à formação. Aliás, a questão não é o empresário, é o tipo de empresário. Se a tutoria for bem feita, e já vi muitos bons exemplos, o tutor substitui pai e família. É fundamental. Mas há outros que fazem um papel muito mau. A questão é o tipo de intervenção. O empresário tem de estar sempre ligado com clube e pais. Um miúdo de 15 anos ainda não cresceu, tem as suas limitações. Está na adolescência, tem as suas dúvidas. Precisa de um apoio grande. No mundo inteiro, os empresários apanham cada vez mais cedo os jogadores. Mais grave, é terem miúdos de nove anos. Os empresários têm o seu espaço, que pode ser bem aproveitado. É como treinadores, há bons e maus. Tem de se discutir muito essa questão. O empresário pode ter um papel muito importante junto das famílias, no sentido de as adequar ao desenvolvimento do jogador. A vida cultural é diferente: há pais cultos, outros menos cultos, há uns obcecados; há uns que não conseguem viver a sua vida quanto mais intervir sobre a dos filhos. Acho que o empresário tem sentido, mas tem de se pensar bem no tipo de empresário e tipo de intervenção. Embora os interesses sejam todos divergentes, tem de haver um trabalho comum, senão o fruto não cresce. Se não houver sol, chuva, água, como é que uma árvore dá frutos se não tiver tudo articulado para o fruto ser doce? Isto não é utópico, há um trabalho a fazer na interligação destas coisas.