I just know that every man i kill, the farther away from home i feel

A frase é, digo eu, uma das melhores frases alguma vez proferidas numa tela de cinema. Pode ser escutada da boca de Tom Hanks, em O Resgate do Soldado Ryan, e tem-me ocupado considerável espaço do pensamento nos últimos tempos.

“Estamos em guerra”, dizem-me. “Precisamos de ti nesta guerra!”, completam. E apontam-me um de dois caminhos: ou visto uma farda às riscas verdes e brancas e me alisto no pelotão Bruno, ou visto uma farda às riscas verdes e brancas e alisto-me no pelotão Varandas. Um gajo fica meio confuso, mas depressa te explicam que de um lado se rapam latas de atum, à homem com eles no sítio, e que do outro há croquetes e paneleirices no aconchego da trincheira. Tento perceber melhor as motivações de cada um.

De um lado, alguém que defende um líder que foi, em tempos, símbolo maior da luta do Sporting contra os inimigos externos. Um líder que eu também segui sem reservas, por representar a luta contra um sistema que procura colocar-nos à margem. Os inimigos estavam foram do clube e vestiam fardas radicalmente diferentes da nossa.

Mas, talvez desgastado por essa luta que lhe dava noventa por cento dos votos numa reeleição, Bruno parte para uma Assembleia Geral para aprovação dos novos estatutos e oferece-nos um novo campo de batalha. Os inimigos estão entre nós e chamam-se “sportingados”. Uma galhofa do caralho, uma caça às bruxas, uma purga, o início do fim que chegaria da pior forma. Primeiro destituição, depois expulsão, dois momentos com os quais jamais concordarei, embrulhados num enredo de golpe palaciano mal cheiroso e na impossibilidade deste líder desnorteado poder ir a eleições e, aí sim, ouvir da minha parte, “desculpe, general, não tem as mínimas condições para continuar a exercer as funções para as quais eu e tantos outros, entretanto por si apelidados de estúpidos por temo-lo apoiado na mudança de estatutos, o elegemos”.

Veio o inverno. Era fácil antecipar essa mudança brusca de temperatura e a privação que a mesma nos traria. O general deposto confirmava o seu estado de alma, apontando o dedo a sócios e a adeptos, apontando o dedo a novos e velhos, enxovalhando, até, aqueles que com ele ficaram no barco até final e que ocuparam cargos hierárquicos por escolha sua. Zero reconhecimento de culpa própria, aqui e ali polvilhado por supostos momentos de autorreflexão e de promessas de ter aprendido com os erros, depressa cobertos por um ressentimento que continua colado ao corpo de quem continua na trincheira.

Do outro lado, a figura de alguém que chega à liderança por desejo de uma minoria de votantes, fazendo-se rodear por algumas mãos cheias de figuras que lhe garantissem uma maioria de votos. A máxima, essa, procurando cavalgar o sentimento de um clube completamente partido, veio com um Unir o Sporting. E se na altura essa máxima soava a oca e demagógica, hoje está claro que não passava de um número de circo que o tal capitão Varandas diz ter acabado.

Unir o Sporting não poderá passar, jamais, por tentar cortar o que nos liga a um passado recente. Muito menos por diabolizá-lo, preferindo carregar no desejo de clivagem a cada nova oportunidade de promover a acalmia e o reconhecimento. Em duas idas à Câmara Municipal de Lisboa, por exemplo, arrogam-se méritos de conquistas e despreza-se o trabalho que permitiu ali chegar. Pior, fala-se em “novo Sporting”. Vende-se, outra vez, demagogia e divisão. Procura-se, novamente, a luz dos holofotes para elogiar quem diz que “o Sporting faz falta” e para anunciar a sócios e adeptos que temos que estar juntos na luta contra o inimigo que veste as mesmas cores. Já não são “sportingados”, são “brunistas”. E que venha de lá nova purga, que enquanto o Record continuar a ter capaz encomendadas vai-se conseguindo mascarar a total inaptidão e incompetência, a sobranceria e incapacidade de lidar com as críticas.

Recuso-me, enquanto Sportinguista apaixonado, a aceitar que só existam estes dois caminhos. A aceitar que este continue a ser o caminho. Um caminho em que o ódio se sobrepõe. Um caminho em que os nomes se sobrepõem aos projectos. Um cabrão de um caminho que já se sufoca, deixando-me nauseado quando penso nos nomes e nos nomes e na merda dos nomes, como se nos turvassem e nos fizessem esquecer que o Sporting precisa de pessoas que fazem dele um modo de vida, não continuar cheio de gente que o olha como forma de estar bem na vida! E raismapartam se esse dia não chegar ou não acabemos a sorrir depois de tentar.

É preciso desligar. Uma, outra, outra vez. As vezes que forem necessárias para activar a alma. Estamos a deixar que nos esvaziem a alma. A nossa. Olhamos para uma vitória de crianças com o Rampante ao peito com desdém, etiquetando-a de floreados que nada interessam. Berramos pelas modalidades, mas só nos lembramos delas para fazer subir a crispação. E, convenhamos, a maioria dos Sportinguistas está-se a cagar para se temos ou não equipas femininas, que isto podia ter interesse se jogassem de lingerie, caso contrário é só mais uma arma de arremesso e um motivo para medir noções balofas de Sportinguismo. Estamos vazios de alma Sportinguista, abrindo-a de portas e janelas a um ódio latente que grassa a cada nova intervenção nas redes sociais. O lado negro do verde. O filho da puta do lado negro do verde, tão mais fácil de utilizar do que aquele branco que de tão manchado precisa de quem sempre o tem carregado.

É preciso desligar. Como naquele tempo em que deixávamos o trabalho onde ele deve ficar e só aceitávamos recebê-lo de volta quando era hora de a ele voltar. Como naquele tempo em que estas letras eram escritas ao bater da máquina, em que só víamos as fotos das férias depois de voltar a casa e entregar as mãos cheias de rolos para revelar, em que juntávamos códigos de barras para colocar num envelope e ganhar um brinde qualquer manhoso que chegava pelo correio, em que o telefone tinha fios e era uma carga de trabalhos puxá-lo até onde pudéssemos namorar sem ser ouvidos, em que gravávamos cassetes com as músicas que davam na rádio e usávamos fita cola para as reparar e a música continuar a tocar, em que escrevíamos mensagens de amor no tampo de uma mesa de escola chegando a esperar uma semana para ver a resposta, em que não havia escolhinhas de futebol em que se joga porque se paga e nos obrigavam a ser realmente melhores do que os outros que se raspavam todos no pelado, em que tínhamos que guardar uma moeda para se fosse necessário ir à cabine fazer um telefonema, em que se gravavam os resumos em cassetes vhs.

É preciso desligar. E voltar ao tempo em que se querias um bilhete passavas uma noite ao relento. E voltar aquele tempo onde não existia a palavra editar. Aquele tempo que está em fotografias queimadas pelo passar dos anos, com pessoas que perdemos ao longo do tempo mesmo que continuem vivas. Voltar ao tempo em que falávamos, mas falávamos a sério, e resolvíamos tudo cara a cara. Ao tempo do verde e branco, que isto começa a ser complicado de gerir com tanta cor. E sem amor.

Sim, lá venho eu, mais o romantismo, mais toda a merda que queiram utilizar para etiquetar. Mas nessas vossas cabeças cheias de ódios por quem conhecem e por quem não conhecem, formatadas por ideias de pessoas que também não conhecem, há-de, espero, resistir uma imagem desses tempos. E se quiserem desligar e ficar a olhar para ela, perceberão que o Sporting, o nosso Sporting agora atravessa, não é novo. E ao longo de todos esses momentos de trincheiras, o que o fez continuar foi eu, tu, tu, e tu termos sido capazes de perceber que quem está no meio dos disparos é o Leão. Foi eu, tu, tu, e tu termos sido capazes de resistir ao apelo da trincheira e termos ficado ali, à mercê dos tiros, sem arredar pé, ao lado do Leão. O tempo que fosse necessário. Sem deixar de ir apoiar, sem deixar de pagar quotas, sem aceitar embarcar na cantiga de muitos destes promotores de ódio que, sim, estão-se marimbando para o Sporting.

“Jamais uma lágrima manchará um email”, disse, um dia, José Saramago. E tão certeira é essa frase, nestes tempos em que não desligamos. Nem que seja para sentir as putas das lágrimas que se amontoam lá para trás dos olhos quando olho para um lado e para o outro e vejo gente das minhas cores, de arma em punho. Há quem ache que ficar no meio, ali, onde está o Leão Rampante, é uma não opção. Eu tenho a certeza que é a única. Como sempre foi. E se um dia tiver que cair, quero cair ali, tentando dizer-vos que por cada Sportinguista que ataco, mais longe me sinto do Sporting.