Hoje, 22 de Março de 2020, cruzam-se duas efemérides. Nesta mesma data:
em 1949, nascia John Toshack
em 1980, Jordão marcava o golo nº 3000 do Sporting no Campeonato Nacional, numa vitória por 2-1 sobre o Braga

Essas duas figuras da história Leonina fazem a foto que vos trago hoje e que acrescento um pouco sobre um dos primeiros treinadores de que tenho uma efectiva memória e que, mesmo sem ganhar, acabou por ficar na nossa memória. Sobre o Jordão, aproveitem a quarentena e, se ainda não o fizeram, cliquem aqui e descarreguem a Revista 1906 dedicada ao nosso craque.

Toshack, avançado internacional galês, marcou mais de duzentos golos na sua carreira que se iniciou no Cardiff, mas foi no Liverpool que se notabilizou, fazendo parte das grandes equipas que dominaram o futebol europeu na década de 70, altura em que formou com Kevin Keagan uma dupla de avançados temível, conquistando uma Taça dos Campeões, duas Taças UEFA, uma Supertaça, três Campeonatos de Inglaterra, uma Taça de Inglaterra e uma Charity Shield.

Em 1978 regressou a Gales para ser treinador-jogador do Swansea, que levou da 4ª à 1ª divisão inglesa, ao mesmo tempo que ganhava três Taças de Gales, tantas quantas já tinha ganho enquanto jogador no Cardiff City.

Foram estes sucessos que levaram João Rocha a contratá-lo para orientar o Sporting na temporada de 1984/85, mas o Clube vivia um período de grande instabilidade e John Toshack não resistiu aos maus resultados, acabando por ser despedido a duas jornadas do fim do Campeonato, sendo então substituído pelo seu adjunto Pedro Gomes.

No entanto a época não tinha sido assim tão má, pois na verdade com Toshack o Sporting apenas perdeu três jogos, um em cada competição, sendo que a derrota em casa com o Rio Ave, em jogo a contar para a Taça, foi a que teve maior impacto pelas suas consequências imediatas.

John Toshack introduziu no Sporting a novidade de jogar com três centrais, que nunca foi bem compreendida, e muitas vezes confundiu-se aquilo que era uma linha de três defesas, com uma defesa com cinco jogadores. O futebol português não estava preparado para esse sistema que viria a ser implementado com sucesso um pouco por toda a Europa, mas principalmente na Alemanha. Foi neste âmbito que Toshack lançou o jovem Oceano, que se tornou na grande revelação da temporada, e transformou Carlos Xavier em lateral ou ala direito. Mais tarde levaria ambos para a Real Sociedad.

O futuro encarregar-se-ia de confirmar que João Rocha se tinha precipitado ao despedir o jovem técnico galês, que prosseguiu a sua carreira em Espanha, onde ganhou uma Taça do Rei na sua primeira passagem pela Real Sociedad, antes de chegar ao Real Madrid para ser Campeão na época de 1989/90.

Completo este pequeno trecho de história com uma entrevista rápida que apanhei

1. O que lhe sugere Portugal?
Peixe e vinho verde, the best. Ah, e gelados! Grandes memórias. Só tinha 35 anos de idade e aquilo tudo entrou-me pelos olhos dentro. Imagine lá beneficiar de tudo isso, fui um sortudo.

2. E o futebol?
Também, “queclaro” [boa tentativa de falar portuguese]. É curioso: não sei o que almocei ontem, ou até hoje, mas lembro–me perfeitamente de coisas de há 30, 40 anos. De golos marcados pelo Cardiff. De sensações vividas no Liverpool. Do regresso a Gales para o Swansea. Da viagem para Portugal. Do encontro com João Rocha, que homem! Era um presidente com uma força colossal. Veja bem, ele entrava no balneário e fazia coisas impensáveis, como abanar a toalha na direcção dos jogadores. Tinha fibra.

3. Viveu em Lisboa de Julho de 1984 a Maio de 1985. Onde?
Passei o tempo num hotel, o Alfa, se não me engano. Era numa rua aberta [Avenida Columbano Bordalo Pinheiro]. Gostei do tempo em Lisboa. O pessoal do hotel era encantador, as pessoas na rua também. Respirava-se bom ar e o Sporting tinha uma massa enorme atrás de si, fosse em casa ou fora. Dizia-lhe há pouco que a minha memória recente é raquítica, mas a outra, de tempos mais distantes, é preciosa, e cá está um exemplo: lembro-me do meu arranque na pré-época. Ganhámos três jogos seguidos: à Académica numa cidade à beira-mar [Figueira da Foz: 1-0 por Eldon], mais Atlético Madrid [2-0] e Benfica [3-1] em Alvalade. Só perdemos ao quinto jogo, num torneio em Madrid, no Vicente Calderón, com o PSV.

4. A equipa satisfazia-o?
Recebemos o Damas, o Jaime Pacheco e o Sousa do Porto, o Eldon do Vitória de Guimarães e ainda o Oceano, via Nacional, aconselhado pelo Pedro Gomes [seu adjunto]. E tínhamos uma série de campeões, como o capitão Manuel Fernandes, Litos, Venâncio, Mário Jorge… Ainda tenho uma lapela de diamantes do Sporting. É um clube que me ficou no coração.

5. Ainda bem que me fala dele, porque o Pedro Gomes disse-me que o Toshack tinha cá uma pastilha…Confirma? [explicamos-lhe a ele, Toshack, o significado de pastilha: remate fortíssimo, de queimar as mãos aos guarda-redes]
A sério, ele disse isso? [gargalhada rouca] Nunca ouvi o Damas queixar-se [outra gargalhada]. E olha que ele poderia tê-lo feito com outro à vontade, hem?! Era mais velho que eu uns dois ou três anos [volta a gargalhada]. Bom, fico contente por ter deixado uma marca em Portugal.

6. Saiu antes do fim da época sem ganhar nada. Isso pesa-lhe na consciência?
Há trabalhos que rendem títulos, outros servem para acumular experiência para um futuro mais promissor. Em Alvalade, arrisquei a minha primeira aventura no estrangeiro e conheci outra realidade, outro país e outro futebol que me permitiram conduzir a aventura seguinte com outra perspectiva. Tanto assim é que ganhei a Taça do Rei pela Real Sociedad. Na final jogaram 11 espanhóis vs. Real Madrid. Recuando um pouco: no meu tempo, não perdi com o Benfica [1-0 em Alvalade, o jogo da segunda volta já é do tempo de Pedro Gomes] nem com o FC Porto [duplo 0-0]. Estávamos a ir bem, mas as coisas, às vezes, precipitam-se. Só perdi uma vez para o campeonato, em Penafiel, e a interromper uma série de cinco vitórias seguidas. Fui eliminado da Taça de Portugal pelo Rio Ave em Alvalade e aí, sim, foi um choque. E também caímos da Taça UEFA, em Minsk, nos penáltis.

7. Falhou o Carlos Xavier, não foi?
Yup. O Carlos era um portento. Tenho histórias sobre ele que nunca mais acabam. Era um portento, abria uma garrafa de Sumol com a perna direita. Nesse desempate com o Dínamo Minsk, falhou o penálti, mas disse-lhe para continuar a acreditar nele porque eu também continuava a acreditar. Tanto assim é que o levei para a Real Sociedad. E aí, my friend, tenho as tais histórias.

8. Quais?
Estamos a jogar com o Barcelona. Aos 80 e tal minutos, está 2-1 para nós e o Carlos isola-se. Só tem Zubizarreta pela frente e falha! Que raiva! Ainda por cima, havia um colega ao seu lado, um jovem negro chamado Cuyami. No balneário, atiro-me ao Carlos. “Porque é que não deste a bola ao Johnny?” E ele, que gaguejava ligeiramente quando se animava ou era apertado, disse-me: “Pen-pen-pen-pensava que era o Oceano; se dou ao Oceano, se-se-se-seguro que ele falhava.” Bem, nem preciso de dizer que me parti a rir. Outra história: um golo dele ao Real Madrid a fazer o 2-2. Era o meu primeiro jogo contra o Real Madrid, com quem me fiz campeão espanhol num ano de recorde de golos marcados, 107, e precisava daquele golo para me libertar. Não sei o que aconteceu comigo, mas a verdade é que fui a correr na direcção do Carlos mal a bola entrou na baliza. Quando cheguei ao pé dele, abracei-o com força. Pfffff, se isto fosse agora, era expulso, suspenso e multado.

9. Falou-me do Real Madrid, onde foi campeão espanhol com 107 golos marcados…
E só duas derrotas, ambas com um homem a menos. Gostaria de ter perdido uma vez num 11 para 11. Disse isso mesmo numa conferência de imprensa e o “presi” Ramón Mendoza chamou–me logo à atenção. “Isto não é a Real Sociedad. Estas declarações são lidas em toda a Europa. Aqui lavamos a roupa suja dentro de casa.” E eu, que não me deixava ficar sem resposta: “Sim, é verdade, mas estou a lavar a roupa em casa há oito meses e continua sem secar. O melhor é abrir a janela para entrar ar.” Mendoza puxa de um cigarro. Sempre que ele fazia isso, era sinónimo de que não tinha resposta. Era um homem forte e determinado. Engraçado, também. Devo-lhe tudo o que consegui em Madrid. A ele e a Hugo Sánchez. O homem marcou 38 golos e o mais incrível nem é isso: marcou-os sempre ao primeiro toque. Sempre. Okay, penáltis e livres directos é normal, mas também nas jogadas de bola corrida. Unbelievable!

10. Treina três vezes a Real Sociedad, duas o Real Madrid e uma o Depor. Gosta de tapas, é isso?
Very much, very much. Nem imaginas. É um prazer sentar-me à mesa em Espanha. E em Portugal também. Então na Linha, é uma maravilha. Até te esqueces do futebol. Vinho verde, peixe grelhado… já falámos disto, não já? Tenho essa ideia [gargalhada imensa]. Em Sanse [San Sebastian], há as tapas. Em Madrid, os asados. Na Corunha, o marisco. Ay ay ay, wonderful life. No campo, ganhámos uma Supertaça espanhola ao Real Madrid. Aliás, essa época ganhámos quatro jogos ao Madrid: o da final da Teresa Herrera, os dois da Supertaça e ainda um outro para o campeonato, no Bernabéu, perto do Natal. Esse jogo tem história: os brasileiros Donato, Bebeto e Mauro Silva queriam passar o Natal e o Ano Novo em casa, mas o calendário do Depor só compreendia férias entre 22 e 29 de Dezembro. Eles treinavam-se sem alma. Disse–lhes então que podiam voltar a 30. No can do. Então falo com o Mauro e ele explica-me: “Mister, temos de sair da Corunha para Madrid, depois São Paulo e depois cada um vai para a sua cidade. Não há tempo para quase nada.” Viro-me para o Bebeto e digo-lhe: “Por cada golo marcado, um dia a mais de férias.” Ao intervalo, ganhávamos 3-0. Hat-trick de Bebeto. Eles só voltaram do Brasil no início do ano, para o jogo da Taça do Rei.