pachecoA frase que dá título ao post é da autoria de Pacheco, rapaz que chega a Alvalade em 1993, no célebre verão quente que também colocou Paulo Sousa de verde e branco. De uma entrevista ao Expresso, deveras interessante, destaco o que vos deixo abaixo e que tem a ver com o nosso clube.

Como e por que razão vai parar ao Sporting?
A minha ida para o Sporting não tem nada a ver com a fase do querer sair do Benfica. O Sporting só aparece mais tarde. Eu sou muito orgulhoso em algumas coisas e pago muito por isso. A partir do momento em que disse que saía do Benfica, na minha personalidade já não fazia sentido voltar atrás. Mesmo havendo momentos em que eu sabia que não era a melhor decisão. Por uma questão de orgulho era incapaz de voltar atrás. E apesar de não ter empresário sabia quais eram os canais para fazer chegar a outros lados que estava um jogador livre. A partir daí começo a ser contactado por clubes.

Que clubes?
Sou contactado pelo Sporting, pelo FC Porto, apesar de eu não poder dizer isso.

Não pode dizer?
Não, porque se eu disser que fui ao Porto e que reuni com toda a gente eles dizem que é mentira, que não se lembram nada disso, que isso nunca aconteceu. Foi isso que me foi transmitido. “Se esta reunião for alguma vez tornada pública, é mau para ti, porque ninguém vai confirmar isso”. Aliás devo dizer que o primeiro clube que me contactou no sentido de formalizarmos uma reunião foi o FC Porto. Reuni com todos do FC Porto e a proposta era muito boa.

Não aceitou porquê?
O FC Porto foi o primeiro, entretanto o Sporting entra em contacto também, mas eu nem quis ouvir a proposta do Sporting. Não ia ouvir ninguém até falar com o FC Porto. O Sporting é que me pediu para não assinar sem ouvi-los também. E foi isso que fiz. Reuni com o FC Porto, reuni com o Sporting e depois tomei a decisão.

O que o fez optar pelo Sporting?
O facto de ser em Lisboa, por exemplo. O facto do Sporting não ganhar nada há muitos anos. Quando ganhei a Taça de Portugal pelo Sporting foi o primeiro título em 13 anos.

Terá influenciado também o facto de em pequeno ter simpatia pelo Sporting?
Não sei. Acho que não. Tem mais a ver com o facto de ser em Lisboa porque adorava e adoro Lisboa.

Já tinha o coração preso em Lisboa?
Também por aí [risos].

Ou foi pelo facto de o FC Porto ser considerado por muitos o inimigo número um do Benfica e até do Sporting?
[Risos] Talvez, talvez. Eu vivi muito aquela guerra do Benfica-FC Porto durante muitos anos. Aquele jogo em que nos equipamos nos corredores porque o balneário estava cheio de um produto em que começamos logo a chorar e a ficar com os olhos vermelhos, intoxicante; o ser cuspido por centenas de pessoas cada vez que íamos fazer o aquecimento antes dos jogos no campo de treinos; lembro-me de uma série de coisas no túnel, fitas pretas e vermelhas, com uns líquidos e velas e coisas espalhadas ao longo do corredor; de ser maltratado a toda a hora por toda a gente em todo o lado lá em cima. Era uma coisa impressionante. Lembro-me de estarmos deitados e das motas sem escape não pararem à volta do hotel onde ficávamos no Porto. Havia uma guerra terrível. Lembro-me muito bem do guarda Abel no estádio, de pessoas a agredirem literalmente o Carlos Valente ao intervalo desse jogo. Lembro-me de às vezes questionar os polícias de serviço no estádio das Antas: ”Vocês não vêem nada, não fazem nada?” E eles olhavam para nós, começavam a rir e mandavam-nos embora. Talvez tudo isso tenha pesado um pouco. Mas eu diria que o facto do Sporting não ganhar há muitos anos e com a minha ida para lá poder alcançar algum título era um sabor muito bom que me aliciava.

E Bobby Robson que tal?
Ser o treinador do Sporting teve também uma grande influência na minha decisão porque era uma pessoa com quem simpatizava e ele até já me tinha feito ver, de uma forma descomprometida, que tinha uma grande admiração por mim. Nunca no sentido de fazer algum convite ou de esperar que um dia mais tarde fosse jogador dele. Aliás foi uma surpresa para ele quando soube que eu tinha assinado pelo Sporting. Ele não sabia.

Assinou primeiro do que o Paulo Sousa.
Sim, sou o primeiro. Assinei no final de junho. No dia 10 de junho é o dia da final da Taça com o Boavista, no dia 9 disse ao saudoso Dr. Alberto Silveira e ao treinador do Benfica que era o meu último jogo, e só assinei como Sporting no final desse mês. Recordo-me até de um episódio curioso.

Força.
Eu estava em Elvas, ia de férias para Espanha, e o Dr. Alberto Silveira estava com um amigo meu – que faleceu há um mês -, o Henrique Freitas. Este meu amigo Henrique ajudou imenso o Benfica nessa altura, disponibilizou dinheiro para pagar ordenados para ver se os jogadores não saíam, e não sairam nessa altura. Porque eles estavam com medo que houvesse mais jogadores a sair. E, como estava a dizer, estava parado em Elvas e, nessa altura só havia telemóveis no carro e eu tinha um, foi a última tentativa de me dizer “por favor volta para trás”. Ainda não tinha sido a apresentação mas eu disse-lhe “já assinei, já não consigo voltar atrás, é impossível”.

Falava-se que o João Pinto também queria sair. É verdade?
Havia muitos mais. Fui o mau da festa porque fui o primeiro. Mas o Sousa saiu, o João Pinto foi o que foi, e pelo menos mais cinco ou seis jogadores quiseram sair. Eles hoje são todos considerados grandes benquistas de alma e coração e, apesar de eu ser do Benfica, eles não me consideram se calhar como tal. Tem muito a ver com a personalidade das pessoas. Eu respeitei as decisões de cada um. Mas que houve muitos mais a querer sair, houve. Havia jogadores que telefonavam do Brasil para Portimão onde eu estava com o advogado, a pedir para falar com o advogado para sair.

Nunca se arrependeu?
No fundo sentia que queria voltar atrás, mas o meu orgulho não me permitiu. E foi assim que chegou ao fim o meu vínculo enquanto jogador do Benfica. Continuo um adepto fervoroso do Benfica, à minha maneira, sou sócio do Benfica há 30 e tal anos, sempre que posso vou ver os jogos do meu clube. Mas esse foi um episódio que me amargura um pouco. Se as coisas têm sido diferentes no Sporting eu talvez minimizasse esta amargura.

Mas as coisas não correram nada bem no Sporting.
Nada bem. Estivemos sempre em 1º lugar no campeonato, eu estava a fazer um início de época absolutamente extraordinário, golos decisivos, assistências, estava realmente num excelente momento e infelizmente o presidente do Sporting, Sousa Cintra, despediu o Bobby Robson no avião, a seguir a um jogo internacional. Uma ideia da qual ele já se penitenciou várias vezes e reconheceu que foi um erro. Ele fez porque era muito influenciado por uma série de pessoas que o acompanhavam. Como tinham cinco ou seis miúdos que foram campeões do mundo e o Carlos Queiroz conhecia-os bem, conseguiram influenciar o Sousa Cintra a despedir o Robson e a ir buscar o Queiroz.

Quando muda de clube, como foi o embate a nível social na sua vida fora dos relvados?
Muito difícil.

Viveu algum episódio mais marcante?
Os primeiros episódios foram a pressão dos jornalistas, porque fui o primeiro jogador a rescindir unilateralmente com o Benfica. E nós sabemos o peso que o Benfica tem não só do ponto de vista desportivo, como social. Um país pequeno e dominado na sua maioria por adeptos benfiquistas… Terá inevitavelmente repercussões a nível social que não são fáceis de lidar no dia-a-dia. Portanto, a pressão começa com os jornalistas que não largavam a porta da minha mãe, cá em baixo no Algarve. Eu tinha ido para Espanha, sei que cheguei a um hotel em Espanha, à noite, e não fiquei nada contente porque vi um carro estacionado à porta com matrícula portuguesa. No outro dia de manhã levantei-me muito cedo e mudei de hotel. Em 12 horas já deviam estar uns cinco ou seis jornalistas no primeiro hotel onde estive [risos]. No segundo hotel, em Benidorme, convenci a diretora do hotel a colocar um fax diretamente ligado ao número do meu quarto para receber informação de Portugal. O que saísse nos jornais um amigo enviava logo cópia por fax. Mas, indo ao que interessa, fala-se muito de que eu saí e levei jogadores comigo, tenho dois episódios que posso contar.

Conte.
Na noite em que comuniquei ao Toni e ao Dr. Alberto Silveira que ia sair, estava a dar ao mesmo tempo um programa desportivo na TV chamado “O Remate”, e há uma entrevista de um jogador do Benfica, Lembro-me da expressão do Toni quando ouve o jogador a deixar no ar a possibilidade de sair, porque era o estado de espírito que havia na altura: “Ó pá, já vi isto tudo, isto vai sobrar para mim. Isto está tudo maluco”. Este tipo de expressões assim. Quando saí dessa conversa com os dois fui direto ao quarto desse jogador e disse-lhe: “Como é que é possível? O ano passado não ganhámos nada, este ano o único título que temos para ganhar é amanhã e tu dás uma entrevista antes do jogo a dizer que queres sair? Isso é alguma coisa? Se é para sair, sais. Olha, eu vou sair e já fui comunicar às pessoas a quem devia comunicar, não fui para a televisão dizer que vou sair. Tu no fundo não queres sair, queres é arranjar aqui uma situação estável”. Tive de dizer-lhe. Porque no fundo eu sou benfiquista, queria e quero o sucesso do clube.

Qual é o outro episódio de que falou?
Eu já tinha chegado a acordo com o Sporting e quando estou a sair para ir para Espanha tive de passar no escritório de um amigo, onde tinha deixado a minha carteira. Esse amigo era gerente de uma casa de pneus em Sacavém, a Hiperpneus, e era amigo comum do Paulo Sousa. O dono da Hiperpneus era o Luís Filipe Vieira, mas eu não sabia nem quem era o dono, nem quem era o Luís Filipe Vieira, isto para ver a ironia do destino. Fui ao escritório para ir buscar a minha carteira e estava lá o Paulo Sousa. Cumprimentámo-nos, disse-lhe que ia de férias mas não comentei que já tinha chegado a acordo com o Sporting. As pessoas acusavam-me de levar o Paulo Sousa comigo, mas não. Isto foi uma decisão pessoal, não houve nenhum colega que soubesse disto, a comunicação social não soube, dos meus amigos talvez soubesse um ou outro. Mas fiz as coisas sempre pela minha cabeça, pela minha personalidade, não envolvi ninguém.

E o Paulo Sousa também não lhe disse nada?
Não, o Paulo naquela atura nem sequer tinha sido contactado ainda. Porque o Paulo tinha estado num estágio e num jogo pela seleção no dia em que cheguei a acordo na casa de um vice-presidente do Sporting. É o dia em que Portugal joga no estádio do Bessa contra a seleção de Malta, em junho de 1993. O Paulo não sabia disto. Como o Paulo é contactado já não faço ideia porque nem sequer estava cá. Depois sim, fomos apresentados no mesmo dia.

Mas estava a falar do dia-a-dia, quando se muda para o outro lado da 2ª circular. Nunca foi confrontado na rua?
Partiram-me o carro todo à porta de casa. Foi para a sucata. E comecei a ver o meu nome escrito em algumas ruas em Lisboa, adjetivado de uma forma não muito simpática [risos]. Tive algum cuidado. Pedi ao Sporting para me arranjar um apartamento junto ao estádio. Deixei de sair à noite, acho que a primeira vez que saí à noite foi três meses depois. Cada vez que andava na rua, era insultado. Foi complicado.

Como foi chegar ao balneário de Alvalade?
Normal. Um pouco nervoso por toda a situação. Na altura foi impressionante a exposição que houve, era aberturas de telejornais, os jornais só falavam em guerra entre Benfica e Sporting. E aquilo no fundo repercutia-se em nós, jogadores. Mas foram simpáticos de uma maneira geral. Notava alguma curiosidade daquele pessoal mais jovem, o Peixe, o Figo, Poejo, Porfírio, Capucho, já muito conhecidos na altura mas que tinham 19/20 anos. O Marinho foi provavelmente o que me recebeu melhor porque já éramos amigos antes.

O Bobby Robson era o que esperava ou superou as suas expetativas?
Superou. Super simples, super comprometido. A ideia era fazer-nos melhorar em todos os aspetos. Independentemente das idades e das capacidades de cada um ele gostava muito de falar com toda a gente. Era um treinador muito empenhado, muito bom. Mas nem sempre esteve bem rodeado. No Sporting toda a gente mete-se no trabalho de toda a gente, toda a gente quer influenciar toda a gente. É uma loucura, sempre foi assim. Por isso tanto se diz que o Sporting para poder endireitar-se tem de resolver os seus problemas internos. Não sei se alguma vez conseguirá fazê-lo. Mas notava-se muita interferência do exterior. Outra coisas que também notei, e lembro-me de comentar pessoalmente com o Paulo Sousa quando fomos de estágio para a Holanda, é que do ponto de vista da organização do clube… Ficámos de boca a aberta pela diferença que existia do Benfica para o Sporting. Apesar do Benfica ter aquele problemas todos era muito mais organizado. Aliás, devo dizer que a diferença do Benfica para o Sporting em termos de sensação que tive, foi: “Eh pá, saí de um clube grande para um que era suposto ser grande mas não é”.

Pode dar um exemplo dessa falta de organização?
Fomos para a Holanda e o treinador do Sporting chegava um dia depois. Quando chegámos ao hotel não havia uma pessoa que soubesse falar inglês, para tratar dos quartos. Lembro-me de ser eu a ter muita interferência, porque sabia falar inglês. O Valckx, holandês, só chegou no final dessa tarde, não estava e não havia um único diretor, ou uma única personalidade com capacidade para tratar da distribuição dos quartos, que foi um pandemónio. Estava tudo muito sustentado na experiência e capacidade do treinador que não estava ali naquele momento.

Bobby Robson sai, entra Queiroz. Deitou as mãos à cabeça?
Quando vem o Queiroz eu pensei: “Isto é o princípio do fim do resto da minha carreira desportiva”.

Sentiu logo alguma animosidade consigo?
Senti. Fiz o primeiro jogo com ele a titular e saí logo no início da 2ª parte. Depois fiz o início de um jogo e saí na 2ª parte, fiz um 3º jogo em que aconteceu o mesmo. No 4º, estava a fazer em excelente jogo em casa com o Marítimo, ele substituiu-me também no início da 2ª parte, os sócios não gostaram e assobiaram. Eu até passei por detrás do banco para o não encarar. Fui para o balneário e ele mais tarde disse-me que quando passei por detrás do banco fiz alguns gestos para incentivar os sócios a assobiá-lo. A partir daí nunca mais joguei. Isto um mês e meio depois de ter chegado ao Sporting. Nessa época só joguei a final da Taça de Portugal, contra o FC Porto do Bobby Robson [risos]; final essa em que houve final e finalíssima. Mas aí só joguei porque tínhamos perdido o Iordanov e o Balakov que tinham ido para a seleção da Bulgária no Mundial dos EUA. Porque senão não jogava.

Quando é que Queiroz lhe põe o processo disciplinar, é nessa época ou na seguinte?
É na seguinte. Quando deixou de me pôr a jogar fui falar com ele abertamente, na boa, e disse: ”Não consigo perceber. Você viu o que eu passei por causa da minha decisão de vir para aqui. Arrisquei tanto para agora ser tratado desta maneira? Podemos até ter alguma divergência mas vamos os dois fazer o melhor para que isto corra bem para si e para mim”. Não sei em que sentido é que ele interpretou isto, sei que nunca mais houve sossego. E eu nunca mais consegui ser o mesmo. Depois de terminarmos essa época, 1993/94… Lembra-se de ter dito que quando cheguei ao Benfica tinha grandes problemas de pubalgia?

Sim.
Passei a minha carreira praticamente toda com esse problema. Nos inícios de época ou nas alturas de inverno rigoroso em que os campos eram muito pesados, ressentia-me muito das dores da pubalgia, passei a minha vida agarrado ao anti-inflamatório, praticamente tinha de levar Voltaren todos os dias. Era um problema que já tinha desde a minha última época de Torralta, vejam os anos. Na altura não era frequente operar, o tempo de recuperação era muito grande e por isso nunca optámos pela operação. Isto tem a ver com a finalíssima com o FC Porto, há um episódio em que um jogador do FC Porto cospe para cima de mim e como ele me cuspiu dei-lhe duas “bolachas” na boca. Ninguém viu exceto o bandeirinha, o fiscal de linha. O jogador começou a sangrar da boca e a fazer queixinhas ao árbitro, criou-se um tumulto e o árbitro, José Pratas, foi chamado pelo fiscal de linha e expulsou-me. Apanhei três jogos de castigo. Entretanto, acabou a época, vamos de férias e quando recomeça a outra época, fomos para a Holanda outra vez de estágio, eu estava a ter dificuldades nos primeiros treinos e o Queiroz não permitia que isso acontecesse. O relacionamento já não era o melhor, e como não conseguia treinar a 100% ele excluía-me. Às tantas falei com o médico do Sporting, Dr. Fernando Ferreira, mais a sério em relação ao meu problema. Questionei-o se devia ser operado, quanto tempo era a recuperação, o que podia perder, ganhar, para ponderar. Ele explicou-me que era um período de inatividade de mês e meio a dois meses, mas achava que eu devia ser operado para de uma vez por todas resolver o problema. Quando o Dr. comunicou ao treinador que era melhor eu ser operado ele não concordou e disse claramente: “Ele se tinha de ser operado que fosse nas férias, não é agora que vai ser operado”. Aquilo se calhar para a estratégia dele até lhe dava jeito eu estar naquelas condições caso tivesse de justificar a alguém o não me pôr a jogar. Ele não queria que fosse operado mas também não queria que treinasse condicionado, o que era impossível no momento.

O que aconteceu depois?
Quando chegámos a Lisboa fui operado. Iniciei os meus treinos muito condicionado, três ou quatro semanas depois. O Dr. até comentou na altura que nunca ninguém tinha tido uma recuperação assim tão rápida. Infelizmente acho que é a partir daí que começam alguns problemas entre o Queiroz e o Dr. Fernando Ferreira, que mais tarde acaba por sair porque o Queiroz apresentou um médico amigo dele, Dr. Gomes Pereira. Entretanto, quando o Dr. Fernando Ferreira disse que eu já podia integrar o grupo, ele chamou-o e perguntou: “Você assina um documento a dizer que ele já está bom clinicamente?”. O Dr. disse: “Eu não posso assinar uma coisa dessas porque ele pode começar a treinar e ter alguma recaída”. Lembro-me também de uma vez em que o Dr. Fernando Ferreira saiu uns dias do país para um colóquio e o Queiroz chamou-me porque tinha traçado um plano para a minha recuperação, como quem diz, não fizeste a pré-época vais fazer agora. Delineou um plano intensivo de treinos e quem coordenava esse treinos era o preparador fisico, o Roger Spry. Sei que quando o médico chega ao treino depois desse colóquio, vê um jogador a subir e a descer a bancada. Como estava longe perguntou quem era e quando lhe dizem que sou eu, foi ter comigo: “O que é que estás aí a fazer?”; “Estou a treinar, o treinador elaborou um plano de treinos para mim para fazer a minha pré-época”; “Sai já daí”; “Porquê?”; “Ele deve querer que tu sejas operado outra vez”. Esta foi a expressão. Isto tudo tem a ver com o processo disciplinar. Acho que aquela coisa dele querer retardar a minha entrada no grupo tem a ver com o facto do Sporting estar a negociar o Amunike, que já chega na data limite de inscrição. Creio que estrategicamente como a negociação não estava totalmente feita ele tentava atrasar para ganhar tempo para trazer o Amunike. E quando ele chega eu nunca fui convocado rigorosamente para nada.

Até um dia. O dia do seu aniversário.
Sim, até 1 de dezembro de 1994. Vou contar a historia que é gira. Como estava a dizer, nunca mais fui convocado para nada. Uma vez tivemos um almoço não sei onde e foi a única vez que vesti o fato de treino para ir com o grupo. Nunca fui convocado para jogos, nem particulares, nem oficiais, zero. Nesse dia também não fui convocado. Jogava-se um Sporting-Benfica. Ganhámos 1-0 e se a memória não me falha até foi o Amunike que fez o golo. Passados três dias íamos ter um jogo com o SC Espinho para a Taça de Portugal. Eu tinha marcado um jantar num restaurante a seguir ao dérbi, com alguns amigos do Sporting e do Benfica. Até aí o Sporting nunca tinha feito estágio nenhum a seguir a um jogo, nunca. Quando acabou o jogo, ele disse: “Vocês agora vão a casa, preparam o que tiverem a preparar que nós vamos dormir aqui ao hotel”. Era um hotel perto do estádio.

Ele sabia do seu jantar de aniversário?
Não sabia e nem tinha de alterar nada, como é óbvio. Mas fui falar com ele: ”Mister, faço anos hoje, tinha um jantar marcado num restaurante e ia levar alguns colegas, dá para alterar um pouquinho a hora e em vez de ser à meia-noite no hotel pode ser à uma da manhã?”. Ele vira-se para o Costa: “Ó Costa, ele faz anos hoje?” Como se não acreditasse no que estava dizer. O Costa disse que sim. E ele: “Pronto, está bem, à uma hora todos no hotel”. Ainda me mantive no estádio, porque queria confirmar a pequena alteração do horário com o pessoal do Benfica, para lhes pedir para irem logo para o jantar. Fui um dos últimos a sair do estádio e até sair não foi posto no quadro nenhuma convocatória oficial, em papel. Saí do estádio, fui para o jantar e no outro dia apresentei-me no treino de manhã.

Não dormiu no hotel?
Não. Pá, eu nunca tinha sido convocado para nada, só falei com ele por causa dos meus colegas, não pensei que tivesse de ir para o hotel também. E como era normal nestas coisas colocar-se num papel os nomes dos jogadores e afixar no balneário… No outro dia obtive informação através do roupeiro que depois de eu sair, eles foram lá escrever: “Estão todos convocados exceto…” e meteu lá três nomes, lembro-me de dois, Oceano e Peixe. Entenderam que eu tinha faltado à convocatória. Ou seja, a minha primeira convocatória seria para ter ido dormir ao hotel, no dia dos meus anos [risos].

E depois?
Na sequência disso instaurou-me um processo disciplinar com o argumento de que tinha faltado. Argumentei que não tinha sabido de nenhuma convocatória oficial e que tinham escrito no quadro após a minha saída, que estive a jantar com o meus colegas, eles voltaram todos e todos eles sabiam que ninguém me tinha avisado para dormir no hotel. E disse ao presidente, se me tocar alguma coisa isto vai ficar feio. Depois confrontei-o: “Porque é que você não me disse que eu estava convocado?”; “Eu não tenho de dizer porque foi anunciado”; “Não. Escreveram ali depois de eu sair do estádio. Enquanto aqui estive ninguém escreveu nada. Se eu visse ali escrito perguntava se também estava incluído”. O processo disciplinar não deu em nada para além de acentuar e piorar uma relação que já era má.

Não foi castigado?
Não. Comecei a treinar dois dias depois.

Nessa altura já pensava em sair do Sporting?
Não. Foi-me proposto sair pelo presidente do Sporting no início de 1994/95 e não quis.

Porquê?
Porque aquilo tinha sido uma aposta minha. Por tudo o que eu tinha passado e pela decisão em si. Se eu vim para aqui é aqui que vou ficar.

Mas numa época fez três jogos apenas.
Depois do processo disciplinar houve um período em que eu era convocado porque ele dizia que eu ganhava muito para ter fins de semana livre. Quando não era convocado ele marcava treinos, eu com uma pessoa que estivesse disponível, o adjunto Hilário ou o professor Mariano. Treinos ao domingo de manhã, às nove da manhã, sozinho a treinar no campo com uma pessoa [risos]. Depois quando me convocava, ia os jogos todos para a bancada. Fiz 20 minutos em Chaves e 20 minutos em Aveiro, um campeonato inteiro. Eu vinha habituado a jogar 30 jogos por ano. Isso desgasta. Fiz um jogo para a Taça de Portugal, daí eu ter ganho essa Taça, em que jogou uma segunda equipa numa eliminatória com o Olivais e Moscavide.

Ainda tinha contrato por mais quanto tempo?
Por mais um ano. O ambiente era terrível, ele teve imensos problemas com muitos outros jogadores. O professor Carlos Queiroz do ponto de vista da relações humanas, na minha opinião, tem um défice muito grande, e não só com os jogadores. Se analisarmos a carreira dele, teve problemas pessoais com muita gente. Desde jogadores, diretores nas seleções, jornalistas, uma coisa impressionante. Posso até contar outro episódio.

Vamos lá.
Começou a constar que ele gravava as conversas com alguns jogadores. Isto tudo porque ele achava, pelo menos em relação a mim, que eu dizia umas coisas e na direção ia dizer outras. Não me lembro de alguma vez ter reunido com algum diretor do Sporting a fazer queixinhas fosse do que fosse. Às vezes era confrontado pelo facto do relacionamento não ser o melhor, dizia as minhas razões, mas nunca em forma de queixa. E uma vez ele chamou-me ao gabinete dele e começou a questionar-me e a dar a entender para resolvermos o nosso diferendo. Ele fazia-me perguntas que me levava muito para o sim e para o não. Pouca coisa para argumentar, só para dizer se achava que sim ou não. Achei estranho aquele tipo de comportamento e de questões. E como às vezes falava-se que ele gravava as conversas…

Ficou desconfiado.
Fiquei, comecei a sentir que algo não estava bem. Até que enquanto estava a ouvi-lo os meus olhos passaram tipo radar pela secretária dele. Eu a tentar descobrir alguma coisa: “Será que está aqui alguma câmara, algum microfone escondido?”. Às tantas vejo um gravador atrás de umas cassetes de vídeo que ele tinha em cima da secretária. Pensei: “Impressionante, o gajo está a gravar-me”.

E estava mesmo?
Estava, que eu depois verifiquei que aquilo estava com os botões para baixo a gravar. Mas eu não tive coragem de o confrontar diretamente ali, até porque estava a ser gravado, podia ele querer que eu reagisse de alguma determinada forma, não sei. Nunca percebi qual era a estratégia dele para pedir aquela reunião comigo. Só vi que ele estava gravar.

O que fez?
Continue dentro da minha linha. Acabou-se a conversa e eu regressei ao balneário. A pensar: “Digo ao pessoal? Não digo?”. Mas não aguentei. Cheguei lá: ”É para vos dizer que ali o nosso visionário, quando chama o pessoal, consoante os interesses dele, grava as conversas que tem connosco. Não sei se com todos ou não, mas pelo menos comigo ele gravou a conversa”. Eles não queriam acreditar. Sabiam que havia uma chatice entre mim e ele e podiam achar que eu estava a lançar um falso testemunho. Entretanto saímos do balneário e vamos treinar. Eu sabia que ele vinha lá atrás, não me estava a conseguir conter, comecei a ficar para trás, a ficar para trás, chegamos lá acima ao campo e disse-lhe: “Ó mister, desculpe lá, diga-me uma coisa, você não tem vergonha de gravar as conversas que tem com os jogadores? Você não pode fazer isso”; “Eu faço porque vocês comigo dizem uma coisa e depois quando vão falar com a direção dizem outra”. Ele assumiu. Pelo menos quem estava ali próximo ouviu.

Alguma vez utilizou essa suposta gravação ou gravações?
Não faço a mínima ideia.

Chega o final da época e o que aconteceu?
No início da seguinte já não era o presidente Sousa Cintra mas Santana Lopes, que lamentou este meu relacionamento com o treinador, disse que por ele eu não saía, mas o Norton de Matos veio comunicar-me que o treinador não contava comigo. Ok, pronto. Há uma reunião para ver se chegamos a acordo e eu disse: “Vocês pagam-me tudo e eu vou-me embora. Esse é o acordo”. Eles aceitavam, pagando em várias tranches a totalidade do contrato, mas para isso eu tinha de assinar um documento em como não podia jogar nos primeiros oito classificados da época anterior.

Aceitou?
Recusei. A lista dos oito acabou, acabei por rescindir assinando o compromisso de que não poderia jogar num clube grande nesse ano seguinte. Eu sabia que não voltava ao Benfica por causa da minha saída. Dois anos antes tinha havido possibilidade de ir para o FC Porto mas não se concretizou. Portanto assinei esse acordo.