Na última crónica de “O futebol não é para meninas!” dedicada ao Mundial de França 2019, apenas os 4 primeiros jogos dos oitavos de final já tinham sido relatados. O Cherba pediu-me para suspender o que deveria ter sido o post da semana passada, por forma a incluir num só o resto do certame maior do Futebol Feminino. Façamos então o balanço final.

Indo por partes: os oitavos de final confirmaram a minha previsão. Apuradas para os quartos 7 selecções de nações europeias e os EUA. Dos jogos que faltavam, não houve surpresa na vitória dos EUA sobre a Espanha (a não ser o facto de ter sido obtida pela margem mínima, 2-1), a vitória das campeãs europeias em título (Holanda) sobre o Japão (vice-campeã e campeã nas 2 últimas edições do Mundial) só surpreendeu quem não segue a evolução vertiginosa do FF na Europa, o mesmo podendo dizer-se da vitória da Suécia sobre o Canadá; um pouco mais surpreendente foi a eliminação da histórica selecção da República Popular da China aos pés de uma Itália pouco usual nestes palcos mas que fez um óptimo campeonato.

Em relação aos quartos de final a primeira nota (MUITO NEGATIVA) vai para a desfaçatez com que a FIFA altera no dia de véspera, o alinhamento dos jogos dos quartos de final, trocando a ordenação prévia de Noruega e Alemanha. Simplesmente vergonhoso e a fazer lembra os piores tempos de Blatter e Platini. O que era para ser um Alemanha- Inglaterra transformou-se num Noruega 0 – Inglaterra 3. Sem muita história a não ser a confirmação da ascensão do Futebol Feminino em terras de Sua Majestade e uma certa decadência do predomínio nórdico sobre o FF europeu.

No dia seguinte, o grande jogo dos quartos de final: o França-EUA. Os EUA são a selecção com maior palmarés e ainda, na minha opinião, com maiores argumentos do Futebol Feminino de nações. A França pretendia neste Mundial confirmar um ascendente europeu que já se verifica a nível de Clubes. Mas a verdade foi clara e cruel: por muitos argumentos técnicos que tenham as jogadoras francesas (e têm) não chegam para superar os das jogadoras americanas, porque estas sabem aliá-los a um enorme rigor tactico, a uma maior tarimba competitiva e a uma melhor gestão dos ritmos, tempos e momentos do jogo. Nesta grande partida uma palavra para a exibição absolutamente irrepreensível de Rapinoe, que jogou na ala esquerda mas mesmo dali continua a ser a maestrina que comanda a brilhante orquestra americana; não é uma Filarmónica Clássica que executa grandes Sinfonias épicas, românticas ou impressionistas de um Beethoven, de um Tchaikowski ou de um Mussorgsky; é antes uma arrebatadora Big Band de Swing que nos brinda com os trechos emocionantes de um Gershwin, de um Bob Calloway, de um Duke Ellington ou de um Lionel Hampton. A média ofensiva norte-americana pegou na batuta para definir os ritmos e as variações e jogo, ora num sinfónico allegro vivacce ora em jump-jive mas sempre com um frenesim que as francesas do sector recuado não conseguiam acompanhar; e ainda se deu ao luxo de, qual Duke Ellington, largar a batuta para se sentar ao piano e assinar os dois golos da vitória gringa sobre as francesas em terras da Gália.

Em outro jogo dos quartos de final, a Holanda venceu, com alguma facilidade, por 2-0, uma Itália raçuda e voluntariosa mas já sem argumentos físcos para disputar o jogo com as Laranjas Mecânicas.

No último jogo desta eliminatória, a Alemanha (que devia ser a Noruega, não fosse o tal cambalacho FIFeiro) enfrentou e perdeu com a Suécia por 2-1, mesmo após ter estado em vantagem graças a um golo de Magull aos 16 minutos. A ilusão alemã apenas durou 6 minutos, pois as suecas empataram ao 22 minutos por Jakobsson. No começo da 2ªa parte (48 minutos) um golo de Blackstenius voltou a ser decisivo para fazer as suecas avançarem mais uma eliminatória.

Nas meias finais: no dia 2, a Inglaterra defrontou os EUA, no Stade de Lyon, às 21horas locais, tendo as americanas demonstrado porque são a nº 1 Mundial e acederam à final com uma vitória por 2-1 que parece mais renhida do que realmente foi (mesmo nos períodos de aparente reacção britânica, as yankees controlaram o jogo como entenderam); no dia seguinte, no mesmo Estádio e à mesma hora, a Holanda enfrentou a Suécia e, após uns primeiros vinte minutos de domínio sueco, as holandesas equilibraram a partida, para, na segunda parte assumirem o domínio completo de todas as vertentes do jogo; fruto da diferença de desgaste provocado pelos jogos dos quartos (a Alemanha exigiu muito fisicamente das suecas, ao contrário do que as italianas obrigaram às holandesas e estas ainda tiveram mais 3h30m de descanso, o que, nesta fase de uma competição tão curta, faz diferença) a laranja mecânica impôs um forte domínio, não materializado em golos, na 2ª parte do jogo e foi com naturalidade que acabou por marcar e vencer no prolongamento. Ficaram então definidos os jogos cruciais da competição.

Para atribuição das medalhas de bronze e último lugar do podium defrontaram-se a Inglaterra e a Suécia, em Nice, perante 20.000 espectadores. Mais uma vez, conscientes de que tinha sido submetidas a maior desgaste que as inglesas, as suecas entraram no jogo bastante fortes, na tentativa de o procurar “arrumar” cedo. De facto isso parecia estar bem encaminhado quando, aos 22 minutos já se encontravam a vencer por 2-0; no entanto, um golo das Lionesses 9 minutos depois poderia afectar essa estratégia e a moral e discernimento das nórdicas. Tal não sucedeu. Fazendo juz à “imperial” frieza escandinava, as suecas não desmontaram e conseguiram ir buscar as improváveis forças, provavelmente á memória genética viking para aguentar todos os assaltos das oponentes inglesas. Medalha de bronze para a Suécia e um frustrante 4º lugar para as inglesas que claudicaram na fase final de uma prova que estava a ser memorável.

final3

O jogo decisivo disputou-se no domingo, em Lyon e opôs os EUA e a Holanda. Lotação esgotada, 57.900 espectadores. Frente a frente duas selecções com um percurso imaculado: 6 jogos e seis vitórias para cada. Mas as semelhanças param neste dado estatístico. A natureza dos percursos de americanas e holandesas foi diferente. Com uma primeira fase mais facilitada, num grupo que tinha as suecas mas também as chilenas e as tailandesas, as americanas demonstraram o seu poderio vencendo os 3 jogos com o impressionante score de 18 golos marcados e 0 sofridos e fazendo uma enorme rotatividade da equipa. Já a Holanda fez os mesmos 9 pontos nessa fase mas teve que se aplicar para vencer a Nova Zelândia e o Canadá pela diferença mínima e os Camarões (a melhor selecção africana) por 3-1. O resto do percurso das 2 equipas até final reforça o favoritismo americano. As meninas da terra de tio Sam tiveram de passar a Espanha, nos oitavos e as fortíssimas França e Inglaterra nos quartos e meias e venceram os 3 jogos com o mesmo resultado: 2-1. Já as meninas dos Países Baixos começaram por eliminar o Japão que esteve nas 2 últimas finais (e ganho a penúltima) e depois passaram sem grande dificuldade a surpresa deste campeonato – a Itália – e foram forçadas a esforço e tempo extraordinário para ganhar à Suécia e marcar, pela primeira vez na sua História numa final de um Mundial, mas pela segunda consecutiva numa final das grandes competições de Selecções pois disputaram e ganharam a final do Europeu de França 2017.

O jogo viria a confirmar a superioridade americana e os EUA acabariam vencendo, com toda a naturalidade por 2-0. No entanto, as holandesas até equilibraram a posse de bola e a eficácia do passe e até igualaram a distância percorrida pelas jogadoras de cada equipa. A diferença verificou-se na objectividade e eficácia: 17 remates (9 à baliza + 5 fora da baliza + 3 bloqueados por defesas adversárias) e 2 golos dos EUA contra 6 remates (1 à baliza + 2 fora da baliza + 3 bloqueados por defesas adversárias) e 0 golos.

As meninas dos EUA ainda conquistaram outros “títulos”: 2 das 3 melhores goleadoras (Megan Rapinoe e Alex Morgan com os mesmos 6 golos da inglesa Ellen White) e o prémio da Bota de Ouro Adidas do torneio a ser atribuído a Megan Rapinoe (menos tempo de utilização) e da Bota de Prata a Alex Morgan; o prémio de melhor jogadora do torneio (Bola de Ouro Adidas) também a ser atribuído a Megan Rapinoe (que ainda foi por 3 vezes nomeada a melhor do jogo): O único prémio que não foi para uma americana foi ganho pela Guarda Redes holandesa, Sari Van Veenendaal, que ganhou a Luva de Prata Adidas numa escolha salomónica do Comité Técnico da FIFA (a Guarda Redes americana sofreu menos golos e defendeu 2 penalties no certame).

Nos Estádios deste Mundial estiveram 1.163.063 espectadores, a que se deverão juntar uns quantos milhares de milhões de visualizações nas televisões e plataformas de streaming. Mais uma vez, OS DIRIGENTES DO SPORTING QUE TIREM AS DEVIDAS ILAÇÕES DESTE FENÓMENO DE RÁPIDA POPULARIZAÇÃO DESTA VERTENTE DO FUTEBOL (E DE NEGÓCIO).

Um abraço a todos os tasqueiros e uma nota final: o meu desejo teria sido ver a Inglaterra campeã do Mundo … afinal, são elas as LIONESSES.

* às segundas, o Álvaro Antunes faz-se ao Atlântico e prepara-nos um petisco temperado ao ritmo do nosso futebol feminino