«O número da porta é irrelevante, pois quando chegares e vires a quantidade de gente à espera do Pai Natal vais logo perceber onde é!». A mensagem do Sebastião chega a cortar o stress das compras que faltam, numa busca feita entre lojas e marcações de recolha com pessoas que têm material quase novo à venda e a um preço que permita completar um puzzle onde cabem mais de duas dezenas de crianças ansiosas por, num final de tarde de dezembro, verem realizados pequenos desejos que contrariem um dia a dia de dificuldades e privações.

Num desses encontros, em busca de uma bicicleta, conheço o Artur e o Artur conhece a história desta Tasca Solidária. É o suficiente para alterar o valor estipulado para a compra e para merecer destaque nesta história, por ter sido o único “vendedor” a ter-se deixado envolver pelo espírito da missão. É manhã cedo de dia 22 de Dezembro de 2020, data escolhida para rumar às Caldas da Rainha com o “trenó” cheio de magia, e à medida que o relógio vai rodando mais o stress vai aumentando. Entre uma volta e outra, vais passando em casa onde te espera a ajuda da tua mulher para embrulhar o que não vem embrulhado, e quando dás por ti são quatro da tarde e há uma fila exasperante a separar-te do plano de levar uma camisola personalizada a quem só tinha pedido uma bola do Sporting. É nesse momento que decides que voltarás às Caldas no dia seguinte, sem sequer imaginar que esse regresso terá outros belíssimos motivos.

Arrancas com mais de uma hora de atraso em relação ao que tinhas planeado, com a família ao teu lado e uma carrinha cheia de solidariedade a verde e branco pintada, verdadeiro statement que deixa claro como a água que a união é a coisa mais simples do mundo quando a causa o justifica. Pelo caminho, vais tentando imaginar a reacção das crianças, sabendo de antemão que por muito que imagines nada superará esse esquentador de alma que te aguarda, mesmo que o gps te leve para o lado contrário da cidade e te obrigue a andar às voltas num emaranhado de ruas de sentido trocado e chão esburacado.

Até que chegas a uma rua estreita, onde mais de meia centena de pessoas esperam os faróis que iluminam a luz quebradiça dos candeeiros. “Isto com neve é que era”, voa-te da mente quando o tempo parece que pára e só voltas a dar-lhe corda quando desces e conheces pessoalmente o Sebastião, homem da terra e ponto de ligação ao longo desta missão, voltas a ver o Bino Al Bino uns cinco anos depois e novamente carregado de chocolates, sorris por ver que o Férenc conseguiu ficar, foi comprar uma trotinete que faltava nas informações recolhidas e ainda está acompanhado pela filha, que seleccionou vários brinquedos e roupas e que há-de juntar-se à tua nessa felicidade de dar a quem precisa que te torna uma pessoa tão mais cheia de tudo. Pessoas que, ao longe, te acompanham desde os tempos do Cacifo e que tornam real o sentido do que é feito de forma virtual.

Está lá o Sr. Joaquim, obviamente, esse resistente que há mais de 30 anos oferece almoços e jantares aos mais carenciados da cidade e que conseguiu transformar um espaço desabitado no local onde tantos e tantos se agarram à vida. Muitos deles, adultos, estão à porta também, esperando ordem para poderem entrar e poderem sentar-se à única mesa que os serve, mas fazem o compasso de espera para beber da felicidade das crianças e famílias que, à vez, são chamadas ao interior para receberem a resposta às cartas que escreveram.

A Bianca, de 10 anos, vive com a avó e quis trocar os brinquedos por roupa. Consigo imaginá-la a passear, no dia de Natal, com a que recebeu, com o extra de poder estrear uns ténis que se soubesse que faziam parte dos sacos ainda a teriam deixado com um sorriso mais envergonhado. Não com dez anos, mas com dez meses, a Núria também precisava de roupa quente e bem que pode vir frio para pôr à prova aquele fato de esquimó! Ainda teve direito a um boneco para lhe aconchegar os sonhos, menos mexido do que o seu irmão, o Diego, de 3 anos, que sorriu de orelha a orelha quando desembrulhou o tablet que havia pedido.

Lá fora, o Enzo Micael, do alto dos seus 3 anos, comportava-se como um verdadeiro adepto: pediu uma bicicleta do Homem Aranha e fez questão de ir esperar a chegada do trenó com gorro e fato de treino que não deixavam margem para dúvidas sobre o motivo de ali estar. E quando viu a bicicleta entrar garagem dentro, meus amigos e minhas amigas, tenho a certeza que se dobrasse os dedinhos pequeninos para a palma da mão ia conseguir disparar teias! Mais discreta, completamente atropelada pelo mediatismo do sorriso do irmão, a Érica, de 13 anos, recebia uma caixa de maquilhagem mega quitada, prenda que pediu quase em segredo por achar que já era crescida para escrever ao Pai Natal. Espero que tenhas percebido que nunca somos demasiado crescidos para alimentar a magia, miúda.

Também o Francisco, de 11 anos, achou que apenas a irmã, a Diana, podia pedir prenda. Ela pediu um tablet para ver bonecos, ele esperou que algum elfo lhe lesse os pensamentos onde cabia uma bicicleta. Espero que a foita pequenina depressa tenha aprendido a usar a câmara do tablet e já tenha fotos do irmão montado em duas rodas, quem sabe se fazendo corridas com o Lourenço, de dez anos, que também tinha pedido uma bicicleta e que assim que arrancou a pedalar sacou duas mudanças de uma vez, fazendo a corrente saltar. Quem já foi criança e naquele final de tarde curava feridas com a felicidade dos mais pequenos, depressa correu a resolver o problema, respondendo com um “oh…” quando lhe dizem que quem sabe nunca esquece.

Quem se esqueceu depressa do que tinha pedido foi o Santiago Reis. O carro telecomandado verde, com rodas gigantes, ficou embrulhadinho para abrir mais tarde e o alvo passou a ser a bicicleta verde do irmão, o Martim, de 7 anos. Afinal, é mais fácil arrancar um laço verde do que abrir um embrulho maior do que as tuas duas mãos! Não descansou enquanto não foi para a rua montado na bicla quatro vezes maior do que ele, enquanto a irmã, a Alícia, de 1 ano, se mantinha calada e quieta no seu mundinho de onde tinha vindo o pedido de fraldas, papas e toalhitas, a que se juntou um amiguinho de peluche e uma roupa bem quente.

Também a Yara, de 7 meses, tinha pedido fraldas e leite e acabou por ganhar um novo amigo de brincar e uma roupa própria para o Inverno. O Xénon, de 4 anos, ficou quase sem reacção quando viu uma moto 4 verde em folha acelerar lentamente até si, dizendo-lhe para nunca deixar de sonhar e convidando-o a subir para uma viagem incrível. E o irmão de ambos, o leão Santiago (7 anos), teve direito à sua bola do Sporting com nota de que o resto chegaria no dia seguinte.

Seguiram-se os netos da avó Valeria: Stefany (6 meses), Bernardo (10 meses), Bryan (2 anos), Lucy (3 anos). Bonecos fofinhos para os dois primeiros, um Panda para o Bryan, fã inveterado do urso preto e branco, uma boneca que dá beijinhos para a Lucy.

Dora e Amil, irmãos , 10 e 7 anos, respectivamente, pedira uma boneca e um carro. A Dora teve direito a duas princesas, o Amil tem uma rampa de saltos radical onde vai poder espatifar a dúzia de carros de todas as cores e feitios. A acompanhá-los, a irmã Aíçata não escreveu cartas e nos seus olhos de menina que deverá ter 13 ou 14 anos, havia um misto de felicidade e de tristeza. Já não seria apenas por causa da camisola do Santiago que se justificava regressar no dia seguinte!

A Núria, de 10 anos, queria uma trotinete e queria o livro Gravity Falls 3. Teve ambas, em conjunto com mais dois livros, e ainda levou uma sweat para oferecer à irmã de 17 anos que teve vergonha de pedir prenda. Confesso-vos que não me recordo de ver uma criança ficar tão feliz por receber um livro, ao ponto de terminar a noite a discutir mistérios do mesmo com a minha filha e a pedirem-me, delicadamente, para não tentar entender um universo do qual percebo bola. É justo.

Para o final ficou o Sr. Manel, que aos 75 anos prefere a liberdade de viver na rua à prisão a que chama o lar onde lhe conseguiram lugar. Casacos, camisolas, meias, sapatos, além de produtos solicitados para garantir uma maior higiene. Não sei se pela surpresa de receber os embrulhos das mãos de crianças, não sei se por ser algo que já não acontecia há mais anos do que a memória consegue guardar, sei que os olhos cansados se encheram de lágrimas daquelas que te enfiam o coração num nó de gravata dos que tens que usar num casamento em pleno verão. E como a vida é um parque temático, não tarda a que o nó se desatasse quando o vês, qual puto guloso, a não deixar por provar um dos sabores que compunham o saco de chocolates a que, tal como todos os mais pequenos, teve direito. “Sr Manel, o que é doce nunca amargou!”, atira-lhe a minha mulher. Ele arregala o olhos em concordância e eu imagino-o a sorrir com os dentes carregados de chocolate.

Faltou entregar a prenda à Benvinda, de 5 anos, filha da Júlia a quem foi possível entregar dinheiro para começar a regularizar quase metade das rendas em atraso. Estava a trabalhar, mas ainda nessa noite a pequenina recebeu o tablet com que sonhava e o sorriso eternizado na foto não engana sobre o que estava a sentir.

É já no dia 23 que a vês, a foto, depois de te teres deitado a tentar encontrar forma de realizar o pedido do Duarte, de 7 anos, e do Hugo, de 14, dois irmãos que estavam à espera de poder jantar e que não sabiam que estava a ser organizada esta Tasca Solidária. Vê-los à porta da garagem. Quando entraram, vê-los ainda meio incrédulos com tudo aquilo a que tinha assistido e não resistes: «vocês eram capazes de escrever uma carta ao Pai Natal agora mesmo?». O sim é pronto, a carta não é escrita, mas falada. Bola, bicicleta, tablet, camisola da Juventus, indicação de que gostam muito de jogar consola, «mas só tenho a Playstation 2…». E também têm mais um irmão, o Luís, de 16 anos, por isso a missão passa por dar aos três algo com que possam brincar em conjunto: uma bola, claro, e uma ps3 com dois comandos e jogos.

Acordas cedo e tens mais uma surpresa: o Sr Joaquim havia-se esquecido de falar das cartas ao Pai Natal a uma mãe e à sua filha de 4 anos, a Cheila, e estava com um peso na consciência. Está fora de questão deixares com um peso na consciência alguém que leva mais de metade da sua vida dedicada a melhorar a vida dos outros!

«O que é que a miúda pediu»
«Um tablet…»
«Ok»
«Se não der para ser agora, dá-se depois»
«Nada disso, o Natal é amanhã!»

E porque o Natal é amanhã, já geres estes novos pedidos nas rabanadas de stress de também tratares das prendas e das compras que te faltam, celebrando cada “check” como uma enorme vitória. Voltas a rumar às Caldas da Rainha, agora num trenó transformado em mota da neve, e não podes ter melhor recepção: a Núria continua agarrada ao seu livro Gravity Falls 3, agora na companhia da Aíçata a quem vai explicando tudo o que descobriu durante uma noite mais lida do que dormida.

Chamas a Aíçata e ofereces-lhe também um livro, com histórias de adormecer para raparigas rebeldes que mostram a quem o lê que podem ser tudo o que quiserem. Acreditas que é uma óptima forma de lhe passares essa mensagem. Ela agradece, envergonhada, antes de chegar a Cheila, com um casaco que a faz parecer um boneco da michelin, mas que não a impede de dar-te um abraço que te restitui todas as forças. Desta vez o Hugo vem com o Luís, pois é dia de receberem os cabazes de Natal que o sr. Joaquim e a sua equipa de voluntários prepararam. Explico-lhes que as prendas são para os três e fico a imaginá-los a estrear tudo ainda naquela noite, antes da mãe do Santiago me dizer que o pequeno sportinguista está com o pai e que irá gravar o momento em que ele desembrulhar a camisola com o nome nas costas.

Agora, sim, sentes que a missão está cumprida. “Muito obrigada por tudo o que fizeram. Um feliz Natal e que de hoje a um ano possamos estar aqui todos outra vez!“, lança-te uma das voluntárias. Sorris, pensando que o ideal era não termos que ali estar e que não existissem tantas famílias e tantas pessoas a dependerem de terceiros para viver com um mínimo de dignidade. Mas reconforta-te a certeza de saberes que contas com dezenas de Anjos Rampantes prontos a ajudar quando for preciso: «Feliz Natal!».