Rui Miguel Tovar foi à Madeira e tomou café com Dolores Aveiro. A mãe de Ronaldo fala dos pelados da ilha, das estreias pelo Sporting, dos adeptos ingleses e ainda dos dois desmaios provocados por Rui Costa e Sérgio Ramos

– Bom dia, tudo bem?
– Bom dia? Boa tarde, ahahah.

– Pronto, seja, boa tarde.
(…)
– Quando chegar, ligue-me e combinamos. É melhor ser cá em casa para não dar bandeira.
(espectáculo, o «não dar bandeira» é precioso)

Aterramos no Funchal e ligamos-lhe do nosso hotel, onde estão hospedadas as 16 equipas do Mundial feminino júnior de pólo aquático. Just saying. And diving. Nada de resposta. Segue então um WhatsApp e lá vem a chamada.

– Já tomou o pequeno-almoço?
– Vou agora lá abaixo.
– Então esteja à vontade e, quando acabar, vá ter à loja CR7 na Ajuda.
– Obrigado, até já.
– Bom pequeno-almoço.
(divinal, o detalhe do ‘bom pequeno-almoço’)

Chegamos à Ajuda sem ajuda e a loja está mesmo à nossa frente: CR7 escrito à esquerda, Elma à direita. A entrar naquele preciso instante, uma senhora toda de verde. Um beijo para aqui, um beijo para ali e vamos para a sala de reuniões da loja. Uma secretária separa-nos, Dolores tem a mala ao colo e sorri como quem quer dar o pontapé de saída na conversa. Com o tempo contado, preparem-se para 15 minutos à Dolores.

É a primeira vez que vem cá?
Uyyyyyy, não, não. A primeira foi em 1994.
Ahhh, então já conhece isto bem. Antes, para chegar à Ribeira Brava era [faz uma careta cómica], agora é um instante. É tudo perto. As vias rápidas ajudam, o Alberto João fez algumas coisas em condições, ahahahah.

Para mim, a maior diferença de 1994 para agora é a Calheta. Antes só tinha um restaurante e um hotel, agora…
Agora está uma cidade bonita, muito bonita.

Quando falo em si, toda a gente, em especial o Aurélio Pereira, define-a como a mãe perfeita de um jogador de futebol. Como é que reage a isso?
Sou órfã desde garota, tinha seis anos quando perdi a minha mãe. Quando me tornei adulta e mãe, privilegiei sempre a família e quis dar aos meus filhos tudo aquilo que não tive: carinho. E agora também transmito esse sentimento para os meus netos. Quero dizer com isto que só quis o melhor para o meu filho e sempre respeitei as decisões do Sporting.

Ainda se lembra do dia em que conheceu o Aurélio Pereira?
O senhor Aurélio é uma pessoa muito especial, é como se fosse do meu sangue. Tudo aconteceu num torneio da Páscoa, ali na Câmara de Lobos. Por acaso, nem sei se esse campo ainda se mantém. O Cristiano estava a jogar e foi detectado pelo senhor Aurélio. Logo nesse dia, encontrei-me com o senhor Aurélio num hotel aqui perto e ele manifestou o interesse de levar o Cristiano para o Sporting. Ainda bem, foi o melhor que aconteceu na nossa vida.

Em que hotel, lembra-se?
Foi aqui na Ajuda, não me lembro qual. Sei é que nunca mais fui a esse hotel. Tivemos uma conversa e o senhor Aurélio queria levar o Ronaldo para fazer provas no Sporting. Como sportinguista que sou, aceitei. Ahahahah.

Ai é do Sporting? Boa, boa, o vestido não o desmente.
Ahahahah, foi coincidência, mas muita gente já me disse isso hoje. Sou sportinguista por causa do meu pai. Foi o bichinho. O Ronaldo também era do Benfica por causa do pai. Mas mal chegou ao Sporting, tornou-se sportinguista. Até hoje.

E ele passou as provas no Sporting?
Claro, era uma pérola que estava ali.

E daí para a frente?
O senhor Aurélio ajudou-nos sempre, tratou de tudo e fez o contrato com os dirigentes do Sporting. Tínhamos três viagens por ano e, às vezes, eu aparecia uma quarta ou quinta vez quando o Ronaldo entrava naquela crise.

Então?
Foi prestar provas aos 11 anos e ficou a viver em Lisboa a partir dos 12. Era muito novo e aquilo foi duro, muito duro. Tanto para nós, família, como para ele. Mais para ele, claro.

E telefonava-lhe?
Todos os dias. Numa primeira fase, ainda nem havia telemóvel. Umas vezes a chamada corria bem, outras nem tanto e chorava. Podia perceber o seu estado de ânimo no primeiro segundo do telefonema. Mal ele atendia, já sabia. Nas chamadas mais chorosas, eu dizia-lhe ‘Filho, a mãe vai aí, mas tens de continuar a lutar pelo futebol se é isso que queres’.

E ele?
Está aí, mais palavras para quê? Meteu na cabeça que ia ser jogador de futebol e trabalhou para ser o que é. Chegou o mais alto possível e ainda tem muito para dar.

Como foram os primeiros tempos de Ronaldo em Lisboa, tem memória?
Então não tenho?! Lembro-me bem até da primeira vez dele no Funchal, como jogador do Sporting.

E então?
Não veio.

A sério?
Ficou de castigo. Más notas na escola, desatenção nas aulas.

Já sabia desse comportamento?
Ai sim, sim. O senhor Aurélio contava-me tudo, sempre. É como lhe digo, acompanhou-me constantemente. Ele e o Leonel Pontes, agora treinador do Sporting e também madeirense. Foram dois bons portos de abrigo, sempre prontos para ajudar. Dessa vez, o senhor Aurélio telefonou-me e disse-me que o Ronaldo ia ser castigado. Por isso, falharia o jogo Marítimo-Sporting.

E o Ronaldo?
Ficou revoltado, até quis abandonar.

O que lhe disse?
«Se estivesses com a mãe, eu castigava-te. Com eles, do Sporting, é igual. Tens de saber dar a volta.» Foi pena, claro. A verdade é que ficámos frustrados, todos nós, a família e os amigos. Até tínhamos feito cartões de boas vindas para esperá-lo no aeroporto, como ‘Força Ronaldo’. Foi pena, mesmo. Mas se fez asneiras, tinha de ser castigado. E ele aprendeu a ser homem nessas alturas.

E a senhora ainda se lembra da primeira viagem a Lisboa?
Claro que sim, foi uma aventura. Para mim, daqui a Lisboa era como daqui à Venezuela. Era outro mundo.

E gostou?
Muito, gostei muito de Lisboa. E passei a viver lá com ele, a partir do momento em que passou a jogar com os adultos. Até me lembro da fase em que se afirmou como jogador profissional e pediu-me para acabar com os estudos. Porque aquilo era duro: treino de manhã, treino à tarde e aulas à noite, das 7 às 11, se não me engano. Ele ligou-me a dizer que não queria mais estudar. Insistia nessa ideia e, às tantas, convenceu-me. Disse-lhe ‘se é isso que queres, a mãe vai assinar e serás jogador de futebol’.

Já o imaginava a jogar futebol?
Desde sempre, ele dizia-me que seria o futuro dele desde os cinco, seis anos. Dizia-o com uma certeza absoluta. Às vezes, até penso que tudo isto ainda é um sonho.

E ia aos jogos dele aqui na Madeira, ainda antes do Sporting?
Quase sempre. Às vezes, estava a trabalhar e não podia sair do serviço.

E quando ele caía?
Ficava aflita. Quem não fica? Ainda por cima, naqueles pelados que hoje já nem existem. Mas, como dizem, é parte do ofício.

O jogador domina a bola, durante o jogo. Jogadores. Foto antiga digitalizada(informação incompleta)

O jogador domina a bola, durante o jogo. Jogadores. Foto antiga digitalizada(informação incompleta)

Acompanhou o Ronaldo na estreia?
Vi todas as estreias dele em Alvalade.

Todas, como assim?
A estreia oficial, com o Inter. A estreia a marcar, com o Moreirense. E a estreia no novo estádio, com o Manchester. [g’anda baile, da Madeira, está visto]

Já vivia com ele em Lisboa?
Jááááá. Desde que foi chamado à equipa principal, ele pediu-me para acompanhá-lo a tempo inteiro.

Viviam onde?
Na Expo, num apartamento que era do Hugo Viana. Fazia-lhe o pequeno-almoço, antes do treino. E fazia-lhe o almoço, depois do treino. A mesma táctica em Manchester.

E ia aos jogos todos?
Só em casa, tanto no Sporting como Manchester, Real e Juventus.

Fora, nada?
Nada. O Ronaldo pedia-me para não ir. Sobretudo ao City. E também ao Atlético, que até era perto de casa. Ainda agora, quando foi o sorteio da Liga dos Campeões, pediu-me para não ir ver o Atlético-Juventus.

E que tal os jogos em casa?
Em Manchester, é a loucura. Nada a ver com Portugal: podem estar a perder que estão sempre a apoiar até ao fim. Até nas derrotas, os adeptos querem ver os jogadores no final do jogo. Mesmo aqueles que se demoram muito a tomar banho e a pentear-se, ahahahah. Se o Ronaldo fosse inglês, era o rei de lá. Se ele voltasse ao Manchester, nem quero imaginar: seria o regresso de um herói.

E a senhora era reconhecida nas ruas de Manchester?
Mommy Ronaldo. Nem sabia falar inglês, mas percebia o carinho daquelas pessoas, fosse ao shopping, ao supermecado ou ao café. Desde que tenho instagram, as pessoas estão mais atentas ainda. E o respeito está sempre presente.

Qual foi o jogo do Ronaldo que mais a marcou?
Sem ser as estreias, tenho de dizer o Portugal-Inglaterra na Luz.

O do Euro-2004?
Em 2004, sim. A seguir ao golo do Rui Costa, a emoção foi tão forte que desmaiei. Quando estava a ser vista pelos médicos, já fora da bancada, disseram-me que Portugal tinha ganho nos penáltis. Foi uma alegria imensa.

E a maior desilusão?
Também nesse Europeu, o jogo da final com a Grécia. Porque tinha desmaiado com a Inglaterra, o Ronaldo pediu-me: ‘mãe, por favor, não vejas o jogo no estádio, vê em casa’. Fiquei em casa e fiquei destroçada com as imagens do Ronaldo a chorar. Outro jogo que o Ronaldo pediu-me para não ir foi a final da Liga dos Campeões na Luz, entre Atlético e Real. Fiquei em casa e desmaiei.

Outra vez?
Outra vez. E, desta vez, fiquei com a cara toda negra.

Bolas.
È verdade [Dolores faz uma careta engraçada], a culpa é do Sergio Ramos. Ahahahah, quando ele marcou o empate nos descontos.

E o prolongamento?
Peguei no meu neto e fomos dar uma volta a pé. Quando chegámos a casa, soubemos que tinha acabado 4-1. Foi uma alegria ilimitada. Olhe, lembrei-me agora de outro momento triste, o da final do Euro-2016 com a França. Digo triste quando ele desatou a chorar no relvado, lesionado e sem forças para continuar. Custou-me muito, muito, muito. Mas depois valeu a pena, ganhámos a taça. Outro momento de muita tensão foi quando se descobriu que tinha um problema no coração. Ele cresceu muito depressa e o coração não acompanhou. Felizmente, o doutor resolveu o problema.

Como?
Operação a laser. Foi um sucesso e um alívio enorme.

[a porta abre-se, é Elma]
– Isto é assim? [no gozo]
– Vim para aqui, é mais sossegado.
– À vontade, vou ali ao café.
[Dolores vira-se para mim]

Vamos beber um café?
Vamos a isso.

[no café, a conversa é sobre o Portugal-Luxemburgo em Alvalade, dia 11 Outubro, para o Euro-2020; depois do café, segue-se a boleia a pé para o táxi, ali no Fórum: ‘este tempo é uma maravilha, nem é preciso o casaco de abafo’] Que craque. Bola de Ouro para Dolores, já.

entrevista publicada no site MaisFutebol